José Luís Fiori: O novo projeto alemão para a União Europeia

Por José Luís Fiori

Quatro fantasmas assombram a Europa neste início de 2024: a crise econômica, a revolta social, a volta do fascismo e a guerra com a Rússia.

A Comissão Econômica Europeia está prevendo, para 2024, um crescimento do PIB de apenas 0,9%, e o Banco da Inglaterra, depois de dois anos de estagnação, está prevendo um crescimento britânico de 0,25%.

E esta é a expectativa com relação a quase todos os países europeus, paralisados por suas altas taxas de juros, de inflação e de desemprego.

Como consequência quase direta desta crise, multiplicam-se as greves e os protestos sociais, de leste a oeste, e de norte a sul do continente, onde avançam os partidos de extrema direita, e os movimentos fascistas adquirem cada vez maior força eleitoral, ameaçando os próprios fundamentos ideológicos e políticos do projeto de unificação da Europa.

Não há dúvida, entretanto, de que foi na Alemanha que os impactos da Guerra da Ucrânia se fizeram sentir de forma mais contundente e destrutiva. A economia alemã retrocedeu 0,4% no último trimestre de 2023, e deve contrair ainda mais 0,1% no ano de 2024.

E, mais grave do que isto, os alemães sofreram uma grande perda de competitividade, e vêm enfrentando um acelerado processo de desindustrialização depois de suspender seus contratos de importação da energia barata da Rússia – uma estranha maneira de punir os russos que está destruindo a própria economia alemã.

O preço da energia subiu 41%, as greves de transporte são cada vez mais frequentes e extensas, e os protestos dos agricultores alemães são quase permanentes.

Por outro lado, as pesquisas de opinião indicam que o partido da extrema direita, Alternativa para a Alemanha (AFD) já conta hoje com o apoio de 19% dos eleitores, deve se transformar no segundo maior partido alemão.

E não é impossível que seja chamado a fazer parte do governo alemão depois das eleições parlamentares de 2025, mesmo tendo forte presença de setores fascistas ou mesmo nazistas, que defendem posições xenófobas, anti-islâmicas, e favoráveis à retirada alemã da União Europeia.

Esta história poderia ter sido diferente se os europeus e a Alemanha, em particular, tivessem apoiado as negociações de paz entre a Rússia e a Ucrânia no início de 2022. Mas não foi isto que aconteceu.

Num primeiro momento, a Alemanha adotou uma posição reticente frente à agressividade anglo-americana, mas a ala mais belicista do seu governo acabou se impondo, sob a liderança da ministra de Relações Exteriores, Annalena Baerboch, e do ministro da Defesa, Boris Pisterius, em estreita coordenação com a presidenta da Comissão Europeia, a Sra. Ursula von der Leyen, que havia sido ministra de Defesa da Alemanha entre 2013 e 2019.

Depois disto, o próprio primeiro-ministro social-democrata Olaf Scholz acabou se declarando partidário de uma “cooperação total da Alemanha com os Estados Unidos” e, de fato, durante os dois anos que já dura a guerra na Ucrânia, a Alemanha transformou-se no segundo maior fornecedor do armamento utilizando pelo governo Volodymyr Zelensky contra as tropas russas.

Uma vez definida esta posição ao lado da Ucrânia e contra a Rússia, o governo alemão criou um Fundo Emergencial de 100 bilhões de euros para aquisição imediata de armamento de última geração.

E, em novembro de 2023, o ministro Da defesa Boris Pisterius divulgou as “Novas Diretrizes da Política de Defesa da Alemanha”, um documento de 19 páginas – o Zeitenwende – que define como novo objetivo estratégico das Forças Armadas alemãs transformar-se na “espinha dorsal da dissuasão e da defesa coletiva de toda a Europa”.

Junto com isto, Boris Pisterius anunciou a elevação do gasto militar alemão para 2% do orçamento federal em 2024, e para 3 e 3,5%, em 2025 e 2026, conclamando os demais países europeus a fazerem o mesmo que a Alemanha.

Em completa sintonia com a Sra. Ursula von der Leyen, que anunciou sua candidatura à reeleição para a chefia da Comissão Europeia, ao mesmo tempo que prometia para breve “uma nova estratégia de defesa para a Europa” que se propõe “gastar mais, gastar melhor e gastar sobretudo com armamentos produzidos na própria Europa, utilizando-se da experiência na Ucrânia, para ultrapassar a Rússia”.

Por fim, no dia 12 de fevereiro de 2024 – em entrevista concedida à Agência AFP – o primeiro-ministro Olaf Scholz afirmou que projeto do seu governo é superar a crise econômica e assumir a liderança militar da Europa.

Nessa entrevista, Olaf Scholz conclamou os europeus a “produzirem material militar em massa” e defendeu a necessidade de que a Alemanha “abandone sua indústria manufatureira para concentrar-se na produção de armamento em larga escala”, porque “nós não estamos vivendo em um tempo de paz”.

Essas mesmas ideias foram levadas à Conferência Estratégica de Munich, realizada de 17 a 19 de fevereiro, e marcada pela difusão de uma informação “confidencial” atribuída a Bundeswehr, e vazada pelo tabloide alemão Bild, que anunciava uma invasão russa do território da OTAN para o ano 2025.

A informação foi desmentida, mas depois de já ter provocado o pânico generalizado e haver mobilizado o sentimento “russofóbico” dos participantes, recolocando a Rússia na condição do grande “inimigo externo” dos europeus, como já havia acontecido com a malsucedida invasão francesa da Rússia em 1812, e com a fracassada invasão alemã da União Soviética, em 1941.

Resumindo, tudo indica que, hoje, o objetivo comum da Alemanha de Olaf Scholz, e da Comissão Europeia de Ursula von der Leyde é criar uma “economia de guerra” no território europeu.

Uma economia de guerra liderada pela Alemanha, que abriria mão de sua indústria manufatureira para transformar-se na cabeça de um complexo militar, integrado a partir da própria Alemanha, envolvendo os demais países europeus, segundo as “vantagens comparativas” de cada um deles.

Por este caminho, é óbvio, a “Europa dos cidadãos”, idealizada por Konrad Adenauer, ou mesmo a “Europa dos mercadores”, criticada por François Mitterand, seria substituída por uma nova “Europa dos soldados e dos canhões”, como nos velhos tempos da própria Europa.

O novo projeto alemão para a União Europeia conta com o apoio dos Estados Unidos e, se tiver sucesso, confirmará o declínio e a perda de protagonismo da França, mesmo dentro da Europa.

E seria uma compensação pela destruição dos gasodutos do Báltico, o Nord Stream 1 e 2, que teriam sido fundamentais para o sucesso da economia alemã.

Esta nova configuração de forças dentro da Europa deverá ser sacramentada pela escolha do primeiro-ministro holandês Mark Rutte para o cargo de Secretário Geral da OTAN, no lugar do norueguês Jens Stoltenberg, com o apoio exatamente dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Alemanha.

Mark Rutte é membro do Partido Popular para a Liberdade e Democracia, da extrema direita holandesa, militarista, xenófoba e anti-islâmica, mas muito próximo das posições belicistas e “russofóbicas” da Sra Von der Leyden, e do ministro de Defesa alemão Boris Pisterius.

Neste sentido, a provável escolha de Mark Rutte para o comando da OTAN deve favorecer o processo de redefinição e centralização do poder que está em curso dentro da Europa, e que aponta na direção de Berlim.

Se tudo correr como está planejado, em cinco ou dez anos mais, a Alemanha somará à sua ascendência econômica e à sua tutela financeira do Europa, sua nova preeminência militar, incluindo sua influência sobre a OTAN, através de Mark Rutte, alcançando finalmente a hegemonia dentro do Velho Continente que vem buscando sem sucesso – por vários caminhos – desde o século XIX.

Essa estratégia vem sendo concebida junto com o governo Joe Biden, mas deve se manter mesmo em caso de vitória de Donald Trump. Se Trump vencer, é possível que a Alemanha recorra a um novo Acordo de Munique, para assegurar a cobertura atômica da Inglaterra, no caso de uma iniciativa nuclear alemã que não contasse com a cobertura atômica dos Estados Unidos.

De qualquer maneira, o objetivo da Alemanha, neste momento, não é guerrear com a Rússia; é montar e comandar uma “economia de guerra” europeia, mas mesmo assim esse projeto demandará pelos menos uns cinco anos de “carência”, daí a necessidade alemã de que a Guerra da Ucrânia se prolongue na forma de uma “guerra de atrito” que não tenha vitoriosos.

Mas como ensina a história da Primeira Guerra Mundial, quando os europeus voltam às armas, eles também podem voltar à guerra, mesmo sem querê-lo: basta um erro de cálculo, provocado por uma bravata como as que costuma fazer o presidente Emmanuel Macron, ou o vazamento de uma conspiração de generais alemães para atacar a ponte da Crimeia, na Rússia, como acabou de acontecer, e toda essa cuidadosa montagem pode terminar em mais uma grande guerra europeia.

A diferença é que agora seria uma guerra da OTAN contra a Rússia e, neste caso, como disse recentemente o ex-presidente russo Daniil Mevedev, se trataria de uma “guerra assimétrica”, que obrigaria os russos a utilizar imediatamente seu armamento nuclear.

Isso significa, em última instância, que se o novo projeto alemão para a Europa for bem-sucedido, ele encerraria os 80 anos de ocupação militar unilateral e explícita do território alemão pelas tropas americanas. Mas, ao mesmo tempo, recolocaria o Velho Continente na beira do abismo.

José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo). [https://amzn.to/3RgUPN3]

Publicado originalmente na revista Observatório Internacional do Século XXI, n°. 4.

Crédito/Foto: Liesa Johannssen-Koppitz/Bloomberg/Getty Images

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