Por Mauro Lopes
Assisti ao longo interrogatório do ministro Fernando Haddad na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados na última quarta-feira, 22 – se quiser, tiver tempo e paciência para mais de 4h30min de discursos, clique aqui.
Foi um show de lacrações cruzadas. Para o campo progressista, momento de matar saudades dos heroicos tempos de Flávio Dino e seus embates como ministro da Justiça. Para o campo fascista, mais uma chance de caçar clics e espicaçar o governo Lula.
Os embates com os fascistas-bolsonaristas nos debates no Parlamento implicam coragem. Não são todos os ministros e ministras que aguentam horas a fio de discursos agressivos, impropérios e dedos em riste. Mas, paradoxalmente, são embates que chegam a ser divertidos, dada a desqualificação intelectual da maior parte dos adversários fascistas.
Flávio Dino visivelmente tinha prazer em tais embates, em desmoralizar os parlamentares da extrema direita, expondo a ignorância dos oponentes a céu aberto. Seu sucessor, Ricardo Lewandowski, tem adotado outra tática, bem distinta: a do abraço do urso.
Não polemiza, elogia todas as intervenções, promete encaminhar as reivindicações por mais absurdas que pareçam e, com paciência e educação sem limites, vai desarmando os brucutus.
Haddad optou por um caminho mais ao estilo Dino, o da desmoralização escrachada e foi o que se viu por horas. Com seu preparo intelectual, equiparado ao de Dino, a fina ironia combinada com esperteza retórica de ambos, deram, cada um a seu modo, um show.
A reação das assessorias dos dois ministros, colocadas atrás da mesa dirigente dos trabalhos, foi simétrica. No embate mais famoso de Dino, contra o deputado federal André Fernandes (PL-CE), em março de 2023, em torno do Jusbrasil, Ricardo Capelli e Wadih Damous que acompanhavam Dino, contorciam-se de tanto rir.
O grupo de três assessoras de Haddad postadas atrás do ministro foi mais discreto, mas igualmente as três divertiram-se à farta, especialmente nos embates contras os deputados Filipe Barros (PL-RS), Abílio Brunini (PL-MT) e Kim Kataguiri (União Brasil-SP).
Tão importante quanto lacrar durante a sessão na comissão congressual é editar o lacre. De tal sorte que a intervenção do oponente é cortada e apresenta-se nas redes apenas a que interessa ao grupo ao qual se destina -esta é a regra.
Ou seja, a banda progressista nas redes só assiste ao que disse Haddad (ou Dino) e a banda bolsonarista só é apresentada ao que disseram seus líderes. A regra comporta exceções quando o representante do lado adversário teve uma performance tão desastrosa que vale a pena reproduzi-la.
Veja a seguir os embates de Dino com André Fernandes e os de Haddad com os três bolsonaristas, todos editados por perfis progressistas no X, com o devido corte dos oponentes:
Para além das lacrações
Você já se perguntou por qual razão Haddad foi incensado nos veículos da Rede Globo, especialmente na GloboNews, depois dos embates da quarta na Câmara? Elogios a não mais poder.
Ora bolas, como diria meu avô, motivo houve.
E não foi pela espuma das lacrações que fez e faz a festa das redes.
Foi o conteúdo das intervenções de Haddad que comoveu os comentaristas da Globo e de outras mídias ditas liberais ou conservadoras ou corporativas, como queira.
Para além da espuma das lacrações, o aspecto mais notável no embate Haddad x Bolsonaristas não foi a visão oposta ou antagônica sobre a economia e a política econômica.
Não.
Tratou-se de uma disputa entre o ministro e os bolsonaristas para ver quem é o “neoliberal puro sangue”. Havia na sessão um acordo integral, sem qualquer dissonância, quanto a considerar o déficit público o pecado capital da política econômica. A disputa foi sobre a paternidade do filho rejeitado, o déficit. “Toma que o déficit é seu” acusavam-se mutuamente. Ninguém tocou, óbvio, no tema dos juros da dívida pública que consumiram nos últimos 12 meses R$745 bilhões dos cofres públicos abastecidos pelos pobres e que tiveram como destino os bolsos dos bilionários, milionários, muito ricos e ricos. Nada. Nenhuma palavra sequer de Haddad ou dos bolsonaristas sobre o tema.
A disputa foi sobre a paternidade do déficit. “Toma que o déficit é seu” acusavam-se mutuamente.
Na sessão da quarta reinou um consenso entre Haddad, os bolsonaristas e mesmo os parlamentares petistas e de outras legendas de centro-esquerda: é preciso defender o arcabouço, cortar despesas e sufocar o Estado.
Ninguém anotou que déficits podem ser instrumentos para redução de desigualdades e investimento público -prática corrente em todo o planeta.
Enquanto alguns consideram que o neoliberalismo agoniza nos países centrais, no Brasil ele se tornou consenso entre os fascistas/bolsonaristas, o centrão, a Faria Lima, a Globo e a equipe econômica do governo Lula. A diferença eventual entre os distintos atores é quão mais amargo deve ser o remédio empurrado goela abaixo da população brasileira.
A política de austeridade ou austericídio, como foi nomeada pela própria Gleisi Hoffmann no segundo semestre de 2023, o que provocou um abalo na sua relação com Haddad, tornou-se moeda corrente. Entretanto, vale o registro. Não há qualquer formulação favorável à austeridade econômica no ideário econômico da esquerda ao longo da história. Está aí o livro-advertência de Clara Mattei, reconhecida como uma das mais vigorosas formuladoras do pensamento econômico de esquerda na atualidade. O título já indica o buraco em que podemos estar nos metendo: “A ordem do capital -como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo” (Boitempo, 2023).
Foi até espantoso ouvir o discurso do presidente Lula nesta quinta (23), um dia depois do evento na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. Ele falou no Palácio do Planalto durante encontro com o presidente do Benin, Patrice Talon. E fez uma afirmação que confronta diretamente o credo haddadista e o consenso neoliberal: “O que vemos hoje é uma absurda exportação líquida de recursos dos países mais pobres para os países mais ricos. Não há como investir em educação, saúde ou adaptação à mudança do clima se parte expressiva do orçamento é consumido pelo serviço da dívida” – se quiser, assista aqui.
É verdade que Lula referia-se à questão da dívida externa desses países, problema que não existe no Brasil, com reservas da ordem de US$355 bilhões. Mas a lógica da transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos acontece tanto na dinâmica local brasileira, como na mundial. Transferiu-se em 12 meses R$745 bilhões dos mais pobres para os ricos detentores de títulos da dívida do governo, transfere-se outro tanto em subsídios para empréstimos ao agronegócio, para acionistas da Petrobrás entre tantos ralos, roubando recursos valiosos do país. A frase de Lula cabe como uma luva à política econômica de seu governo: “Não há como investir em educação, saúde ou adaptação à mudança do clima”.
Até o momento, o consenso ao redor da política de austeridade (arcabouço fiscal) que une os fascistas/bolsonaristas, o centrão, a Faria Lima, a Globo e a equipe econômica do governo Lula tem prevalecido.
A crer no discurso presidencial, ele precisa ser rompido.
Lacração anima, diverte. Mas, pelo menos no caso desta última quarta-feira, esconde o essencial.
Análise publicada originalmente na Revista Fórum em 23/05/2024