Por Jacqueline Muniz – DSP/UFF
Uma armadilha retórica: se a culpa é sempre da política, a culpa também será de todo e qualquer governo antes, durante e depois das enchentes no RS, pouco importando o que tenham feito ou deixado de fazer de bom ou de ruim.
Um alerta: Bolsonaro monopolizava a narrativa ao se antecipar e falar mal de si mesmo e de seu governo. Assim, mantinha a farsa libertária antissistema de que a política seria tão-somente o lugar da mentira, da corrupção e da manipulação nos governos. Foi, assim, que se constituiu a “santíssima Trindade Bolsonariana” do senhor da guerra, do mercador da proteção e do profeta do caos que orienta até hoje a narrativa Bolsonarista.
Esta funda-se no aparelhamento do medo pela desinformação para gerar ondas de pânicos sociais que comprometem as rotinas, a previsibilidade da vida social. Promove o agravamento coletivo do temor para criar unidades identitárias inclusivas pelo ódio comum. Instrumentaliza o sentimento de insegurança para disseminar a desconfiança generalizada contra o Estado e suas instituições e, desta forma, sabotar a cooperação, a solidariedade e a empatia sociais, implodindo as políticas públicas.
E, por tudo isso, enraíza o Estado Ínfimo ultraliberal que cria a cidadania precariada e a institui como um programa de milhagem. Este promove o circo da competição predatória dos hipocidadãos por direitos, antes universais, pervertidos em premiações meritórias e exclusivas aos vitoriosos hipercidadãos na gincana do auto resgate socioeconômico composta por um novo grupo de status: os empobrecidos empreendedores do próprio miserê.
Por tudo isso, não é oportuno reproduzir este truque retórico perverso diante dos estados de emergência e de calamidade pública que requerem prontidão e pronta-resposta estatal intersetorial, intergovernamental e interagências, com plena cobertura territorial e coordenação federativa em tempo real.
E, claro, só o estado é capaz disso com seu pessoal, estrutura, meios e modos de intervenção ininterrupta e estendida a todos. E, claro, enquanto o mercado amoral, entregue a si mesmo, pode se sentir a vontade para especular com vidas, mercadorias e bens essenciais, gerando escassez para ganhar mais nas tragédias e nas demandas inadiáveis por sobrevivência.
Por tudo isso, não é apropriado fazer uso da artimanha retórica de culpar, no genérico, o Estado e a Política, diante a massiva mobilização da sociedade brasileira por socorro, em especial a população gaúcha flagelada que se segue com os pés n’água, com a cabeça digna levantada atenta a próxima dificuldade e com os braços abertos para autoajuda.
Pois isto, no aqui e agora, produz desesperança, colapso físico e mental, enfim, paralisia, desistência e resignação em todos que já estão desterrados e despossados de suas vidas com a tragédia das enchentes.
Uma constatação: A crítica imediatista, sem dados substantivos e análises confiáveis, com densidade temporal realizadas por pesquisadores, técnicos e gestores nos assuntos ambientais e, sobretudo, quando feita no tempo imediato da urgência e da emergência da calamidade pública, e cuja ação estatal de contingência não pode esperar e nem se guiar pelas opiniões perecíveis em redes sociais digitais, tende a ser vista como um “falar mal por falar mal”, um “torcer pelo quanto pior melhor para mim”, um “querer aparecer na hora errada”, “um tirar partido da desgraça dos outros”.
Tende a ser percebida como vozes de aves de mau-agouro ou de rapina contra as vítimas diretas e indiretas da enchente no Rio Grande do Sul e sua trágica e longeva situação.
Afinal, esta seguirá exigindo ação governamental federativa coordenada e de apoio da sociedade brasileira por muito tempo. Tempo suficiente para cobrar os políticos pelo que fizeram, desfizeram e deixaram de fazer nas políticas públicas ambientais e seus marcos normativos-legais, as quais possibilitaram o agravamento dos eventos climáticos e comprometeram a gestão pública e, ainda, a execução de planos de contingência efetivos na hora da verdade das enchentes no Rio Grande do Sul.
Tempo suficiente para indagar ao executivo, o legislativo e o judiciário, especificando seus sujeitos sobre os resultados, efeitos e consequências de suas ações, inações e omissões. E que, salvo exceções, aparecem mascaradas no tradicional, superficial e conveniente modus operandi das autoridades de “dar uma satisfação” qualquer ou um “cala boca da sociedade” nas mídias.
Uma obviedade: A crítica pela crítica com seu ilusionismo de imparcialidade e independência, tende ao moralismo de culpabilizar e, mais uma vez, dar pito nos eleitores gaúchos progressistas, conservadores e liberais – hoje todos os eleitores flagelados – que votaram nos governantes municipal, estadual e federal que estão aí.
Isto dá protagonismo aos discursos extremistas da ultradireita nas redes sociais digitais que promovem o “sou do contra tudo que está aí” com as Fake News e os vaticínios de cientistas de Facebook. Estes discursos não gostam nem do Estado e nem da sociedade, e preferem indivíduos avulsos, temerosos e suspeitosos mais facilmente radicalizáveis.
É assim que se destitui a ética política da responsabilidade, da transparência e da prestação de contas, que requer um amplo percurso cronológico de aferições, em favor de uma outra ética que as críticas oportunistas querem fazer crer que estão a questionar. Qual ética?
A ética de se produzir resultados político-eleitorais e de ampliar engajamento e likes como propaganda autopromocional a qualquer custo. Ao custo do Rio Grande do Sul se encontrar debaixo d’água. Ao custo de tornar a tragédia instamagravél nas timelines. Isto faz do disseminador audaz de verdades instantâneas e mais precipitadas que as graves chuvas que seguem caindo, um supersujeito narcísico e monetarizado mais importante, mais visível do que a dramática e desesperadora realidade vivida pela população gaúcha.
Não é que “não esteja na hora de buscar os culpados”. É que a hora de agora é a de agir diante da situação inadiável que se impõe e atravessa todo o Rio Grande do Sul. A hora do agora é a de identificar, monitorar e cobrar as atribuições do Estado e dos governos, inaugurando já um percurso público de mapeamento de responsabilidades passadas e presentes que permitam apontar, de forma também responsável, a responsabilizações políticas, civis e criminais ao longo do tempo.
“Buscar culpados”, que não fiquem impunes e sem lavajatismos, dá trabalho e leva mais tempo porque exige, primeiro, o trabalho sistemático de produzir accountability e responsabilizar que vai além da denúncia instaurada, da queixa e da crítica legítimas.
Jacqueline Muniz é antropóloga e professora do Departamento de Segurança Pública da UFF
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