Julgamento é o primeiro da série envolvendo membros de rede de extrema direita liderada por “príncipe” e da qual fazia parte alemão com laços no Brasil.
A Justiça alemã começa a julgar nesta segunda-feira (29/04) os primeiros réus acusados de pertencer a uma rede de extrema direita que planejava tentar derrubar as instituições democráticas alemãs e tomar o poder por meio de um golpe de Estado.
O grupo, que seguia teorias conspiratórias e elaborava planos para uma tomada violenta do poder, foi desbaratado pela polícia em dezembro de 2022. Na ocasião, foram presas mais de duas dezenas de pessoas, entre elas um aristocrata – apontado como a principal liderança do grupo –, ex-militares e uma juíza, entre outros.
O julgamento desta segunda-feira, que ocorre em Stuttgart, envolve nove réus – entre eles um ex-militar e um sargento da ativa das Forças Armadas da Alemanha. Eles são acusados de fazer parte da chamada “ala militar” da rede, que, segundo a denúncia do Ministério Público Federal, seria responsável por lançar atos de violência, incluindo uma invasão armada do Bundestag (Parlamento alemão).
Ainda estão previstos outros dois julgamentos, envolvendo 17 réus. Um deles, previsto para maio em Frankfurt, vai concentrar os réus acusados de fazerem parte da liderança da rede.
Ideologia e planos do grupo
Em 7 de dezembro de 2022, 3.000 policiais foram mobilizados na Alemanha em uma das maiores operações antiterrorrismo da história moderna do país europeu.
Em poucas horas, os alvos foram revelados para a imprensa: 25 pessoas foram presas por suspeita de filiação a uma organização terrorista e por suspeita de planejar um golpe. Mais três pessoas acabariam presas nos meses seguintes.
Os presos não eram extremistas religiosos ou estrangeiros, em contraste com outras grandes operações policiais anteriores, mas quase todos alemães, vários já idosos e com curso superior. Entre eles estavam aristocratas, dois ex-coronéis do Exército, um ex-investigador de polícia, uma médica, um tenor, um chef de cozinha, uma astróloga, um instrutor de sobrevivência na selva e até uma juíza e ex-deputada. Uma cidadã russa também foi presa. As autoridades também apreenderam mais de 300 armas de fogo e mais de 150 mil munições.
Heinrich 13º, “príncipe” de Reuss. após ser preso em dezembro de 2022. Ele foi apontado como o principal líder da rede | Boris Roessler/dpa/picture alliance
Os presos foram acusados de serem membros de uma célula de extrema direita chamada “União Patriótica”, com laços estreitos com o movimento Reichsbürger (“Cidadãos do Império Alemão”), que rejeita a moderna democracia alemã. Segundo as autoridades, os membros do grupo acreditavam em um “conglomerado de teorias da conspiração”, entre elas a crença de que a Alemanha moderna seria uma construção ilegítima governada por membros de um chamado Deep State (Estado profundo).
Segundo o Ministério Público Federal alemão, a “União Patriótica” planejava realizar um ataque ao Bundestag em Berlim para provocar caos no país e criar condições para uma tomada violenta do poder. Como preparação, o grupo aparentemente organizou exercícios de tiro e chegou a espionar o interior do Bundestag. “Desde agosto de 2021, o pequeno grupo preparava, com um braço armado, a invasão do Bundestag em Berlim, com o objetivo de prender os deputados e derrubar o sistema”, apontou a denúncia.
As autoridades também afirmam que o grupo extremista também teria tentado recrutar soldados e policiais e elaborado listas de inimigos, além de tentar formar centenas de células armadas em todo o país.
Pelo plano dos golpistas, a ofensiva seria colocada em marcha num chamado “Dia X” e, caso fosse bem-sucedida, resultaria na nomeação do seu principal líder, um aristocrata chamado Heinrich 13º Reuss, que ostenta o título de “príncipe”, como novo chefe de Estado alemão. Os conspiradores então pretendiam negociar um “novo tratado de paz” com as antigas potências aliadas da Segunda Guerra Mundial: EUA, França, Reino Unido e principalmente com a Rússia.
Membros do movimento Reichsbürger e adeptos da teoria QAnon exibem antigas bandeiras imperiais durante um protesto contra medidas anticovid em 2020 | SULUPRESS/picture alliance
Segundo as investigações, vários membros da liderança do grupo também são adeptos de teorias conspiratórias do movimento QAnon, que acredita que as principais instituições de governo do mundo são dominadas por uma elite de pedófilos satanistas. Outros membros eram ligados a movimentos antivacinas e participaram de protestos contra restrições governamentais durante a pandemia.
Segundo as autoridades, nenhuma fantasia parecia suficientemente delirante para alguns membros do grupo, que chegaram ao ponto de acreditar que a enchente no Vale do Ahr, no estado alemão Renânia do Norte-Vestfália, em 2021, teria sido na realidade uma tentativa artificial do governo alemão para encobrir o assassinato de centenas crianças aprisionadas em bunkers. Em escutas telefônicas, membros do grupo também foram gravados afirmando que o “Estado sionista” e “judeu” da Alemanha iria desaparecer em breve e que homossexuais seriam “finalmente destruídos”.
Julgamento em local simbólico
Os nove réus serão julgados pelo Tribunal Regional Superior de Stuttgart. “Este é um dos maiores processos envolvendo a segurança do Estado na história da República Federal”, disse o presidente do tribunal, Andreas Singer.
Os procedimentos judiciais serão realizados num prédio de segurança máxima instalado dentro do complexo penitenciário de Stammheim, num subúrbio de Stuttgart.
O prédio, inaugurado em 2019, fica a poucos metros de outra antiga corte de segurança máxima na qual foi realizada o “Processo de Stammheim”, que julgou entre 1975 e 1977 quatro membros do grupo terrorista anticapitalista de esquerda Fração do Exército Vermelho (RAF), também conhecido como “Grupo Baader-Meinhof” ou “Gangue Baader-Meinhof”. No momento, o antigo tribunal está sendo demolido.
Os quatro membros da RAF – Andreas Baader, Ulrike Meinhof, Gudrun Ensslin e Jan-Carl Raspe – ficaram aprisionados em uma ala de segurança máxima localizada no mesmo complexo. Um dos membros do grupo, Meinhof, cometeu suicídio em sua cela antes da conclusão do julgamento. Os três outros cometeram suicídio coletivo na prisão pouco menos de seis meses após serem sentenciados à prisão perpétua depois serem considerados culpados das acusações de homicídio, terrorismo, assalto a banco e roubos.
Os terroristas de esquerda Andreas Baader e Gudrun Ensslin foram julgados em Stuttgart-Stammheim nos anos 1970 | picture alliance/AP Images
Quais são as acusações enfrentadas pelos réus?
O Ministério Público da Alemanha denunciou em dezembro de 2023 um total de 27 pessoas – 22 homens e cinco mulheres – por suspeita de pertenceram à rede terrorista “União Patriótica”. Um dos acusados, de 72 anos, morreu em março, reduzindo o número para 26 réus.
Todos são acusados oficialmente de formação de organização terrorista e planejamento de uma ação de alta-traição.
Um dos nove réus do julgamento de Stuttgart, que foi preso em 2023, meses depois da operação policial que desbaratou o grupo, também é acusado de tentativa de homicídio. Segundo as autoridades, ele efetuou disparos com um fuzil semiautomático, causando ferimentos em dois policiais.
Um “príncipe”, uma juíza e um ex-militar com laços no Brasil entre os líderes
O acusado que ganhou mais notoriedade após o desbaratamento da rede seria um dos principais líderes do grupo, Heinrich 13º, “príncipe” de Reuss, descendente de uma linhagem aristocrata do estado da Turíngia e que atuava como empresário do ramo imobiliário. Investigações apontaram que Reuss tentou se reunir sem sucesso com representantes do governo russo para obter apoio ao golpe.
Outra acusada de pertencer à liderança do grupo é Birgit Malsack-Winkemann, juíza e ex-deputada do partido ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD), que exerceu mandato no Bundestag de 2017 a 2021 e teria planejado franquear aos conspiradores acesso a edifícios parlamentares. Ela foi suspensa de suas funções na Justiça de Berlim após a operação policial de 2022.
Birgit Malsack-Winkemann, juíza e ex-deputada acusada de fazer parte do complô | Wolfgang Kumm/dpa/picture alliance
Outro membro da liderança identificado pelas autoridades é Rüdiger von Pescatore, um ex-militar. Entre 1993 e 1996, Pescatore foi comandante de um batalhão de paraquedistas. Ele teria sido expulso das Forças Armadas alemãs devido à venda ilegal de armas dos estoques do antigo exército da Alemanha Oriental. Rüdiger também costumava passar parte do seu tempo no Brasil. Há empresas registradas em seu nome em Santa Catarina e ele atuou como representante comercial de companhias de energia no Brasil.
Segundo os promotores, caso o golpe fosse bem-sucedido, Heinrich 13º assumiria a liderança do Estado alemão, enquanto Rüdiger seria nomeado chefe militar. Já Malsack-Winkemann assumiria a chefia do Ministério da Justiça.
Outros julgamentos
O julgamento que tem início nessa segunda-feira em Stuttgart envolve apenas uma parte dos acusados de pertencer ao grupo. No caso, a chamada “ala militar” da rede golpista. Outros dois julgamentos devem ter início em Frankfurt (maio) e Munique (junho).
O julgamento em Frankfurt vai se centrar na liderança do grupo, num total de nove pessoas. Entre eles estão o “príncipe” Reuss, a juíza Malsack-Winkemann e o ex-militar Pescatore, além do coronel reformado do Exército Maximilian Eder.
Já o processo em Munique envolve oito membros secundários da organização, incluindo doadores.
Por causa da complexidade dos processos – espera-se que acusados em um julgamento testemunhem em outros, por exemplo – , todos os procedimentos judiciais só devem ser concluídos em 2025.
O que é o movimento Reichsbürger?
Os acusados que começam a ser julgados foram apontados como associados ao Reichsbürger, que se traduz como “Cidadãos do Império Alemão”. O movimento, que ganhou notoriedade os últimos anos, nega a legitimidade do moderno Estado da Alemanha. Os adeptos acreditam que o Estado atual não passa de uma construção administrativa artificial e que a Alemanha ainda seria ocupada pelas potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial. Para eles, as fronteiras de 1937 do Império Alemão ainda existem.
Um “passaporte” produzido pelos Reichsbürger. Movimento rejeita documentos da Alemanha moderna | Picture-Alliance/dpa/P. Seeger
Os Reichsbürger também não aceitam a legalidade das autoridades governamentais da Alemanha. Vários se recusam a pagar impostos e declararam seus próprios pequenos “territórios nacionais”, que batizam com nomes como “Segundo Império Alemão”, “Estado Livre da Prússia” ou “Principado da Germânia”. Outro traço em comum é a rejeição da democracia, tendências monarquistas, xenofobia e antissemitismo.
Os membros desses grupos costumam imprimir seus próprios passaportes e carteiras de motorista com antigos símbolos do Império Alemão (1871-1918).
As autoridades de segurança estimam que existam 20.000 Reichsbürger na Alemanha, dos quais cerca de 2.300 são propensos a cometer atos de violência. Em um caso notório da Alemanha, em abril de 2022, quatro seguidores do movimento foram acusados de arquitetar um plano para tentar sequestrar o ministro da Saúde da Alemanha, o social-democrata Karl Lauterbach, por causa de medidas impostas pelo governo contra a pandemia. Armas e munições foram apreendidas na ocasião. O movimento também costuma se mesclar com adeptos de teorias conspiratórias, como o culto QAnon e o meio antivacinas.
Armas apreendidas com Reichsbürger durante uma operação em 2018
Publicado originalmente pelo DW em 29/04/2024
Por Jean-Philip Struck
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!