Temos a honra de publicar mais um brilhante artigo da professora Jacqueline Muniz, uma das maiores especialistas em segurança pública do país.
Ataques e tiroteios: uma janela cíclica de oportunidades na economia política do crime no Rio
Por Jacqueline Muniz, professora e pesquisadora no Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminens (DSP/UFF)
Algumas coisas importantes para saber sobre os recentes ataques e tiroteios promovidos pelo Comando Vermelho nas Zonas Oeste e Norte do Rio:
Faz 29 anos, com o Governador Marcelo Alencar (PSDB), que se inaugurou uma suposta “guerra contra o crime” que só fez territorializar, empoderar e diversificar os domínios armados no Rio com o desdobramento do Comando Vermelho no Terceiro Comando e Terceiro Comando Puro e, ainda, a emergência de agentes públicos como sócios e patrões do Amigos dos Amigos e das Milícias.
Desde então, o Comando Vermelho, curiosamente, permanece como o principal domínio armado no Rio, que detém o controle das áreas estratégicas para a logística do crime, regularmente negociadas com agentes do Estado no chamado “esquema” da segurança e do policiamento. Neste esquema, que alimenta o Caixa 2 de campanhas eleitorais, faz-se a guerra para vender a paz da propina e, assim, fazer funcionar ou aquecer o mercado dos negócios ilegais da proteção com o arrendamento dos territórios populares por segmentos corruptos do Estado.
O Comando Vermelho tem sido o alvo prioritário e constante dos confrontos policiais em todos os governos estaduais, e ele tem enfrentado, ao mesmo tempo, as outras facções do tráfico e as milícias, vindas de dentro do Estado e que contam com o seu apoio privilegiado na farsa eleitoreira da guerra ao crime posta aqui em operação.
Nestes 29 anos de “tiro, porrada e bomba” o Comando Vermelho tem saído fortalecido em seus confrontos ou negócios com o Estado (polícias, banda podre policial e milícias) e com outros bandos localistas de traficantes de menor projeção político-econômica.
A antiga “política do confronto”, revitalizada com a banalização das “operações policiais”, tem servido para empoderar ainda mais o Comando Vermelho, pois, a contragosto ou não, ela enraizou seus contratos com as bandas podres do Estado e outros domínios armados (milícias, Amigos dos Amigos e Terceiro Comando Puro), rivais sempre de ocasião até o próximo confronto necessário para forçar negociar o arrendamento dos territórios populares e a renovação dos alvarás destas firmas criminais.
A banalização das operações policiais, ao esgotar a capacidade coercitiva das polícias e inviabilizar a sustentação dos próprios efeitos repressivos no tempo e no território, dada a inevitável escassez de meios policiais por ela mesma produzida, acaba por fazer tão-somente uma limpeza pontual de terreno seguida de uma troca sucessiva dos donos provisórios do morro/favela (traficantes e/ou milicianos). Isto promove novos embates visando novos acordos e rearranjos territoriais futuros entre os grupos criminais e destes com agentes policiais e políticos gestores dos esquemas de corrupção.
A guerra contra o Comando Vermelho favoreceu a sua nacionalização e a cooptação/parcerias com grupos criminais regionais Brasil afora que necessitavam de seu lastro, incluindo outrora o Primeiro Comando da Capital, o que veio barateando a logística do crime e ampliando os ganhos políticos e econômicos. O Comando Vermelho passou a ter caixa forte para investir na sua política do Rio, passando pela fuga de Mossoró e chegando nas disputas na Amazônia. E ele agradece as políticas da insegurança pública do Rio de Janeiro nestas duas últimas décadas, com raras exceções.
A expansão nacional de seus governos criminais e mercados ilícitos, patrocinada pela guerra contra o crime, permite ao Comando Vermelho, hoje, ditar os termos das negociações violentas no Rio, com o auxílio inadvertido das polícias, por meio de “ataques de advertência” e fazer a tal guerra e sustentá-la por algum tempo quando conveniente. Afinal, o Comando Vermelho mantém fornecedores estáveis, mão de obra abundante, armamentos barateados pelos Colecionadores, Atiradores e Caçadores, expertise acumulada, reserva e fluxo de caixa translocais, vindos de dentro e de fora do Rio.
A nacionalização do Comando Vermelho trouxe vantagens diferenciadas para garantir sua política de manutenção, recuperação, anexação e expansão de territórios. E isto, sobretudo, após a COVID-19 que deixou alguns bandos políticos-criminais sem grana e com baixa capacidade de barganha pela arma e de sustentação de confrontos e tiroteios no Rio para garantir seus domínios que ficaram ainda mais instáveis.
Parte dos CNPJs do crime no Rio ficou sem dinheiro para bancar, junto aos atores governamentais, a Guerra contra o Crime, que requer o arrego regular pago a políticos e agentes da lei, promover o agravamento do sentimento de insegurança com o espetáculo dos tiroteios de efeito-demonstração e a performance do crime-ostentação na exibição de armas e rajadas para todo lado e ao léu. Tudo isso, claro, vem servindo como um marketing governamental e uma publicidade das Organizações Criminosas que seguem iludindo a classe média e rica do asfalto de que se governa contra o crime. Mas que para tanto gasta-se muito recurso valioso como efetivo, armamento e munição.
O crescimento acelerado e autorizado das milícias na última década cumpriu a diretriz política de promover a insegurança pública, impedir uma possível hegemonia econômica do Comando Vermelho à moda Primeiro Comando da Capital e possibilitar o monopólio do Estado na função de agência reguladora do crime. Um passo a mais de grupos políticos carioca e fluminense organizando o crime no Rio, desde o bicho no século passado.
Mas o monopólio miliciano, com todo apoio político obtido em contrapartida ao financiamento de campanhas, não aconteceu como desejado. Afinal no Rio, o Estado faz confronto armado contra o próprio Estado, dividido em grupelhos e panelas políticas oponentes, criando aliados e cooptando rivais no mundo político-econômico do crime, conforme o calendário eleitoral e as carreiras políticas sob patrocínio.
Assiste-se, no momento, a problemas de fluxo de caixa nas milícias, localistas e fragmentadas de origem, diante das perdas recentes de suas principais lideranças, das disputas internas pelos legados deixados e pelas funções de mando, das quebras de acordo político-policial e com o tráfico, da desconfiança acerca do proceder das novas lideranças emergentes e da alta visibilidade midiática que requer algum policiamento repressivo de figuração para poder dar alguma satisfação à sociedade. Tudo isso em um ano de eleição municipal que se faz acompanhar de uma “inflação da extorsão” miliciana para honrar seus compromissos políticos e econômicos.
Assiste-se, no momento, a abertura de mais uma janela de oportunidade político-criminosa, agora beneficiando o Comando Vermelho para produzir ataques que visam: gastar e dispersar recurso policial, fazendo inclusive a banda pobre ir em socorro às milícias parceiras-sócias; renegociar os termos das alianças e contratos com os esquemas político-criminais para ampliar a validade dos alvarás do crime; cooptar novos integrantes com sua demonstração de força; inviabilizar ataques futuros aos seus domínios pelo enfraquecimento pontual de rivais; recuperar ou anexar territórios pela assimilação dos vencidos ou ameaçados.
Mas tudo isso segue cíclico, provisório e instável e, por tudo isso, bastante violento e imprevisível, como é próprio da governança dos domínios armados sob a tutela do Estado. Estes, que nunca foram e jamais serão um Estado Paralelo, precisam e dependem de articulação com o Estado para seguirem com o seu projeto político-econômico de governar população, administrar território e regular mercados ilegais, cujo funcionamento tem elevada rentabilidade eleitoral.
O Rio tem jeito sim e ainda dá tempo de dar um rumo sério e a baixo custo em tudo isso que se configurou por escolhas políticas deliberadas. Está ao alcance administrativo e procedimental de nossas mãos fazer uma virada. O problema é político, a solução é política. Pode começar amanhã!