O professor Dawisson Belém Lopes, que tem um extenso currículo na área de relações internacionais, concedeu, gentilmente, uma longa entrevista exclusiva para o Cafezinho. Eu estou dividindo-a em partes.
Nesse trecho, falamos da nova ordem geopolítica, e do papel que o Brasil deveria desempenhar nela. Para Lopes, Lula recupera sonhos antigos de uma diplomacia independente, autonomista, capaz de estabelecer diálogo com as mais diversas partes do mundo, centrada sempre nos grandes interesses nacionais.
Esta é a segunda parte da entrevista que fizemos com o professor de relações internacionais, Dawisson Belém Lopes. As outras partes podem ser lidas nos links abaixo.
Primeira parte: Imprensa brasileira está fora da nova ordem mundial
Segunda parte: Geopolítica de Lula recupera o sonho de uma diplomacia independente
Terceira parte: Forças Armadas precisam cortar o cordão umbilical com os EUA
Quarta parte: Rejeição a Lula entre evangélicos não mudou muito depois da polêmica sobre Israel
Quinta parte: O Brasil ainda tem uma elite de colonos
Cafezinho: Qual é a sua visão sobre a emergência de uma nova ordem mundial marcada pelo rápido crescimento da China e de outras nações asiáticas, um contexto geopolítico bastante distinto dos tempos do primeiro e segundo mandatos de Lula? Como você acredita que essa mudança no cenário global afeta o Brasil em termos econômicos e políticos, e qual é a influência dessas dinâmicas nos debates políticos internos? Além disso, qual seria, em sua avaliação, a postura e os possíveis objetivos do presidente Lula nesse panorama internacional? Como você projeta os próximos anos diante dessas crescentes tensões entre Estados Unidos e China, entre o Ocidente e a Rússia, a OTAN e a Rússia, e o potencial reflexo disso nas discussões políticas do Brasil, incluindo as eleições?
Eu começo ressaltando que, de fato, o mundo passa por transformações aceleradas e tremendamente significativas. Vinte anos atrás, talvez, a ideia de multipolaridade fosse apenas uma aspiração – e até um mito. Hoje em dia, não mais. 20 anos depois, a distribuição de capacidades materiais no sistema internacional – fatores econômicos, militares, político-institucionais – passou por transformação profunda. A capacidade econômica dos atores, de participação nos fluxos de comércio, na produção industrial, na produção de tecnologia de ponta, alterou-se. À medida que a China assume funções, e outros centros econômicos entram no jogo – o sudeste asiático, o sul da Ásia, o Oriente Médio, a África –, eles embaralham as cartas. Para não falar de uma nova configuração militar, dos países novos que adquiriram armamento nuclear e vêm investindo nessa tecnologia.
O fato de que vários outros países, para além de europeus e de países da América do Norte, têm conseguido chefiar organizações internacionais, também importa. Enfim, houve uma redistribuição das capacidades materiais. Então, em resumo, o mundo muda nas suas fundações e isso traz, evidentemente, consequências para a produção da política externa. Concordando com a premissa da pergunta, vinte anos depois de Lula ter chegado ao poder pela primeira vez, em 2003, o mundo é outro, e é preciso saber navegar esse novo mundo.
O Brasil, sob Lula, tem tentado colocar em prática um projeto autonomista de política externa. Não é exagero dizer que o que Lula, Celso Amorim e Mauro Vieira hoje implementam é uma versão adaptada às circunstâncias correntes da Política Externa Independente que foi criada pela geração de San Tiago Dantas, Afonso Arinos e Renato Archer, com Jânio Quadros e João Goulart na presidência. Aquele foi o primeiro ensaio de um projeto de política externa em que o Brasil perseguiria os seus objetivos, independentemente de alinhamento geopolítico, e tentaria buscar esse interesse onde quer que fosse, fazendo relações com os Estados Unidos e com a União Soviética ao mesmo tempo, num contexto de Guerra Fria, em que isso parecia ser mutuamente excludente.
Aquele ensaio de política externa é reeditado agora com a consciência de que um país que se pretende importante, como o Brasil, e que tem as credenciais para tal – afinal de contas, a gente está falando de um país grande, quinto maior território do mundo, sétima maior população do mundo, nona maior economia do mundo, com enorme repertório no campo da governança ambiental global –, deve perseguir o seu autointeresse em qualquer latitude e longitude.
Nesses tempos críticos de mudança climática, aliás, o Brasil tem em seu favor os elementos objetivos para participar do debate de forma decisiva. Estou falando de biodiversidade, mas também de capacidade de gerar alimentos para o mundo, de gerar energia limpa, dos recursos hídricos, florestais, das populações originárias e toda a riqueza a isso associada.
O Brasil é um país que precisa desempenhar, no plano internacional, uma política externa compatível com a grandeza do próprio país, um país que busca se desenvolver em bases ambientalmente sustentáveis, um país que busca, ao fim e ao cabo, defender a sua sociedade e não ser tutelado, ou servir de escada para os interesses de outras potências. Muito importante que o Brasil assuma esse papel e eu acho que Lula tem plena consciência disso.
A dificuldade se impõe, naturalmente, em qualquer tempo histórico. Também não acho que caiba qualquer postura de vitimização, ou de transferência de culpa. Os países jogam os seus jogos e acho que um diagnóstico realista nos leva a buscar no Brasil, e não fora, as soluções para a nossa melhor inserção internacional.
Quem é Dawisson Belém Lopes
Professor de Política Internacional e Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi pesquisador visitante na University of Oxford (Reino Unido, 2022-2023) e no German Institute of Global and Area Studies (Alemanha, 2013); e professor visitante da Université Catholique de Louvain (Bélgica, 2016). É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, conselheiro internacional do British Journal of Politics and International Relations (BJPIR) e senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). Realizou comunicações sobre temas internacionais a convite dos governos de Canadá, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Portugal, Uruguai e Brasil, além da ONU e de diversas universidades ao redor do mundo. Colabora regularmente com os cursos de formação do Instituto Rio Branco, academia diplomática do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
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