O Cafezinho teve acesso à íntegra do relatório final da Polícia Federal, sobre assassinato de Marielle e Anderson. Um dos trechos mais interessantes é o capítulo 14.1, que descreve o encontro dos pistoleiros com os irmãos Brazão.
É um romance policial de alta carga de adrenalina e violência, com a diferença que estamos falando de crimes e personagens reais.
Vamos tentar publicar alguns trechos no portal. Neste post, selecionamos o capítulo 14 do documento, que trata especificamente dos homicídios da vereadora e seu motorista.
Ao trecho:
14.1 Homicídios consumados de Marielle Francisco da Silva e Anderson Pedro Matias Gomes, e homicídio tentado de Fernanda Gonçalves Chaves
A materialidade dos crimes de homicídio consumado em relação às vítimas Marielle Francisco da Silva e Anderson Pedro Matias Gomes, e homicídio tentado em relação à vítima sobrevivente Fernanda Gonçalves Chaves, está evidenciada pelo Laudo de Exame de Necropsia da vítima Marielle Francisco da Silva de fls. 2486/2492, e de Anderson Gomes de fls. 2480/2485, Laudo de Reconição Visuográfica do Local de Crime de fls. 778/794, Laudo de Exame em Local de Duplo Homicídio DHJRSPC0001822018 de fls. 2169/2222 e Laudo de Reprodução Simulada dos Fatos n.º DH-RJ-SPC-001632/2018 de fls. 5692/5739.
Os indícios de autoria mediata que recaem sobre os irmãos Domingos Inácio Brazão e José Francisco Inácio Brazão são eloquentes. Com base na dinâmica narrada pelo executor Ronnie Lessa e pelos elementos de convicção angariados durante a fase de corroboração de suas declarações, extrai-se que os irmãos contrataram dois serviços para a consecução do homicídio da então Vereadora Marielle Franco: a) a execução em si, por meio de Edmilson Macalé e Ronnie Lessa; b) a garantia prévia da impunidade junto à organização criminosa instalada na Divisão de Homicídios da PCERJ, comandada por Rivaldo Barbosa.
No que tange ao primeiro serviço, utilizando-se de seu relacionamento intrincado com membros de grupos paramilitares com atuação na Zona Oeste do Rio de Janeiro, os irmãos Brazão, no segundo semestre de 2017, contrataram Edmilson Macalé, pessoa próxima de Chiquinho, miliciano da área de Oswaldo Cruz, reduto eleitoral e imobiliário da Família, e lhe fizeram a proposta para matar a Vereadora Marielle Franco.
Diante do teor da proposta, Macalé convidou Ronnie Lessa, notório sicário carioca, para a empreitada criminosa que, seduzido pela possibilidade de se tornar um miliciano detentor de uma extensa margem territorial, aceitou o convite e ambos foram à primeira reunião com os Irmãos, devidamente intermediada por Robson Calixto Fonseca, vulgo Peixe.
Dessa primeira reunião extraem-se três pontos: os Irmãos Brazão infiltram o nacional Laerte Silva de Lima nas fileiras do PSOL para levantamento interno de informações, o que resultou na indicação de que Marielle pediu para a população não aderir a novos loteamentos situados em áreas de milícia; foi apresentada aos sicários a proposta de recompensa pelo crime; foi estabelecida a única exigência, qual seja, a execução não poderia se originar da Câmara dos Vereadores. Segundo Domingos, tal exigência partia de Rivaldo Barbosa, então Diretor da Divisão de Homicídios da PCERJ e já cooptado pelo grupo criminoso.
Após esse primeiro encontro, foram providenciados os instrumentos utilizados na empreitada criminosa, tais como: a arma do crime, cedida por Peixe e Marcus Vinicius Reis dos Santos, vulgo Fininho, para Macalé, em Rio das Pedras e; o veículo GM/Cobalt, obtido por Maxwell Simões Corrêa, vulgo Suel, por meio do nacional Otacílio Antônio Dias Júnior, vulgo Hulkhinho, o que, inclusive, robustece o cenário probatório desenhado em face do ex-bombeiro na Operação Élpis.
Com isso, Ronnie Lessa deu início ao monitoramento do alvo e, diante de uma série de intercorrências, verificou que a exigência fixada por Rivaldo Barbosa e repassada por Domingos teria o condão de inviabilizar a execução da Vereadora. Assim, Ronnie solicitou a Macalé o agendamento de um segundo encontro para tentar remover os autores intelectuais dessa exigência, o que foi prontamente rechaçado.
Apesar de frustrado, Ronnie continuou na empreitada e promoveu diversas diligências de monitoramento do alvo, com aquelas identificadas pela Delegacia de Homicídios da Capital nos dias 19, 29, 07 e 14 de fevereiro de 2018, as quais ele aponta que foram direcionadas tanto a Marielle Franco quanto a Regina Celí, alvo paralelo da dupla Ronnie e Macalé.
Todas essas diligências preparatórias culminaram com o evento do dia 14 de março de 2018. De acordo com Ronnie Lessa, naquela oportunidade, por volta do meio-dia, ele recebeu uma ligação de Macalé, por meio da qual ele revelou que receberia uma ligação oriunda do terminal vinculado a Laerte. Todavia, ao atender o telefone, Macalé se surpreendeu ao constatar que o interlocutor, na verdade, era Ronald Paulo Alves Pereira, vulgo Major Ronald. Em que pese isso, Macalé indicou a Lessa que Ronald lhe passara a informação de que na noite daquele dia haveria o evento na Casa das Pretas e que Marielle Franco estaria presente.
A partir dessa informação, Ronnie fez contato com Élcio Vieira de Queiroz, que já havia sido informado da existência de um serviço em andamento em face de uma mulher desde o Réveillon de 2018, e ambos deram início à dinâmica narrada de forma exaustiva no bojo do Relatório Final do Inquérito Policial n.º 2023.0012608-SR/PF/RJ — Operação Élpis.
Em relação ao segundo serviço contratado, conforme brevemente mencionado, Rivaldo Barbosa, então Diretor da Divisão de Homicídios da PCERJ, antecede Macalé e Ronnie Lessa na adesão da empreitada criminosa, sendo um dos arquitetos, na companhia dos Irmãos Brazão, da fase interna do iter criminis, o que se constata pela aposição da exigência fundamental repassada aos executores.
Como visto, tal exigência tem fundamento na necessidade de se afastar tais órgãos, sobretudo federais, da perseguição do crime em comento, de modo a garantir que todas as vicissitudes da investigação fossem manobradas por Rivaldo, então supervisor de todas as investigações de homicídios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e, posteriormente, alçado a Chefe de Polícia, cuja cerimônia de posse ocorreria na véspera da consecução dos homicídios ora investigados.
Sendo assim, menos de doze horas depois da consumação dos homicídios, Rivaldo nomeou o Delegado Giniton Lages, pessoa de sua extrema confiança, para o cargo de Delegado Titular da Delegacia de Homicídios da Capital e, consequentemente, responsável pela apuração do crime.
Com a assunção do cargo por Giniton, se operacionalizou a garantia da impunidade dos autores do delito. Inicialmente essa garantia se alastrou, inclusive, aos autores imediatos, o que foi narrado por Ronnie Lessa na terceira e última reunião em que participou na presença dos Irmãos Brazão, oportunidade na qual lhe foi indicado que Rivaldo estava promovendo a deflexão da investigação. De fato, naquele período, o crime começou a ser imputado a Marcelo Siciliano, em um arranjo nefasto que foi descortinado pela Operação Nevoeiro.
Traçada essa breve síntese acerca da dinâmica delitiva, é possível verificar que, sob a ótica dos autores mediados, o crime foi cometido mediante motivação torpe, ante a repugnância dos Irmãos Brazão em relação à atuação política de Marielle Franco e de seus correligionários em face dos seus interesses escusos.
Como dito, Ronnie Lessa ouviu de Domingos Brazão que o infiltrado Laerte teria levantado que Marielle pediu para a população não aderir a novos loteamentos situados em áreas de milícia.
Neste contexto, como ressaltado em tópico próprio, torna-se necessário considerarmos a extensão do entendimento do colaborador em relação à motivação, especialmente porque esta se baseia em informações dispersas provenientes de alegados comentários de Domingos Brazão durante as negociações para a prática do homicídio. Dessa forma, as afirmações podem abranger apenas uma parte de um contexto mais intricado e desconhecido pelo algoz da Vereadora.
Assim, é importante destacar que a conclusão atual foi fundamentada na investigação da veracidade do conteúdo das declarações do colaborador e na busca por dados e evidências que pudessem confirmar a narrativa apresentada ou, no mínimo, corroborar sua plausibilidade. Acrescente-se a isso o fato de que as negociações para a realização do crime ocorreram de maneira clandestina, durante breves encontros em local deserto, o que comprometeu significativamente a confirmação, por meio de métodos técnicos e diretos, do acordo fatal e de sua respectiva motivação. Assim, resta apenas a avaliação da aparente veracidade para a valoração das informações fornecidas por aquele que perpetrara a vítima.
Apreciando, portanto, os dados e informações ora apresentadas, bem como suas respectivas análises relativas às declarações de Ronnie Lessa acerca da motivação do crime, reputam-se verossímeis as declarações sobre a suposta animosidade dos Irmãos Brazão em face dos políticos do PSOL.
Aqui impende destacar que esse cenário recrudesceu justamente no segundo semestre de 2017, atribuído pelo colaborador como sendo a origem do planejamento da execução ora investigada, ocasião na qual ressaltamos a descontrolada reação de Chiquinho Brazão à atuação de Marielle na apertada votação do PLC n.º 174/2016, externada pelo assessor Arlei Assucena.
No mesmo sentido, apontam diversos indícios do envolvimento dos Brazão, em especial de Domingos, com atividades criminosas, incluindo-se nesse diapasão as relacionadas com milícias e “grilagem” de terras, e, por fim, ficou delineada a divergência no campo político sobre questões de regularização fundiária e defesa do direito à moradia.
Deste modo, não obstante a falta de provas diretas decorrentes da natureza clandestina das tratativas que Ronnie Lessa alega ter mantido com Domingos e Chiquinho Brazão, é possível inferir que suas declarações sobre o motivo que teria ensejado a morte da Vereadora Marielle Franco se mostram verossímeis diante dos dados e indícios ora apresentados.
Neste sentido, inexistem dúvidas em relação ao teor repugnante da motivação dos Irmãos Brazão na empreitada criminosa. Deste modo, tendo em vista a construção do vínculo subjetivo da dupla com Rivaldo Barbosa ainda no cogitatio, nascedouro do iter criminis, verifica-se que sua motivação em participar do crime, ainda que concebida no intuito de se obter vantagem pecuniária ou política de natureza ilícita, foi conglobada à dos idealizadores primários, o que tem o condão de o alçar, outrossim, à autoria mediata dos crimes em tela.
Assim, se verifica claramente que o crime foi idealizado pelos dois irmãos e meticulosamente planejado por Rivaldo. E aqui se justifica a qualificação de Rivaldo como autor do delito, uma vez que, apesar de não ter o idealizado, ele foi o responsável por ter o controle do domínio final do fato^187, ao ter total ingerência sobre as mazelas inerentes à marcha da execução, sobretudo, com a imposição de condições e exigências.
Já no que concerne aos executores e membros da camada rasteira da horda criminosa, a torpeza de suas condutas decorre da promessa de recompensa^188 idealizada pelos Irmãos Brazão e prontamente aceita por Edmilson Macalé e Ronnie Lessa, qual seja: a implementação e o comando de um grupo paramilitar em uma grande extensão de terras vinculada à Família Brazão, nas adjacências da Estrada Comandante Luís Souto, no bairro da Praça Seca.
Diante de todo esse cenário fático, inexistem maiores digressões acerca da relevância das condutas perpetradas por Domingos, Chiquinho e Rivaldo para a consecução do resultado naturalístico produzido, ainda que estes não tenham praticado a conduta prevista no núcleo do tipo penal, tendo em vista que se utilizaram de sicários para se manterem distantes do delito.
No que tange às demais qualificadoras, em relação a todas as vítimas, resta suficientemente demonstrado que o crime ocorreu mediante emboscada e, portanto, impossibilitou suas defesas, o que se extrai notadamente do Laudo de Reprodução Simulada dos Fatos n.º DH-RJ-SPC-001632/2018 de fls. 5692/5739, do depoimento da vítima Fernanda Gonçalves e da dinâmica narrada pelo réu colaborador Élcio Vieira de Queiroz nas declarações prestadas em sede de acordo de colaboração premiada, ante o ataque de inopino e fora do raio de visão dos tripulantes do veículo alvo, na forma do artigo 30, do Código Penal.
Por fim, ainda que a dinâmica delitiva demonstre que o resultado em relação às vítimas Anderson Gomes e Fernanda Gonçalves decorreu de uma consequência direta da vontade consciente de produção do resultado morte em relação a Marielle, o que a doutrina batizou de dolo de segundo grau ou dolo de consequências necessárias^189, tal tese não se mostra discrepante com a qualificadora de que o crime em relação a elas teria ocorrido para garantir a impunidade do crime perpetrado contra Marielle, notadamente pela necessidade dos executores em criar obstáculos à futura instrução criminal, com a redução instantânea de possíveis sobreviventes para narrar os detalhes da execução.
Bem delineado o fato típico, inexistem causas de exclusão da antijuridicidade e da culpabilidade dos agentes vinculados ao caso em tela.
Notas:
^187 “Autor é quem possui o controle sobre o domínio final do fato: domina finalisticamente o trâmite do crime e decide acerca de sua prática, suspensão, interrupção e condições.”
MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral (arts. 19 ao 120) – vol. 1. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019. p. 421.
^188 Ainda que haja certa divergência entre as turmas de matéria penal do c. Superior Tribunal de Justiça acerca da matéria, o reconhecimento da qualificadora do pagamento de recompensa em relação ao executor do crime de homicídio mercenário não qualifica automaticamente o delito em relação ao mandante, nada obstante este possa incidir no referido dispositivo caso o motivo que o tenha levado a empreitar o óbito alheio seja torpe.
(STJ. 6ª Turma. Resp 1.209.852/PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 15/12/2015 – Informativo 575).
^189 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1, 17. ed. p. 245. Rio de Janeiro: Impetus, 2015.