Especialista do MapBiomas defende ‘solução colaborativa’ em prol do cerrado, que sofreu escalada de 67% na devastação
Uma fatia de 0,96% das propriedades rurais do Brasil respondeu sozinha por quase 90% de todos os eventos de desmatamento ocorridos no país em 2023, quando foi registrada uma devastação total de 1.829.597 hectares no território nacional. Apesar de indicarem uma queda de 11,6% no desmatamento em relação ao ano anterior, os números evocam de forma subjacente a preocupação de especialistas com o avanço da expansão agropecuária. Sozinha, a atividade respondeu por 97% de toda a perda de vegetação no Brasil não só no ano passado, mas também ao longo dos últimos cinco anos. As estatísticas foram divulgadas nesta terça-feira (28) pelo MapBiomas, projeto que reúne uma série de organizações, empresas de tecnologia e outros atores que monitoram periodicamente a cobertura vegetativa do país.
“A agropecuária é predatória dependendo do modelo no qual se baseia, da forma como ela é implantada. O que acontece é que a fonte do desmatamento acaba sendo mais a expansão agropecuária em si. Você tem vários modelos no país, como a expansão direta para plantio de soja, para algum outro cultivo ou pastagem. No cerrado, tem-se um modelo normalmente da produção de commodities, como a da soja, que hoje é o maior vetor, mas na caatinga a gente tem, por exemplo, expansão da produção de energia eólica, de painéis solares. Então, estão desmatando também para colocar painéis solares, quando a gente já tem 50% da caatinga antropizados [marcados pela intervenção humana]”, menciona o coordenador técnico do MapBiomas, Marcos Rosa.
“Consenso possível”
Em um recorte no nível local, o MapBiomas identificou que, ano passado, 3.511 dos municípios brasileiros registraram pelo menos um evento de desmatamento. O número representa 63% das cidades brasileiras. Ao aliar tais números às estatísticas que indicam a participação expressiva de menos de 1% dos imóveis rurais no quadro total do desmatamento, Marcos Rosa diz acreditar na produção de um consenso possível voltado para a conciliação de interesses em prol do meio ambiente.
“Esse 1% é de 70 mil propriedades que ainda estão desmatando, sem contar se o desmate é legal ou ilegal. É qualquer tipo de desmatamento. Então, estamos falando de 99% que não desmatam mais. A gente tem mais de 2 mil municípios onde não teve mais desmatamento [em 2023]. É possível, então, se chegar num consenso. A gente precisa contar com a participação do setor do agro, que ainda tem alguns representantes muito atrasados que acham que meio ambiente e desenvolvimento são coisas antagônicas. A gente precisa trazer à tona os representantes mais modernos, que já entenderam que essas coisas são complementares.”
“Digo isso porque a gente já tem um setor do agro que está mais avançado, que já percebeu que preservar o meio ambiente é necessário inclusive para se aumentar a produtividade. Você pode ter ganho na produção com [uso de] tecnologia, por exemplo, e não só com expansão de área. O problema é que a decisão de desmatar ou não ainda é muito individual. Então, é preciso se dialogar com o setor agropecuário, discutir e planejar [o uso das áreas] porque é o setor mais afetado pelas mudanças climáticas, como mudança no ritmo das chuvas, secas e chuvas extremas, etc. É um setor que precisa entender que eles também precisam de um meio ambiente equilibrado”, emenda o geógrafo.
Cerrado
O especialista aponta que há uma preocupação especial com o cerrado, bioma onde houve aumento exponencial de 67% no desmatamento em 2023, ao mesmo tempo em que a atividade sofreu uma redução drástica de cerca de 60% na Amazônia e na Mata Atlântica. Rosa argumenta que o espaço vive um cenário mais “complexo” naquilo que se refere à preservação ambiental. O MapBiomas defende que seja feito um investimento no processo de conscientização de proprietários rurais por meio de uma política que garanta vantagens ao segmento em troca do controle da devastação.
“A lei que o protege o cerrado, o Código Florestal, protege 20% da área nativa em cada propriedade, então, ainda há muito espaço para o desmatamento legal. No cerrado, não é só uma questão de se discutir comando e controle [da situação]. Tem toda uma conversa agora que precisa ser feita para articular e definir que proprietários que tenham autorização legal praa desmatar tenham algum ganho para proteger suas áreas, bem como é preciso definir áreas de zoneamento econômico e ecológico, áreas para proteção e áreas para expansão da pecuária. O cerrado é muito mais complexo e depende agora de um diálogo muito maior para reduzir esse desmatamento.”
Para a organização, a experiência adquirida no âmbito da Amazônia pode auxiliar o Estado e outros atores no que se refere ao controle do desmate no cerrado. Ele menciona a expertise conquistada a partir das frentes de atuação adotadas no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal. “Os dois últimos eixos, que são de ordenamento territorial, valorização das comunidades e floresta em pé, são de mais longo prazo e podem trazer muita experiência para dentro do cerrado. Temos que ter esse ordenamento territorial, discutir e fazer o zoneamento econômico e ecológico do cerrado, discutir com o setor fundiário áreas pra preservar, áreas pra expansão do setor. É necessária, então, no caso do cerrado, essa articulação para construir uma solução colaborativa, juntando setores financeiro, privado, produtivo e o do meio ambiente, encontrando alguma solução nesse processo”, propõe.
Governo
Presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho disse nesta terça, após a publicação dos dados, que as estatísticas “ajudam [o governo] a dar um passo adiante nas políticas públicas voltadas ao tema”. “Com os dados de desmatamento, a gente consegue direcionar as equipes de fiscalização para as áreas mais sensíveis, priorizar os esforços de embargos das áreas desmatadas justamente nos municípios prioritários. A gente percebe que ano passado, quando embargamos quase 700 mil hectares de áreas desmatadas ilegalmente, o desmatamento mudou de umas regiões pra outras. A gente tem que acompanhar os dados para, obviamente, ser mais assertivo.”
Assim como os especialistas do MapBiomas, o presidente fez coro por uma adesão dos proprietários rurais à perspectiva que concilia desenvolvimento e sustentabilidade. “Não tem mais espaço para quem faz coisas ilegais. Eu fiscalizo desmatamento utilizando imagens de satélite, por exemplo. Não é preciso nem ter fiscal em campo. Então, as pessoas que desmatarem ilegalmente serão pegas, terão [sua ação] embargada, perderão o direito a crédito, receberão multas e poderão ser responsabilidades inclusive criminalmente. A gente precisa deixar muito claro pra sociedade que é possível produzir sem continuar destruindo o meio ambiente.”
Publicado originalmente pelo Brasil de Fato em 28/05/2024 – 21h59
Cristiane Sampaio – Brasília (DF)
Edição: Nicolau Soares