A lua de mel acabou, mas o amor continua

Ricardo Stuckert

Os números de aprovação do governo Lula, divulgados pela Quaest hoje pela manhã, seriam excelentes em qualquer país democrático, onde há uma polarização natural da sociedade, que dificulta percentuais astronômicos de aprovação.

No Brasil, porém, temos alguns complicadores, que obrigam um governo de esquerda a fazer um esforço maior do que o seria necessário em outros lugares.

Antes de prosseguir o raciocínio, vamos aos números.

Segundo a Quaest, Lula é aprovado por 51% dos brasileiros e desaprovado por 46%. Houve queda de 3 pontos na aprovação desde a pesquisa anterior, feita em dezembro. Essa oscilação, todavia, não seria tão relevante assim, pois o histórico mostra estabilidade desde o início do governo. Lula já teve 51%, em abril de 2023, cresceu até 60% em agosto, ficou estável em 54% por duas pesquisas e voltou para 51% agora.

A desaprovação, porém, chegou ao nível mais alto da série, o que é explicado também pela queda no número de indecisos, que hoje é de apenas 3%. Praticamente, todos os brasileiros hoje tem uma opinião formada sobre o governo Lula: um pouco mais da metade aprova, e um pouco menos da metade não aprova.

Retomando o raciocínio do começo desta análise, um governo de esquerda, num país como o nosso, e numa conjuntura como a nossa, precisa sempre se preocupar mais do que, por exemplo, um Macron na França (que tem baixíssima aprovação) em virtude de algumas diferenças fundamentais: Macron é impopular, mas tem sólida maioria parlamentar e amplo apoio na classe média francesa; Lula tem uma situação muito mais vulnerável no legislativo, ainda hegemonizado por forças mais ou menos hostis ao governo, e a classe média brasileira é, em sua maioria, de oposição (embora isso pareça está mudando, como veremos adiante).

A situação ainda é estável para Lula, porém.  Apesar do conservadorismo do congresso, o governo conseguiu atravessar a transição e o primeiro ano com tranquilidade (até mesmo o 8 de janeiro foi superado sem maiores sobressaltos), e nada indica, até o momento, que haverá nenhuma mudança dramática este ano.

Os parlamentares já começaram as conversas para as eleições municipais, o que ajuda a cristalizar a polarização, e isso não é necessariamente ruim para Lula, pois ao mesmo tempo que empurra a oposição mais radical para longe dele, exerce a força contrária sobre prefeitos e candidatos em regiões menos contaminadas de bolsonarismo.

Lula tem um grande trunfo a seu favor, que é o mesmo que tinha Bolsonaro, e que explica a resiliência do bolsonarismo até o último minuto de sua administração: o fator tempo. Quanto mais o tempo passa, mais o novo governo aprende com seus próprios erros, retificando-os, e seus acertos, investindo mais nestes. Além do mais, há uma curva inexorável para qualquer administração pública. No primeiro ano, o governante estabelece uma ordem de prioridades, aprova uma estratégia, assina contratos. É a partir do segundo ano que as coisas realmente começam a acontecer.

Vamos adiante na análise da pesquisa, e olhemos para o gráfico estratificado por renda.

Entre os eleitores com renda familiar até 2 salários,  a aprovação de Lula se mantém elevadíssima, em 61%, dentro da média alcançada em toda a série histórica. Observe que Lula chegou a 60% em abril de 2023 (ou seja, menos que hoje), e subiu para 68% em agosto. A desaprovação nesta faixa, que representa 38% da população, permanece relativamente baixa, em 36%.

É na faixa de renda intermediária, das famílias que ganham de 2 a 5 salários, que a situação de Lula realmente se deteriorou nesta pesquisa, com sua aprovação caindo de 52% para 45%, e sua desaprovação explodindo para 52%. Não é uma situação desastrosa, porém. Além de 45% ser um nível razoável de aprovação, o desempenho na camada logo acima, das famílias com renda superior a 5 salários, mostra que não há nenhuma debandada maciça da classe média.

Entre as famílias com renda acima de 5 salários, a aprovação de Lula subiu 3 pontos, de 41% para 44%, e a desaprovação oscilou um ponto para baixo, de 55% para 54%.

Considerando que a classe média tradicional está representada sobretudo nesta faixa superior, é certamente um alívio para o governo que ele tenha melhorado seu desempenho num setor extremamente estratégico e perigoso em tempos de encarniçada guerra cultural.

A pesquisa sugere que a leve piora da avaliação do presidente e do governo decorreram principalmente da percepção no aumento dos preços dos alimentos, de um lado, e da repercussão ao comentário de Lula sobre o genocídio em Gaza, quando ele comparou as atrocidades cometidas pelo exército de Israel ao que Hitler fazia com judeus.

Os indicadores mais recentes de inflação mostraram, de fato, uma alta nos preços dos alimentos, embora a média em 12 meses permaneça dentro da meta estabelecida pelas autoridades monetárias. Até janeiro, o acumulado foi de 4,51%, segundo o IBGE. É normal que se registre uma piora do humor popular, muito sensível à inflação, mas ao mesmo tempo os indicadores também registraram queda no desemprego (para 7,6% em janeiro) e aumento da renda, de maneira que a economia tem sido, no geral, um ponto forte do governo.

Aparentemente o que pegou mesmo, ao menos nessa pesquisa, foi outra coisa: a profusão desesperadora de imagens e vídeos do massacre em Gaza, de um lado, mais a guerra de narrativas sobre o conflito, mexeram com os ânimos do país, gerando um mal estar que puxou para baixo a avaliação de Lula em alguns segmentos.

Um dos gráficos, que trata da avaliação do governo segundo a religião, mostra que as lideranças evangélicas conservadoras, que formam o núcleo mais duro e mais ideológico de oposição, procuraram capitalizar ao máximo a reação negativa que o comentário de Lula produziu na mídia tradicional brasileira, profundamente identificada, embora por razões diferentes daquelas que movem líderes religiosos, com os interesses geopolíticos dos Estados Unidos, a força principal por trás de Israel.

Por outro lado, é curioso notar que a aprovação do governo entre católicos não caiu, na verdade até oscilou um ponto para cima, de 41% para 42%, embora tenha se registrado uma elevação de 3 pontos na desaprovação, que subiu para 28%, um percentual porém ainda muito baixo. Toda a deterioração se concentrou, portanto, entre os eleitores evangélicos, junto aos quais a avaliação positiva de Lula caiu 5 pontos, de 27% para 22%, e a negativa virtualmente explodiu 12 pontos, para 48%.

No gráfico que distribui a aprovação do presidente Lula por voto no segundo turno de 2022, nota-se que o petista se mantém fortemente aprovado ente seus próprios eleitores. Segundo a Quaest, 85% dos eleitores de Lula aprovam o seu trabalho. Houve queda de cinco pontos sobre a pesquisa anterior, de dezembro, mas em fevereiro de 2023 este número era de 87%, então ainda se pode dizer que há estabilidade. A lua de mel pode estar no fim, mas o amor continua.

O problema está concentrado entre eleitores de Bolsonaro, cujos estrategistas tem manipulado com eficiência o sentimento de vitimismo diante de seus problemas na justiça: a desaprovação de Lula subiu de 83% para 88% entre os brasileiros que apertaram 22 no segundo turno das últimas eleições presidenciais.

O comentário de Lula sobre o genocídio teve um impacto enorme na opinião pública, aparentemente por gerar uma convergência explosiva (para Lula) entre mídia corporativa e bolsonarismo evangélico, duas potências em termos de influência no debate público. Segundo a Quaest, 60% consideram que Lula “exagerou” ao comparar o que acontece em Gaza ao que Hitler fez na segunda guerra.

O problema para Lula foi que, desta vez, a reação negativa veio também de seu próprio eleitorado. Segundo a Quaest, 43% dos eleitores do petista disseram que Lula “exagerou”, contra 45% que concordaram com a imagem usada por Lula.

Entre eleitores de Bolsonaro, todavia, 85% falaram em exagero. E 58% dos que votaram branco ou nulo também falaram em exagero.

Permitam-me um aparte sobre este ponto. Lula não está fazendo um cálculo eleitoral quando comenta sobre Gaza. O petista está genuinamente movido, a meu ver, por um sentimento muito mais profundo, que não é todavia destituído (como nada em Lula o é) de instinto político.  A gravidade do que ocorre em Gaza, numa conjuntura internacional de mudança acelerada no eixo geopolítico do mundo, fez Lula decidir correr um risco.

Lula prefere perder três pontinhos numa pesquisa da qual ninguém irá se lembrar no futuro, com efeitos limitados ao curto prazo, em nome de uma posição mais corajosa e mais ética diante da história.

Por outro lado, creio haver também um tipo mais profundo de cálculo político, e até mesmo econômico por parte de Lula, que está ficando cada vez mais evidente por todos os movimentos internacionais do presidente, desde o início de sua administração.

Lula está identificando, por instinto, por conselhos de Celso Amorim, ou por ter acesso a estudos sobre isso, uma profunda transformação na correlação de forças no concerto das nações, e constatou que um realinhamento do Brasil pode nos trazer grandes vantagens no futuro próximo – e isso sem nos afastar realmente dos países do Norte Global, como se pode se ver pelos anúncios cada vez mais frequentes de investimentos no Brasil por parte de multinacionais da Europa.

A Quaest também fez uma pesquisa por nível de instrução do eleitor. Aqui temos dados que sinalizam, ao contrário do que o senso comum midiático costuma interpretar, uma resiliência ou mesmo fortalecimento de Lula junto à classe média tradicional.

Entre os eleitores com ensino superior ou mais, a aprovação de Lula subiu dois pontos, de 43% para 45%, e sua desaprovação caiu igualmente dois pontos, de 55% para 53%. Este é um segmento particularmente estratégico da opinião pública, porque o maior nível de instrução proporciona as ferramentas intelectuais necessárias para as batalhas de opinião que, desde alguns anos, tem marcado tão profundamente o debate político no país.

Em suma: embora um governo de esquerda, num país como o Brasil, nunca possa baixar a guarda, e tem uma margem de erro sempre muito estreita, a pesquisa Quaest ainda mostra uma situação relativamente tranquila para o governo Lula.

Clique aqui para baixar a íntegra do relatório da Quaest.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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