De um dia para o outro, indivíduos passam a ver rostos distorcidos. A prosopometamorfopsia (PMO) ainda é de origem desconhecida, mas, pela primeira vez, cientistas conseguiram recriar o que um paciente com a condição vê.
Victor Sharrah acreditava viver um dia normal, até dar bom dia para o amigo com quem divide um apartamento. O que viu não foi o amigo, e sim um demônio, com orelhas pontudas, olhos gigantescos e uma boca larga que se estendia por toda a face.
“Achei que eu havia acordado num filme de terror”, disse Sharrah, que mora em Clarksville, Tennessee (EUA).
Tentando manter a calma, ele levou o cachorro para passear, mas todas as pessoas que via na rua tinham rostos igualmente estranhos e distorcidos.
“Comecei a ficar muito nervoso”, disse o homem de 59 anos. Ele até pensou em se internar “em uma unidade psiquiátrica”. No entanto, Sharrah não havia “enlouquecido”, como acreditava.
Victor Sharrah sofre de uma condição visual extremamente rara, que aparece de um dia para o outro, faz pessoas verem rostos distorcidos por dias e até anos: a prosopometamorfopsia (PMO).
Muitas pessoas têm medo de mencionar seus sintomas, porque “temem que os outros pensem que as distorções são um sinal de transtorno psiquiátrico”, diz Brad Duchaine, professor de psicologia e ciências do cérebro da Universidade de Dartmouth e coautor de um estudo sobre o tema. “É um problema que as pessoas geralmente não entendem”.
Os médicos costumam confundir a PMO com problemas de saúde mental, como esquizofrenia ou psicose. E, embora haja coincidência em alguns sintomas, uma grande diferença é que os pacientes com PMO “não acham que o mundo está distorcido, eles percebem que há algo diferente em sua visão”, diz Antônio Mello, psicólogo cognitivo e neurocientista de Dartmouth e outro coautor do estudo publicado na revista científica The Lancet.
No estudo, pela primeira vez, com ajuda de Sharrah, os cientistas conseguiram recriar em imagens 2D o que o paciente vê quando olha para rostos.
O que é a Prosopometamorfopsia (PMO)?
A prosopometamorfopsia, ou PMO, é uma condição visual extremamente rara, com menos de 100 casos citados desde 1904. Os pacientes relatam uma enorme variedade de distorções faciais. Enquanto Sharrah, paciente deste estudo, vê características extremamente esticadas com sulcos profundos no rosto, outros podem ver mudanças que fazem com que as características mudem de posição ou de tamanho.
Portanto, para as pessoas com essa condição, os rostos aparecem distorcidos de várias maneiras. Enquanto Sharrah vê demônios, alguns veem elfos, explica Mello.
Para alguns pacientes, metade do rosto desaparece. Para outros, as faces ficam roxas ou verdes, ou em constante movimento. Às vezes, a condição dura apenas alguns dias. Mas mais de três anos depois daquela manhã aterrorizante de novembro de 2020, Sharrah ainda vê “demônios”.
Caso de Sharrah é raríssimo
Ao contrário de outras pessoas com PMO, quando Sharrah vê rostos em telas planas, eles parecem normais. Isso permitiu que Mello e os outros pesquisadores criassem as primeiras imagens em 2D que dão uma ideia de como as pessoas com PMO veem os rostos.
Para criar as imagens, os pesquisadores pediram a Sharrah que comparasse como via rostos com as fotos dessas mesmas pessoas que apareciam em uma tela de computador. Assim, foi possível detalhar e descrever as distorções.
Para outros pacientes que sofrem de PMO, os rostos nas fotos também aparecem distorcidos. Sharrah disse que a vida com PMO é “muito mais traumática do que as imagens criadas podem transmitir”.
“O que as pessoas não entendem quando veem essas imagens é que, na vida real, aquele rosto está se movendo, gesticulando e falando”, acrescenta.
As imagens são “úteis para que as pessoas entendam os tipos de distorções que as pessoas podem ver”, diz Jason Barton, neurologista da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, que não participou do estudo.
A causa exata da prosopometamorfopsia permanece desconhecida. O neurologista Jason Barton considera a PMO um “sintoma, não um distúrbio”, portanto, poderia ter várias causas, segundo artigo publicado na Science News.
Na maioria dos casos que Barton estudou, “algo acontece no cérebro que se correlaciona com o início dessa experiência anormal”.
Sharrah tem uma lesão cerebral decorrente de um acidente que sofreu quando trabalhava como motorista de caminhão em 2007.
Mas, na opinião de Mello, porém, isso não está relacionado à PMO, porque os exames de ressonância magnética mostraram que a lesão está no hipocampo de Sharrah, uma parte do cérebro “não associada à rede de processamento facial”.
Apenas 81 casos de PMO foram relatados até o momento na literatura científica. Mas Mello disse que mais de 70 pacientes entraram em contato com seu laboratório nos últimos três anos.
Vida após o diagnóstico
A natureza assustadora da doença faz com que muitas vezes ela seja diagnosticada erroneamente como esquizofrenia ou psicose.
Sharrah só descobriu sobre a PMO depois de postar sua experiência em um grupo de apoio online para pessoas com transtorno bipolar. Para ele, foi um grande alívio. “Significava que eu não era psicótico”, conta.
O homem, que tem uma visão perfeita, mandou fazer óculos com uma tonalidade verde que diminui a gravidade das distorções. O vermelho as torna “mais intensas”, explica. Além da cor, a percepção de profundidade parece desempenhar um papel importante. Embora Sharrah não veja distorções faciais em telas planas, elas começaram a aparecer quando os pesquisadores o fizeram usar um óculos de realidade virtual.
Sharrah disse que se adaptou bem ao seu estranho mundo novo. Mais de três anos depois do diagnóstico, ele não usa mais os óculos com tonalidade verde. “Me acostumei um pouco”, diz, acrescentando que em lugares lotados, como supermercados, a multidão de demônios ao seu redor ainda pode ser bastante “assustadora”.
Como os pacientes que sofrem de PMO sabem que o que estão vendo não é real, muitos enfrentam uma decisão difícil: vale a pena dizer às pessoas o quão grotesco elas se parecem, correndo o risco de parecerem loucos?
Alguns optam pelo silêncio. Mello contou o caso de um homem que nunca disse à mulher que o rosto dela, há muitos anos, parece distorcido para ele.
Sharrah diz que compartilha sua experiência para que outras pessoas com PMO possam evitar um falso diagnóstico e serem “hospitalizadas por psicose”.
“Assim, elas sabem o que está acontecendo e não passam pelo trauma que eu passei”.
Publicado originalmente pelo DW em 27/03/2024