Essa é a continuação da entrevista com o professor de relações internacionais, Dawisson Belém Lopes. As outras partes podem ser lidas nos links abaixo:
Primeira parte: Imprensa brasileira está fora da nova ordem mundial
Segunda parte: Geopolítica de Lula recupera o sonho de uma diplomacia independente
Terceira parte: Forças Armadas precisam cortar o cordão umbilical com os EUA
Quarta parte: Rejeição a Lula entre evangélicos não mudou muito depois da polêmica sobre Israel
Quinta parte: O Brasil ainda tem uma elite de colonos
Cafezinho: Em relação aos militares, eu queria saber como você acha que o que devemos fazer com os militares. Há um debate intenso, às vezes até agressivo, no Brasil sobre a questão militar. Os militares se envolveram profundamente com a política durante a era Bolsonaro, milhares e milhares entraram no governo, ocuparam cargos de governo importantes, ministérios, Ministério da Saúde durante a pandemia, e se envolveram com a tentativa de golpe, e agora há uma grande perplexidade dentro do governo Lula, compreensível, de como lidar com as Forças Armadas. O Lula, por exemplo, cancelou alguns eventos do governo que falariam do golpe de 64, provavelmente para não produzir nenhuma crise entre o executivo e os militares. Eu queria saber qual sua opinião sobre como lidar com isso. Parte da esquerda defende o enfrentamento mais direto, mais duro em relação a esse golpismo latente dos militares, e usar o 1o de abril para explicitar o papel tantas vezes negativo dos militares na história brasileira, inclusive em 64. Agora que a gente está se aproximando de mais um aniversário, eu queria saber a sua opinião, como devemos lidar com isso, e o que fazer com os militares?
Esse é outro problema crônico do Brasil. Os militares têm se associado, sem muito pudor, a essa elite dirigente do país e patrocinado golpes de Estado por toda a história da República, não é? Acho que essa é uma questão sobre a qual não resta muita controvérsia. A vocação golpista das Forças Armadas brasileiras é um dado histórico. Aí não é questão de interpretação, são muitas rupturas institucionais acumuladas.
Nós temos alguns pontos importantes a ressaltar. Tem um elemento genético: um exército forjado a partir das necessidades que se impuseram lá no Império, com a Guerra do Paraguai; um exército que se empoderou naquele contexto e que acabou se colocando como fiador da ordem, inclusive impondo à monarquia o seu golpe de misericórdia e fundando a República no país. Então, uma República fundada sob o signo do golpe, da imposição da força, algo que trouxe consequências para a forma como o sistema político brasileiro se construiu. Há um certo tropismo, uma certa inclinação na direção da ruptura. Existe uma fraqueza institucional, como diriam os ingleses, by design, porque houve muitas quebras; romper com o estado de coisas constitucional nunca foi um grande tabu. Há uma outra questão, ainda pensando sobre as origens das Forças Armadas, que é a sua relação umbilical com os Estados Unidos.
Em certo sentido, é também uma relação genética: basta lembrar que a Força Aérea Brasileira (FAB) nasce sob os auspícios do Departamento de Estado dos Estados Unidos, em meio à Segunda Guerra Mundial, e são os Estados Unidos que vão prover know-how, treinamento, naquele momento em que o jogo estava sendo definido e, depois de um breve flerte de Getulio Vargas com a Alemanha nazista, o Brasil acaba se alinhando de forma definitiva aos Estados Unidos. Há um estudo recente, divulgado pelo IPEA [de autoria de Pedro Silva Barros e colegas], mostrando como os militares brasileiros ainda hoje são formados, precipuamente, em cursos técnicos nos Estados Unidos. Essa proximidade dos militares brasileiros com os Estados Unidos da América é uma parte importante da história nacional, e ajuda a entender o porquê do não-golpe em 2022. Washington mantém ascendência forte sobre as Forças Armadas brasileiras. E é muito difícil, num contexto de Forças Armadas “americanistas”, imaginar caminhos para o projeto nacional brasileiro.
Agora, sobre o problema das Forças Armadas hoje: elas voltaram à cena política com Michel Temer – foi ele quem abriu a caixa de Pandora e convidou os militares para a sala de estar. Desde então, há um processo de ocupação, de aparelhamento, que chegou ao auge durante o governo Bolsonaro. Havia proporcionalmente mais ministros de Estado militares com Bolsonaro do que com presidentes da ditadura militar brasileira, o que é uma coisa de louco. Há um refluxo do processo agora, dado que Lula vence a eleição de 2022 e começa a avançar a culpabilização, na Justiça, dos militares da gestão Bolsonaro. Muitos crimes foram cometidos, eles estão vindo à tona, o processo judicial está avançando, então esse refluxo é importante e talvez, é possível, pela primeira vez na história haja punições a vários militares de alta patente, incluindo-se o ex-comandante-em-chefe das Forças, o militar reformado Jair Bolsonaro.
Para concluir essa reflexão, preciso dizer que não sou partidário da tese de que seria boa política o enfraquecimento, o esvaziamento completo das Forças Armadas do Brasil. Quando se trata de países grandes como o Brasil, evidentemente, interesses de segurança e defesa devem ser resguardados. O Brasil precisa ter Forças Armadas bem equipadas. Para mim, essa é uma questão inegociável, o Brasil não é Costa Rica, essa é uma linha de argumento que não me convence. Precisamos, sim, rever a formação dos nossos oficiais, a cultura militar brasileira, e esse é um trabalho de longo prazo, sujeito a todo tipo de intempérie, de dificuldade, mas não iria para o outro extremo, de abrir mão de Forças Armadas ou sucateá-las completamente. Seria um grave erro.
Quem é Dawisson Belém Lopes
Professor de Política Internacional e Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi pesquisador visitante na University of Oxford (Reino Unido, 2022-2023) e no German Institute of Global and Area Studies (Alemanha, 2013); e professor visitante da Université Catholique de Louvain (Bélgica, 2016). É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, conselheiro internacional do British Journal of Politics and International Relations (BJPIR) e senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). Realizou comunicações sobre temas internacionais a convite dos governos de Canadá, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Portugal, Uruguai e Brasil, além da ONU e de diversas universidades ao redor do mundo. Colabora regularmente com os cursos de formação do Instituto Rio Branco, academia diplomática do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Rede social: https://x.com/dbelemlopes