A academia centenária fará história empossando, pela primeira vez, um líder indígena, escritor, ambientalista e homem sábio nesta sexta-feira (05), no Rio de Janeiro
A Academia Brasileira de Letras (ABL) tem em seu pilar a celebração e o cultivo da lusofonia e não deixa de ser revolucionário que Ailton Krenak, como o mais novo imortal, entrará na instituição para promover o que ele chama de “língua brasileira”. A língua falada no Brasil que, mesmo de origem lusitana, tem semântica e léxicos próprios, resulta em um vasto vocabulário de palavras indígenas e africanas. É a língua do ‘tupi or not tupi’, que Ailton parafraseia do célebre trocadilho do escritor Oswald de Andrade (1890-1954) para a frase clássica de “Hamlet”, de William Shakespeare, enquanto conversa com a Amazônia Real para esta entrevista.
Ailton é o retrato final de um momento histórico. Em 524 anos da invasão dos portugueses ao Brasil, ele será o primeiro escritor indígena a ser empossado como imortal na sede da ABL, no Rio de Janeiro. O evento acontece nesta sexta-feira (05), às 20h (horário de Brasília) e terá transmissão pelo Youtube. Fundada em 1897, a ABL rompe mais um pouco com alguns resquícios de elitismo e conservadorismo que marcam sua história, desde quando, somente em 1977, abriu os braços para uma mulher – a escritora Raquel de Queiroz (1910-2003) – em seu espaço.
“Eu disse que levaria comigo mais de 200 línguas nativas do Brasil. E que o português não é uma língua brasileira. É uma língua europeia. Já comecei dando esse sinal óbvio de que não vou para lá ampliar a lusofonia. Vou promover uma sinfonia. Essa sinfonia é estimada pelos linguistas em 180 línguas indígenas”.
Desde a década de 80 quando liderou os primeiros passos do movimento indígena no país e, principalmente, quando pintou o rosto de tinta preta de jenipapo, durante os debates acirrados da Constituição de 88, sabemos que Ailton Krenak é um porta-voz e personalidade exuberante, contagiante, criativa, pioneira e ligeiramente irônica.
Ele vive cercado de admiradores, de aliados e está atento às tendências iluministas da vida moderna e tecnológica. Aos 71 anos, sempre em atividade, quer promover as línguas originárias na academia em parceria com os companheiros e companheiras da ABL e, sobretudo, com os jovens escritores indígenas.
Nos últimos anos, Ailton Krenak rompeu fronteiras, com livros traduzidos em 19 países. “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” tem edições no Japão, na Turquia, na Tchecoslováquia, em toda a América Latina, e por aí vai. O mais curioso é que o livro teve uma tradução para o português de Portugal. Recebeu até um título novo: ‘Ideias para salvar a humanidade”. Ele também é autor de “Futuro Ancestral” e “O amanhã não está à venda”, entre outros.
“Eu tive a aquisição de direitos de tradução de ‘Ideias para adiar o fim do mundo’ para o português. Esse meu livro foi publicado na suposta língua do Brasil, que é o português. Eles disseram ‘não, queremos traduzir o livro para o português’. Isso significa que os falantes naturais de português consideram que nossa língua é brasileira, não é português”, diz ele, com irreverência.
Em 2022, Ailton já havia sido eleito na Academia Mineira de Letras. Em 2023, seu nome começou a circular como “favorito” à cadeira de número 5 da ABL, em vaga deixada pelo historiador José Murilo de Carvalho, que faleceu em agosto do ano passado. Para ele, foi surpresa. E o que pareceu no início como desdém de sua parte, foi imediatamente interpretada como uma convocatória, quando ouviu de Fernanda Montenegro, que entrou para a ABL em 2022: ‘eu quero que você venha para a academia, Ailton Krenak’.
Na aguardada posse que acontece nesta sexta-feira, Ailton vestirá o tradicional fardão da ABL. Na cerimônia, será recebido pela escritora e acadêmica Heloísa Teixeira.
Desde o início do ano, ele passou por três provas do traje. Vai se vestir igual seus futuros companheiros acadêmicos e usará como único acessório distinto a bandana do povo Huni-Kuin, do Acre, que marca a sua persona e imagem. Estará acompanhado de um grupo de convidados especiais, que ele próprio escolheu. Uma das ausências notórias será seu amigo de décadas, Davi Kopenawa Yanomami, que está em viagem ao exterior nesta data.
Nesta semana, Ailton Krenak concedeu uma entrevista online à Amazônia Real de sua casa, na aldeia, poucos dias antes da data histórica. Ele estava tranquilo, aguardando a cerimônia. Como novo imortal, suas experiências se acumularão nas escritas e nos movimentos pela valorização das línguas indígenas. Leia a entrevista:
Ailton Krenak segura um maracá durante Feira do Livro | Fotos de Andrea Nestre
Amazônia Real – Como você está se preparando para a posse, o que vai usar?
Ailton – É um fardão confeccionado por um alfaiate que tradicionalmente borda. Fiz três provas de roupa. Estava me achando a noiva. Finalmente a farda está pronta. Eu vinha recebendo sugestões… ‘manda confeccionar uma roupa’, ‘não use fardão’, ‘bota um cocar’. Teve piadinhas: ‘vai nu’. Vi que isso tudo era contornar o momento histórico de uma pessoa que tem a biografia do Ailton Krenak: chegar na Academia Brasileira de Letras. Não preciso botar um adorno para que saibam que eu tenho uma literatura, uma escrita da oralidade, e que ela já é reconhecida em diferentes lugares do mundo. Meus livros são traduzidos na Turquia, no Japão, na Coreia. A Europa inteira traduz meus livros. Em 19 países. Na América Latina toda. Na Tchecoslováquia. Tem lugares que nunca que achava ‘Ideias de adiar o fim do mundo’ fosse ganhar tradução. Então, a ABL sabe quem está convidando. Mas vou botar a faixa que sempre me identifica. Aquela faixa ‘kenê’, de tradição dos Huni Kuin, que são meus parentes pela descendência. Tenho uma filha que é mãe de um jovem Kaxinawá [outro nome dos Huni Kuin], que é o Siã. O avô dele é o Siã Huni Kuin. E o bisavô é o Suero, meu velho companheiro que não está por aqui. Encantou-se. Tenho uma variante direta que me permite usar a bandana Kaxinawá. Que já é reconhecida no Brasil inteiro. Na periferia, nos colégios, os meninos me desenham no muro pela bandana. É uma coisa meio Che Guevara.
Amazônia Real – Ailton, como você soube da sua nomeação? Você declarou anteriormente que foi uma surpresa.
Ailton – Eu fui surpreendido com uma nota de jornal quando estava cuidando da minha própria jornada, dizendo: ‘Ailton é apontado como favorito para ocupar a cadeira número 5, deixada por José Murilo de Carvalho’. Um historiador de muita alta relevância. E o Krenak é também de Minas, assim como José Murilo. Favorito a que? Me disseram que eu tinha uma forte indicação para ocupar a cadeira número 5. Eu falei: ‘só uma possibilidade muito além da expectativa’. Acabei de entrar na Academia Mineira de Letras, onde já acho que é um espaço que pode me exigir muito mais do que estou disponível. Eu falei isso na ocasião. Me disseram ‘você deu o maior banho de água fria’ na ABL. De repente você prejudicou sua eleição. Eu falei: ‘não sou candidato a nada’. Então, eu fui convidado a entrar na academia. Essa que é a questão. Não empurrei a porta da academia. Fui acolhido de uma maneira muito gentil e cordial por todos aqueles senhores e senhoras. E uma senhora da estatura de Fernanda Montenegro dizer: ‘eu quero que você venha para a academia, Ailton Krenak’. Isso para mim é uma convocatória.
Amazônia Real – Você vai atuar em um ambiente que valoriza a língua portuguesa. Como é possível reverter o predomínio da língua europeia, que tem toda essa raiz colonial? Como você se prepara para isso?
Ailton – Admiravelmente, assim que fui eleito…. teve uma eleição. Tive um número de votos. Eu disse que levaria comigo mais de 200 línguas nativas do Brasil. E que o português não é uma língua brasileira. É uma língua europeia. Já comecei dando esse sinal óbvio de que não vou para lá ampliar a lusofonia. Vou promover uma sinfonia. Essa sinfonia é estimada pelos linguistas em 180 línguas. Mas o movimento indígena e as campanhas dizem que são 305. Existem 305 etnias reconhecidas. Nem todas têm a sua língua materna ativa. Mas têm registros. Alguns têm registros do século 18, 19, das suas línguas. Os estudos do Museu Nacional sobre línguas indígenas cresceram muito. Hoje há jovens indígenas se doutorando nessa disciplina, nessa especialidade, na linguística. Então, os linguistas indígenas vão ser meus colegas na ABL para trabalhar a temática da língua materna.
Amazônia Real – Quais serão suas ações iniciais na ABL?
Ailton – Vou promover um evento em maio que tem o significativo título de ‘Língua-Mãe’. Ele vai convocar alguns filólogos indígenas. São pessoas que já produziram vocabulário, dicionário. Que já publicaram. O Joaquim Maná Kaxinawá [professor indígena do Acre) é doutor em linguística e fez importante trabalho que é produzir uma enciclopédia da língua Huni Kuin. Ele acabou de publicar uma gramática da língua. Vou criar uma plataforma para que todas as informações relevantes sobre as línguas originárias possam estar em constantes atualizações de informações, fatos. Surgindo inclusive para que os especialistas em línguas indígenas possam aumentar esse trabalho e despertar as línguas que por acaso estejam dormentes. Sei que existe uma consideração que ideia clássica de línguas mortas. O latim chegou a ser considerado uma língua adormecida. Não acredito que existam línguas extintas. Você pode extinguir fisicamente um povo. A língua não.
Amazônia Real – A programação “Língua-Mãe” será onde?
Ailton – No Museu das Culturas Indígenas em São Paulo, num episódio de dois dias. Depois em um episódio de um dia, no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) no Rio de Janeiro, na programação da exposição que eu sou curador, “Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak”. É uma exposição que homenageia o fotógrafo Nagakura e dentro desse espaço vai acontecer um equitativo sobre língua-mãe.
Amazônia Real – Como esse projeto será conectado com seu trabalho na academia?
Ailton – Para cada membro da academia, de acordo com suas diversas áreas de interesse, onde são reconhecidamente autoridades, vão solicitar apresentar um projeto. Tipo assim: ‘você vem para cá, você traz alguma coisa do seu mundo?’ Eu disse: ‘levo as línguas maternas do Brasil’. Eu disse que vou criar uma plataforma vinculada à minha cadeira número 5 que é uma plataforma de línguas indígenas. Vai ser acessível para os jovens, para as pessoas espalhadas no país afora e que tem interesse com línguas nativas. Vão poder contribuir, pesquisar conteúdo, numa plataforma sobre línguas indígenas.
Estou fazendo isso junto com colegas do Museu Nacional (RJ), do Museu da Pessoa (SP), iniciativa de jovens indígenas que estão nas universidades. Hoje temos uma rede de mais de 50 mil jovens frequentando o ensino superior no Brasil. Os nossos queridos fizeram o primeiro encontro científico dessa união pluriétnica dos povos indígenas no ensino superior. O Jaime Diakara [antropólogo indígena do povo Dessana, do Amazonas] criou o símbolo dessa nova organização de pesquisadores científicos indígenas. Alguns entre eles são linguistas e vão ser importantes colaboradores da plataforma. Eu acho que não tem coisa mais definitiva e clara do que o que vou fazer lá é criar uma fricção entre as línguas presentes na diversidade cultural do Brasil e o português que é a língua da academia.
Amazônia Real – Por que entrar na Academia Brasileira de Letras, uma instituição literária que sempre teve a marca do elitismo? Por que é importante nesse momento?
Ailton – Você podia me perguntar ‘Ailton, por que você pintou seu rosto de preto na Constituinte 87 e 88’? Modéstia à parte, vou te dizer que não tinha outro para fazer aquilo. Há outro que poderia ir para ABL nesse momento? Historicamente a ABL é realmente elitista. Até 1977 além de elitista, era patriarcal. Só tinha homem. Apesar de ser criado por Machado de Assis, só tinha homem e branco. Ex-presidentes da república, marechais, generais, figuraças da república, desembargadores, ministros. Então era lógico que era um encontro de feudais. Alguns eram intelectuais. Mas não era uma condição necessária. Alguns estavam lá porque tinham muito poder político.
Vamos considerar que depois da Segunda Guerra mundial, com o Modernismo, a academia começou a levar novos ares. Entrou gente da estatura de Guimarães Rosa (1908-1967). Dizem que quando foram velar Guimarães Rosa, alguém lamentando a perda dele, outro intelectual fez um gracejo dizendo: ‘por que vocês estão chorando? O Rosa não morreu, encantou-se’. Parece que foi a primeira vez que a palavra ‘encantou-se’ foi usada naquele ambiente restrito e hoje ela está totalmente viralizada. O sujeito dá óbito, e seus correligionários correm para dizer que ‘encantou-se’. Não deixa nem pousar na tumba. Ele encanta-se.
Aílton Krenak | Fred Siewerdt/Instituto Tomie Ohtake
Amazônia Real – A distinção desses termos e léxicos é o que marca a língua portuguesa falada no Brasil?
Ailton – A língua brasileira, o português do Brasil, é muito criativa. Ela tem uma capacidade multicelular de produzir sentidos. É muito interessante. Vai ser uma das questões que vou ter oportunidade de falar com meus companheiros, colegas de academia. Eles costumam se chamar de confrades. Vou chamar eles de caros colegas, ilustres. A ABL vem se modernizando e se atualizando em relação à sociedade brasileira. Gilberto Gil está lá dentro. A Heloísa Teixeira, que as pessoas conheciam como Heloísa Buarque. A Lília Schwarcz foi eleita agora. Uma pessoa maravilhosa ajudando a trazer temas que estão relacionados com a vida brasileira e que não frequentam aquele ambiente. Da mesma maneira os indígenas nunca frequentaram aquele ambiente. Somente em 1977 a ABL admitiu a Raquel de Queiroz. A primeira mulher. A academia foi fechada para outros gêneros, que foi o misógino.
Amazônia Real – É possível falarmos em língua brasileira?
Ailton – Eu tive a aquisição de direitos de tradução de ‘Ideias para adiar o fim do mundo’ para o português. Esse meu livro foi publicado na suposta língua do Brasil, que é o português. Eles disseram ‘não, queremos traduzir o livro para o português’. Isso significa que os falantes naturais de português consideram que nossa língua é brasileira, não é português. Além de tudo, mudaram o título: ‘Ideias para salvar a humanidade’. Apareço como uma espécie de São Sebastião, o Messias.
Amazônia Real – A ABL está preparada para ter um diálogo com outras cosmovisões e outras línguas distantes do legado eurocêntrico?
Ailton Krenak – A ABL é um espaço de erudição, cordialidade, gentileza, e não tem nada a ver com a ideia castrista. Não é um quartel. É um colégio de pessoas que amam a literatura, as letras, e que têm um compromisso de promover a lusofonia. São os países de língua portuguesa no mundo e que tem no Brasil uma expressão de ser o maior país de fala lusófona. Tem mais gente falando português no Brasil do que em Portugal. E que tem uma verdadeira veneração pela língua portuguesa. Que é coisa das elites brasileiras que se formaram em Coimbra, nas universidades da Europa, e que achava que ‘tupi or not tupi’… ‘Tupi, tupi, or not tupi’ [subitamente começa a cantarolar], como dizia o Zé Celso [dramaturgo brasileiro morto em 2023].
Então, uma parte da intelectualidade culta brasileira prefere cuidar da língua portuguesa. Mas tem outros milhares de autores, escritores, poetas, geniais, da Tropicália, de antes da Tropicália, do Modernismo, de Mário de Andrade (1893-1945), de Oswald, de tantos esses caras…. que riscavam a gramática. Eles estavam lanhando a gramática em seu interesse de fricção entre as línguas nativas daqui do continente e as línguas dos povos que vieram na diáspora africana. A literatura Modernista é cheia de faíscas de línguas de origem africana e indígena. Muito significativamente pelo tupi. Mas se você prestar atenção, Guimarães Rosa tem um conto com o título “Meu tio, o Iauaretê”. Esse conto põe partículas de frases ou orações em línguas Xavante, Krenak, Maxakali, e do tupi clássico. O conto é uma fantástica composição onde as línguas indígenas são distribuídas no corpo do texto como se fossem rastros deixados para o futuro. Ele deixava sinais para um devir linguístico do Brasil onde o português é uma das centenas de línguas.
Lançamento do livro “Ideias para adiar o fim do mundo” na Banca do Largo em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Publicado originalmente pela Amazonia Real em 04/04/2024 – 18h20
Por Elaíze Farias
Elaíze Farias é cofundadora da Agência Amazônia Real e editora de conteúdo. É referência em reportagens sobre povos originários, populações tradicionais, denúncias de violações de direitos territoriais e direitos humanos, crise climática, violências socioambientais e impactos de grandes empreendimentos na natureza e nas populações amazônicas. Entre as premiações recebidas, está o Prêmio Imprensa Embratel de 2013. Em 2021, foi homenageada no 16º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), junto com Kátia Brasil, também fundadora da Amazônia Real. Em 2022, recebeu o Prêmio Especial Vladimir Herzog. É jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!