Entrevista com o maior especialista em geopolítica do Brasil. José Luis Fiori analisa a comparação de Lula entre Gaza e o genocídio nazista. Ele diz que o presidente do Brasil é um humanista radical e, ao mesmo tempo, um político pragmático. Explica a Ucrânia, o Médio Oriente e o conflito entre a China e os Estados Unidos. Pense no palco se Trump vencer. E dá uma opinião para abrir um grande debate sobre o Mercosul.
Professor de Política Econômica Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos sobre Petróleo, Gás e Biocombustíveis, José Luis Fiori, seu mais recente livro é “Sobre a Guerra”.
Tradução automática.
Que estratégia está por trás da comparação do presidente Lula da política israelense em Gaza com o nazismo?
Tenho certeza de que o presidente brasileiro escolheu cuidadosamente suas palavras e comparações. Afinal, ele não disse nada de absurdo. Em vez disso, ele simplesmente comparou a fúria assassina do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu com a de Adolf Hitler e seu genocídio dos judeus na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Essa mesma comparação foi feita por outros líderes mundiais com menor projeção global. A irritação demonstrada pelo governo israelense é compreensível por causa da importância internacional de Lula. No entanto, é mais difícil entender a reação em cadeia da imprensa brasileira, que não se deu ao trabalho de ler a entrevista e começou a repetir as diatribes das autoridades israelenses em uma cadeia. Eles pareciam corpos subsidiários da extrema direita em Tel Aviv, determinados a demonstrar a existência de um tipo de hierarquia de genocídio. Alguns seriam mais importantes do que outros, dependendo da origem das populações afetadas pela violência assassina dos genocidas. Como se o assassinato coletivo dos judeus pelo Estado alemão tivesse uma superioridade trágica em comparação com os 15 milhões de chineses que foram mortos pelos japoneses nas décadas de 1930 e 1940, nos chamados holocaus asiáticos. Ou os 20 milhões de russos mortos pelos alemães entre 1941 e 1945. Ou o genocídio de 2 milhões de armênios pelo Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial, também conhecido como o Holocausto armênio. Ou mesmo os tutsi genocidas durante a Guerra Civil de Ruanda em 1994, entre muitas outras tragédias do século XX. Os factos são factos e são bem conhecidos.
Quer dizer Oriente Médio?
– Sim, sim. – Sim. Em 7 de outubro de 2023, um grupo de militantes do Hamas ou combatentes entrou no território israelense, matou cerca de 1.200 israelenses e sequestrou cerca de 280 pessoas. O governo israelense, em seguida, localizado o território de Gaza, habitado por cerca de dois milhões e meio de palestinos, bloqueou a entrada de água, alimentos, energia, medicamentos e comunicações, e começou um bombardeio aéreo e terrestre em território de Gaza que está acontecendo há cinco meses. Já matou 30 mil palestinos (80% mulheres e crianças), ferindo e mutilando outros 80 mil e deixando cerca de 1,5 milhão de pessoas deslocadas, com fome e sem cuidados médicos. Os números são alarmantes, mas ainda estão em plena expansão. E tudo indica que ainda vamos testemunhar outro massacre ainda maior de palestinos na cidade de Rafah.
Voltemos à escolha das palavras de Lula.
A hipótese de que ele cometeu um erro levantado pela imprensa conservadora brasileira é absolutamente ridícula por parte de um político tão experiente quanto Lula. Suas palavras foram rigorosamente escolhidas e continham um julgamento corajoso e uma condenação radical do comportamento assassino do primeiro-ministro de Israel e do holocausto do povo palestino sendo realizado ao vivo e vivendo, diante dos olhos horrorizados da humanidade. Do meu ponto de vista, foi uma tentativa consciente do presidente Lula de abalar o golpe global – que tomou conta da humanidade horrorizada com o que está acontecendo. Mas, acima de tudo, foi uma tentativa de chamar as potências ocidentais à razão que se consideram criadores e administradores da moralidade internacional, e a Alemanha em particular, um executor direto do genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra. Embora esses países estejam mudando sua postura retórica, mesmo que continuem a fornecer armas e recursos usados pelos israelenses para realizar o massacre dos palestinos.
O que é a leitura do mundo por Lula, seu conselheiro Celso Amorim e Chanceler Mauro Vieira?
No primeiro ano de seu terceiro governo, em 2023, Lula tinha uma agenda internacional muito ativa: fez 15 viagens internacionais, visitou 24 países e 5 continentes. Além disso, ele falou na ONU, no G20, na índia, na Liga das Nações Árabes, na União dos Estados Africanos, no G7, no Mercosul, CELAC, CARICOM. Ele assumiu a presidência do G20, COP 30, e é esperado para assumir a presidência do BRICS em 2024. Em quase todas essas ocasiões, os três principais líderes da política externa brasileira estavam juntos, explicando a nova estratégia internacional do Brasil por meio de discursos, entrevistas e pronunciamentos.
– Lembras-te? – Não
– Sim, sim. – Sim. Há uma grande convergência, e até coincidência, entre as posições dos três. Eles sabem que o Brasil não é uma potência militar ou finge ser. É, portanto, um país grande, sem capacidade ou intenção de projetar seu poder militar ou influência além de suas fronteiras. Isso também é bom para a América do Sul. Além disso, os três estão plenamente conscientes da relação histórica do Brasil com os Estados Unidos e que o Brasil está dentro da chamada “zona de influência nuclear e proteção” dos Estados Unidos. Neste contexto geopolítico e militar, é preciso entender a grande estratégia internacional de Lula, Amorim e Vieira. Lula é um humanista e um pacifista radical, mas ao mesmo tempo é um político habilidoso, carismático e pragmático. Seu projeto internacional não tem nada a ver com o “terceiro mundo” e não pretende ser simplesmente o líder da periferia mundial, agora chamado pelas potências euro-atlânticas, o Sul Global.
E qual é o projeto do Lula?
A grande estratégia de Lula é universalista, cosmopolita e igualitária, embora ele esteja plenamente consciente de que o “cosmopolitismo” ou universalismo defendido pelas potências ocidentais é inseparável das hierarquias, assimetrias e conflitos que caracterizam a luta de todos pelo poder global. Do meu ponto de vista, as ideias e atitudes de Lula, Amorim e Vieira assumem a soberania das nações como um fato e um objetivo. Eles propõem que o Brasil se mova entre as nações do norte e do sul, leste e oeste, sem fazer distinções ideológicas e sem discriminar os países de acordo com seus regimes políticos, afiliações ideológicas ou afiliações culturais e religiosas. Apesar do que a imprensa conservadora diz, Lula mostra em todos os momentos sua proximidade com os Estados Unidos de Biden e a Rússia de Putin e a China de Xi. Para a França de Macron, a Turquia de Erdogan, o Irã de Ebrahim e até mesmo a Inglaterra de Carlos III. Seu projeto é construir e afirmar globalmente um poder que visa influenciar os eventos mundiais e ajudar a mediar seus conflitos sem preconceito ideológico. Talvez seja essa posição única do Brasil que permitirá que Lula seja um presidente original no contexto internacional. Ele é capaz de dizer coisas que os outros não dizem e tocar chaves que assustam os conservadores no Brasil e em todo o mundo.
Qual é a sua leitura do mundo de hoje, por exemplo, sobre a influência do conflito entre a China e os Estados Unidos, o impacto da guerra entre a Rússia e a Ucrânia ou as próximas eleições nos Estados Unidos?
O chefe da política externa da União Europeia, o espanhol Josep Borrell, declarou recentemente que a era do domínio global do Ocidente chegou ao fim. O mesmo foi dito por Xi Jinping e Vladimir Putin em janeiro de 2022. Mesmo o presidente Joe Biden, que às vezes mostrou alguma dificuldade em raciocinar, também disse em uma entrevista recente que a ordem pós-Segunda Guerra Mundial acabou e que as regras de uma nova ordem precisam ser definidas. O problema está exatamente em saber quem definirá essas novas regras, considerando que a ordem americana, que está chegando ao fim, foi imposta somente após uma guerra mundial e, acima de tudo, após a demonstração da força americana com a destruição atômica de Hiroshima e Nagasaki. Hoje, muitos analistas falam sobre a transição de um mundo unipolar para um novo mundo multipolar, mas ninguém sabe exatamente o que esse mundo multipolar consistirá, muito menos o que será e quanto tempo durará a transição entre esses dois mundos.
– Não há certezas?
Ninguém duvida que esta crise internacional e esta transição – que estamos experimentando estão relacionados com a ascensão econômica e política, e com o aumento da influência internacional, da China. Ou também em particular, com a necessidade do sistema interestatal criado pelos europeus agora para viver juntos, dentro de si, com múltiplas culturas e civilizações. Também não há dúvida sobre a importância da decisão da Rússia de confrontar a OTAN. E sobre a incapacidade da OTAN de derrotar a Rússia. Isso deve ser visto como um verdadeiro ponto de virada, um marco real no declínio do domínio ocidental de que Borrell fala. Mas deixe-nos saber que, segundo dados apresentados pela delegação brasileira na última reunião do G20 na cidade do Rio de Janeiro em 2023, houve 183 conflitos internacionais em todo o mundo. Neste momento, quando estamos testemunhando uma guerra ou massacre na Faixa de Gaza, a grande maioria da humanidade está condenando a violência assassina do governo israelense, e até mesmo o governo dos EUA está tentando conter Israel, mas sem eficácia. E o que dizer sobre as Nações Unidas, cujas decisões são permanentemente desobedecidos por Israel. Na verdade, ao contrário do que os americanos dizem, o problema no mundo hoje não é a falta de “regras”.
Há alguma regra?
Claro que as regras existem. O problema é a existência de muitas interpretações diferentes das mesmas regras e a ausência de um poder capaz de arbitrar, julgar e punir a nível internacional. Este papel foi desempenhado por europeus e americanos ao longo dos últimos 300 anos, mas a maior evidência de declínio ocidental é o fato de que a maioria global – não aceita mais a arbitragem pelas potências do Atlântico Norte. Mas cuidado: além desse problema mais imediato, o fim do unilateralismo ocidental diminuirá, sem dúvida, a arbitrariedade e a arrogância das potências ocidentais. No entanto, ninguém sabe como o processo de tomada de decisão e a governança global funcionarão dentro de um sistema multipolar. Na prática, deve funcionar como um “oligopolis” extremamente competitivo e militarizado, que poderia deixar o mundo à beira de uma grande guerra contínua e de longa data, pelo menos durante a primeira metade do século XXI.
– O Mercosul está congelado em termos políticos e o Brasil é progressivamente um parceiro comercial menor na Argentina. Até que ponto a fraqueza regional influencia a política externa brasileira?
A política externa do atual governo brasileiro concentrou-se desde o início no Mercosul e na América do Sul. A intenção era consolidar uma aliança estratégica com a Argentina que pudesse se tornar um ponto de referência e liderança econômica e política para todo o continente. Esta não é a primeira vez que este projeto é tentado. Também não é a primeira vez que foi interrompido por alguma mudança política em um dos dois maiores países do continente.
O que acontece agora?
O governo de Lula entendeu que a correlação político-ideológica na América do Sul havia mudado e que seria impossível avançar no Mercosul com três países governados por presidentes ultraliberais. Além disso, Lula também conseguiu perceber que, mesmo fora do Mercosul, não tinha grande apoio para a ideia de integração regional. Talvez você entenda que a ideia de integração latino-americana sempre foi uma utopia tecnocrática, defendida desde os anos 50 pelos economistas estruturalistas da CEPAL. Ou também poderia ter sido uma utopia ideológica apoiada principalmente pelos governos bolivarianos do continente. São duas versões da mesma utopia que nunca se encaixam na estrutura econômica primária-exportação de todos os países da América do Sul. Também não se encaixaram na natureza insubscavelmente do território e da população costeira de todo o continente. Sem contar que esse projeto sempre foi paralisado ou interrompido pela polarização política, social, empresarial e intelectual das elites da região, dividida entre o radicalismo ultraliberal da maioria e os sonhos prussianos de uma minoria de intelectuais progressistas e tecnocratas.
O governo Lula mudou de posição diante desse cenário?
Acho que ele também fez uma avaliação realista e pragmática da situação dentro da esquerda sul-americana e da atual distância entre as visões de mundo de Lula, Gustavo Petro e Gabriel Boric, por exemplo. Para mim, pelo menos, essa avaliação brasileira reforçou a decisão de sua política externa de se abrir à África e ao mundo árabe, ainda mais do que à América do Sul. Isso porque, embora o Brasil tenha uma posição de proximidade geográfica e preeminência indiscutível dentro do continente sul-americano, do ponto de vista da composição demográfica, social e cultural de sua população, o Brasil está muito mais próximo da África negra e do mundo árabe, e até mesmo de alguns países asiáticos, do que à população ibero-espanhola. Deste ponto de vista, mais uma vez, não foi por acaso que o presidente Lula escolheu a cidade de Adis Abeba e a reunião da União dos Países Africanos para assumir uma posição aberta para condenar o genocídio israelense na Faixa de Gaza. Ele fez isso junto com a África do Sul e com quase todos os outros países negros africanos que têm vindo a condenar vigorosamente a Palestina solocaust.
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, criticou a “paralisia” da ONU nos atuais conflitos armados. O que deve acontecer?
A ONU pode ser o lugar no mundo onde a impotência e paralisia de todas as instituições responsáveis pela governança global dentro da ordem americana, estabelecida desde a Segunda Guerra Mundial, se manifestou quase diariamente. Quando foi formada, a ONU tinha cerca de 60 países. Hoje tem quase 200, e de fato, mais uma vez, como mostra a história, foram os próprios Estados Unidos que primeiro desrespeenciaram as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança quando bombardearam a Iugoslávia sem sua autorização em 1999 e atacaram o Iraque em 2003. E o mesmo aconteceu, em quase todos os casos, durante os últimos 30 anos de guerras quase contínuas envolvendo os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e seus aliados da OTAN.
Existem duas grandes guerras: Ucrânia e Gaza.
É preciso pensar neles a partir dessa lacuna. É esse vácuo que, em última análise, explica a intensidade da crítica de Lula, que é cada vez mais frequente e explícita não só para Israel, mas, acima de tudo, para a impotência da chamada comunidade internacional. Aplica-se tanto à Palestina como à Ucrânia. É como se eu estivesse chamando o mundo para encontrar alguma solução antes que ele leve a uma nova guerra mundial. Uma guerra que, se acontecer, será quase inevitavelmente uma guerra atômica.
Após a decisão da Suprema Corte dos EUA e seus sucessos no Partido Republicano, Donald Trump está no meio de uma corrida para as eleições de novembro. Que cenário possível é apresentado à América Latina com uma possível vitória de Trump?
Um triunfo poderia fortalecer retoricamente as forças de extrema-direita e os governos na América do Sul. Mas não muito mais do que isso. Apesar da Doutrina Monroe, a América Latina nunca ocupou um lugar de grande importância na política externa americana, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Eu quase diria que a América do Sul sempre foi o último elemento na hierarquia de preocupações e objetivos dos Estados Unidos no mundo. Com Trump, isso deve acentuar. Os democratas, pelo menos, fazem representação ideológica e ocasionalmente mostram alguma consideração pelos latino-americanos. Por outro lado, no caso dos republicanos, e muito mais com Trump, se levarmos em conta a agenda prioritária dos EUA na próxima década na Europa e na Ásia, podemos prever um esquecimento quase total da América Latina.
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