Adeus, Tio Sam! Xi e Putin assinam documento que demarca o fim da hegemonia liberal-militar dos EUA

Putin e Xi Jinping, 17 de maio de 2014. Xinhua News

Adeus, tio Sam!

A declaração em conjunto divulgada durante o encontro traz críticas diretas, duríssimas, contra os esforços americanos de dominar o mundo através de intimidação militar e econômica.

Doravante será muito mais difícil para você promover suas guerras, seus golpes de Estado e suas operações clandestinas de “mudança de regime”.

Graças a Deus, pois assim o mundo estará mais seguro, mais estável, mais pacífico e mais próspero!

Os valores que emergem do encontro dos chefes de Estado de Rússia, Vladimir Putin, e China, Xi Jinping, o mais importante do século XXI, visam promover, finalmente, a autodeterminação dos povos, a soberania de todos os países (independente de seu tamanho). O foco será na construção de infraestruturas, ao invés de guerras eternas, genocídios e corrida armamentista.

A diferença não poderia ser mais profunda entre a a velha ordem liberal, cujos líderes hoje apenas falam em guerra, guerra e guerra, e esse encontro de Xi e Putin, onde as palavras de ordem são: desenvolvimento, desenvolvimento e desenvolvimento!

Posso ouvir os papagaios da mídia liberal repetindo: “Ah, não seja ingênuo, a Rússia é imperialista, invadiu a Ucrânia e quer dominar a Europa”.

Essa mentira também foi enterrada hoje. Na declaração conjunta, está claro que a China não engoliu essa falácia.

A China entende que as raízes da guerra na Ucrânia foram os avanços da Otan pelas fronteiras russas, o rompimento unilateral de acordos, a interferência de serviços clandestinos de informação dos EUA na Ucrânia, e sobretudo a obsessão patológica dos Estados Unidos pela destruição da Rússia.

A Rússia não tem nenhuma intenção de “invadir” a Europa. Não tem nem condição nenhuma de fazer isso, nem interesse. A Rússia não tem interesse sequer em ocupar a Ucrânia inteira, quanto mais algum outro país europeu. Essa é apenas uma mentira ridícula que os senhores da guerra inventam para assustar uma opinião pública debilitada por uma imprensa totalmente comprometida com os interesses geopolíticos dos EUA.

O lado mais positivo disso tudo é que a Declaração Conjunta de Rússia e China não visa, ao contrário do que defendem lideranças ocidentais e suas eternas sanções e guerras, enfraquecer nenhum país ocidental, tampouco obstruir o desenvolvimento tecnológico de ninguém. O documento, portanto, também serve aos interesses econômicos, sociais e geopolíticos dos povos ocidentais, embora talvez não de algumas de suas lideranças corruptas e obecadas por guerras.

É o documento mais relevante do século XXI, e demarca uma nova era das relações internacionais. Certamente, é a peça mais poderosamente antifascista e anti-imperialista já produzida desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Os dois gigantes asiáticos consolidaram a parceria estratégica (que já tinham firmado no ano anterior) e decidiram aprofundá-la ainda mais, lançando um manifesto em que deixam claro a unidade de objetivos e metas geopolíticos.

Para o Brasil, é uma excelente notícia, porque ambos defenderam o fortalecimento das instituições multilaterais, uma bandeira que o Brasil vem brandindo há anos, e que Lula repete sempre que possível, com um destaque especial para os Brics, que vem assumindo um papel geopolítico e simbólico ainda mais notável do que seus próprios criadores imaginavam que pudesse ter.

A complementaridade poderosa das duas economias é absolutamente extraordinária. China se tornou um dos países tecnologicamente mais desenvolvidos do planeta, e vem rompendo, uma a uma, as barreiras que os Estados Unidos vem tentando impor.

A íntegra do documento está publicada aqui no Cafezinho, neste link.

Eu separei abaixo um longo resumo que Arnaud Bertrand, um empresário francês que, para mim, é um brilhante analista geopolítico (especialmente sobre coisas da China), fez da Declaração Conjunta divulgada pelo governo chinês.

***

Arnaud Bertrand, no X:

China e Rússia emitiram uma declaração conjunta extraordinária ontem, com quase 8.000 palavras quando traduzida para o inglês, e em muitos aspectos mais importante do que a famosa declaração de parceria “sem limites” de fevereiro de 2022.

Aqui estão os pontos que se destacaram para mim.

CONSTRUINDO UMA NOVA ORDEM MUNDIAL

A declaração diz que é um “fator objetivo” que “o status e a força dos principais países e regiões emergentes no ‘Sul Global’ [estão] aumentando continuamente” e que “a tendência de multipolaridade mundial [está] acelerando”. Isso, por sua vez, “acelera a redistribuição do potencial de desenvolvimento, recursos e oportunidades em uma direção favorável aos mercados emergentes e aos países em desenvolvimento, promovendo a democratização das relações internacionais e a justiça e equidade internacionais”.

Eles apontam que “os países que aderem ao hegemonismo e à política de poder estão em desacordo com essa tendência, tentando substituir e subverter a ordem internacional baseada no direito internacional por uma chamada ‘ordem baseada em regras'”.

Em termos de segurança, a declaração diz que “ambos os lados acreditam que o destino dos povos de todos os países está interconectado, e nenhum país deve buscar sua própria segurança à custa da segurança dos outros. Ambos os lados expressam preocupação com os atuais desafios de segurança internacional e regional e apontam que, no contexto geopolítico atual, é necessário explorar o estabelecimento de um sistema de segurança sustentável no espaço eurasiático com base no princípio de segurança igual e indivisível.”

Eles continuam dizendo que China e Rússia “explorarão totalmente o potencial das relações bilaterais” para “promover a realização de um mundo multipolar igual e ordenado e a democratização das relações internacionais, e reunir forças para construir um mundo multipolar justo e razoável”.

Quanto à visão dessa ordem mundial, esses dois princípios parecem ser os fundamentais:

1) Uma ordem sem “neocolonialismo e hegemonismo” de qualquer tipo: “Todos os países têm o direito de escolher independentemente seus modelos de desenvolvimento e sistemas políticos, econômicos e sociais com base em suas condições nacionais e na vontade do povo, opor-se à interferência nos assuntos internos dos países soberanos, opor-se a sanções unilaterais e ‘jurisdição de longo alcance’ sem base no direito internacional ou autorização do Conselho de Segurança da ONU, e opor-se ao traçado de linhas ideológicas. Ambos os lados apontaram que o neocolonialismo e o hegemonismo são completamente contrários à tendência dos tempos, e pediram um diálogo igualitário, o desenvolvimento de parcerias e a promoção de intercâmbios e aprendizado mútuo entre civilizações.”
2) Uma ordem baseada na Carta da ONU: “Ambos os lados continuarão a defender firmemente as conquistas da Segunda Guerra Mundial e a ordem mundial pós-guerra estabelecida pela Carta da ONU.”

CONDENAÇÃO EXTREMAMENTE FORTE DOS EUA

Essa condenação começa com o parágrafo destacado acima de que “os países que aderem ao hegemonismo e à política de poder estão em desacordo [com a tendência de uma ordem mundial multipolar]”, e a declaração também condena o fato de que esses “países” (ou seja, principalmente os EUA) estão “tentando substituir e subverter a ordem internacional baseada no direito internacional por uma chamada ‘ordem baseada em regras’ ”

Eles também escrevem que “ambos os lados pedem aos países e organizações relevantes que parem de adotar políticas confrontacionais e interferir nos assuntos internos de outros países, minando a arquitetura de segurança existente, criando ‘pequenos quintais com cercas altas’ entre os países, provocando tensões regionais e defendendo a confrontação de campos.”

Eles ainda dizem que “ambos os lados se opõem às ações hegemônicas dos Estados Unidos para mudar o equilíbrio de poder na região do Nordeste Asiático, expandindo sua presença militar e formando blocos militares. Os EUA, com sua mentalidade de Guerra Fria e modelo de confrontação de campos, colocam a ‘segurança de pequenos grupos’ acima da segurança e estabilidade regionais, colocando em risco a segurança de todos os países da região. Os EUA devem parar com essas ações.”

Além disso, a declaração fala de “séria preocupação com as tentativas dos Estados Unidos de minar a estabilidade estratégica para manter sua superioridade militar absoluta, incluindo a construção de um sistema global de defesa antimísseis e a implantação de sistemas de defesa antimísseis ao redor do mundo e no espaço, fortalecendo a capacidade de desabilitar as ações militares do oponente com armas não nucleares de precisão e ataques de ‘decapitação’, aprimorando os arranjos de ‘compartilhamento nuclear’ da OTAN na Europa e fornecendo ‘dissuasão estendida’ a aliados específicos, construindo infraestrutura no tratado de Zona Livre de Armas Nucleares do Pacífico Sul membro Austrália que poderia ser usada para apoiar as forças nucleares dos EUA e do Reino Unido, envolvendo-se na cooperação nuclear EUA-Reino Unido-Austrália e implementando planos para implantar e fornecer mísseis de alcance intermediário e curto baseados em terra a aliados na região Ásia-Pacífico e na Europa.”

A declaração também condena “a política de ‘contenção dual’ não construtiva e hostil dos Estados Unidos em relação à China e à Rússia”: “As ações dos Estados Unidos de conduzir exercícios conjuntos com seus aliados ostensivamente visando a China e a Rússia e tomar medidas para implantar mísseis de alcance intermediário baseados em terra na região Ásia-Pacífico levantaram sérias preocupações para ambos os lados. Os Estados Unidos afirmam que continuarão com essas práticas com o objetivo final de estabelecer implantações rotineiras de mísseis em todo o mundo. Ambos os lados condenam fortemente essas ações, que são extremamente desestabilizadoras para a região e representam uma ameaça direta à segurança da China e da Rússia, e fortalecerão a coordenação e cooperação para responder à política de ‘contenção dual’ não construtiva e hostil dos Estados Unidos em relação à China e à Rússia.”

Sobre a Ásia-Pacífico, especificamente, eles escrevem que “ambos os lados se opõem à criação de estruturas de grupo exclusivas e fechadas na região Ásia-Pacífico, especialmente alianças militares que visem qualquer terceira parte. Ambos os lados apontam que a ‘Estratégia Indo-Pacífica’ dos EUA e as tentativas da OTAN de tomar ações destrutivas na região Ásia-Pacífico têm impactos negativos na paz e estabilidade da região.”

Eles também “demandam que os Estados Unidos se abstenham de realizar quaisquer atividades militares biológicas que ameacem a segurança de outros países e regiões” e se opõem ao “uso [do] espaço sideral para confronto armado e se opõem à implementação de políticas e atividades de segurança que visam alcançar vantagem militar e definir o espaço sideral como um ‘domínio de combate’.”

Por fim, a declaração condena “as ações dissuasoras dos EUA e seus aliados no campo militar, provocando confrontos com a República Popular Democrática da Coreia e exacerbando as tensões na Península Coreana, potencialmente levando a um conflito armado”, e pede que “os Estados Unidos e a OTAN, como partes responsáveis pela invasão e ocupação de 20 anos do Afeganistão, não tentem implantar instalações militares no Afeganistão e em suas áreas circundantes novamente, mas assumam a responsabilidade primária pelas atuais dificuldades econômicas e de subsistência do Afeganistão, assumam os principais custos da reconstrução do Afeganistão e tomem todas as medidas necessárias para descongelar os ativos nacionais do Afeganistão.”

EXPANSÃO ENORME DA COLABORAÇÃO CHINA-RÚSSIA

Este será meu último ponto, a declaração contém uma lista imensa – dezenas e dezenas de itens – de campos de cooperação ampliada entre os dois países.

Estes são alguns dos mais importantes:

– Cooperação militar: “[ambos os lados] aprofundarão ainda mais a confiança mútua e a cooperação militar, expandirão a escala das atividades de treinamento conjunto, organizarão regularmente patrulhas conjuntas marítimas e aéreas, fortalecerão a coordenação e cooperação dentro de estruturas bilaterais e multilaterais, e melhorarão continuamente a capacidade e o nível de responder conjuntamente a riscos e desafios.”
– Mais comércio, investimentos mútuos e auxílio ao desenvolvimento econômico mútuo: “expandir continuamente a escala do comércio bilateral”, “melhorar continuamente o nível de cooperação de investimentos entre os dois países”, e “desenvolver conjuntamente indústrias avançadas, fortalecer a cooperação técnica e de produção, incluindo na indústria de fabricação de aviação civil, indústria de construção naval, indústria de fabricação de automóveis, indústria de fabricação de equipamentos, indústria eletrônica, indústria metalúrgica, indústria de mineração de minério de ferro, indústria química e indústria florestal”
– Cooperação em energia: “consolidar a cooperação estratégica em energia entre a China e a Rússia e alcançar um desenvolvimento de alto nível, garantindo a segurança econômica e energética dos dois países. Esforçar-se para garantir a estabilidade e sustentabilidade do mercado internacional de energia e manter a estabilidade e resiliência da cadeia da indústria energética global e da cadeia de suprimentos.” Também energia nuclear: “aprofundar a cooperação no campo da energia nuclear civil com base na experiência de projetos bem-sucedidos e em andamento, incluindo fusão termonuclear, reatores de nêutrons rápidos e ciclos fechados de combustível nuclear”
– Promover as moedas e infra estruturas financeiras de cada um: “Aumentar a proporção de moeda local no comércio bilateral, financiamento e outras atividades econômicas. Melhorar a infraestrutura financeira dos dois países, facilitar os canais de liquidação entre as entidades empresariais dos dois países, fortalecer a cooperação regulatória nos setores bancário e de seguros da China e da Rússia, promover o desenvolvimento saudável de bancos e instituições de seguros estabelecidos em cada país, incentivar o investimento bidirecional e emitir títulos nos mercados financeiros de cada país de acordo com os princípios de mercado.”
– Cooperação profunda em educação e ciência: “promover a expansão e melhoria da qualidade dos programas de estudo mútuo, avançar no ensino da língua chinesa na Rússia e no ensino da língua russa na China, incentivar as instituições educacionais a expandirem os intercâmbios, a cooperação na gestão de escolas, realizar treinamento conjunto de alto nível de talentos e pesquisa científica, apoiar a cooperação em campos de pesquisa básica entre universidades, apoiar atividades de alianças de universidades e escolas secundárias semelhantes, e aprofundar a cooperação em educação vocacional e digital”
– Cooperação na mídia e formação de opiniões públicas: “Fortalecer as trocas midiáticas entre os dois países, promover visitas mútuas em vários níveis, apoiar diálogos pragmáticos e profissionais, realizar ativamente cooperação de conteúdo de alta qualidade, explorar profundamente o potencial de cooperação das novas mídias e novas tecnologias no campo da mídia de massa, relatar objetiva e compreensivamente os principais eventos globais e espalhar informações verdadeiras no campo da opinião pública internacional.”
– Cooperação dentro de instituições globais: “aprofundar a cooperação bilateral [na] Assembleia Geral da ONU e no Conselho de Segurança”, “apoiar o papel da Organização Mundial da Saúde”, “fortalecer a cooperação dentro do quadro da OMC”, “cooperar dentro do quadro da Organização de Cooperação de Xangai (SCO)”, “defender o espírito dos BRICS, aumentar a voz do mecanismo BRICS nos assuntos internacionais e agenda”, etc.

Esta declaração é absolutamente extraordinária e provavelmente moldará o mundo nas próximas décadas. Agora temos Rússia e China explicitamente afirmando que estão totalmente comprometidos um com o outro para trazer uma nova “ordem multipolar igual e ordenada e a democratização das relações internacionais” e acabar com o comportamento hegemônico dos EUA. Não é mais uma pretensão, está acontecendo.

Sobre a Ucrânia, esta parte da declaração pode ser significativa: “A Rússia avalia positivamente a posição objetiva e justa da China sobre a questão da Ucrânia e concorda com a visão de que a crise deve ser resolvida com base no pleno cumprimento da Carta da ONU.”

Porque “pleno cumprimento da Carta da ONU” implicaria respeitar o Artigo 2 sobre integridade territorial…

Vamos ver… Aparentemente, Xi e Putin tiveram uma “troca profunda de opiniões sobre a crise na Ucrânia”, com Xi sendo citado como querendo “um acordo político precoce da questão da Ucrânia”, então provavelmente veremos algumas iniciativas em torno disso.

A declaração também diz que “ambos os lados acreditam que, para resolver de forma constante a crise na Ucrânia, as causas raiz da crise devem ser eliminadas, o princípio de segurança indivisível deve ser mantido e os interesses e preocupações de segurança razoáveis de todos os países devem ser levados em consideração.”

“As causas raiz”, da perspectiva da China e da Rússia, é claro, sendo a expansão da OTAN e a tentativa de transformar a Ucrânia em uma fortaleza ocidental contra a Rússia. Isso significa que se essas “causas raiz” forem “eliminadas” (presumivelmente significando que a Ucrânia se torne neutra), então a Rússia concordaria em retirar suas tropas, ou seja, um acordo semelhante ao que quase foi assinado em Istambul em março de 2022? Não sei, novamente, vamos ver…

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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