Agravamento da crise humanitária provoca uma onda de condenação contra a operação militar em curso e testa o apoio até de Washington
Quando David Ben-Gurion, um dos pais fundadores de Israel, foi avisado em 1955 de que seu plano de tomar a Faixa de Gaza do Egito provocaria uma reação na Organização das Nações Unidas, ele ridicularizou a ONU, numa fala que ficou famosa como símbolo da disposição de Israel de desafiar organizações internacionais quando acredita que seus interesses principais estão em jogo. Quase 70 anos depois, Israel enfrenta outra onda de condenação na ONU, na Corte Internacional de Justiça e dezenas de países por sua operação militar em Gaza, que matou aproximadamente 29 mil palestinos, muitos deles mulheres e crianças, e deixou grande parte do território em ruínas.
A enorme pressão global deixou o governo israelense e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu profundamente isolados, se ainda não totalmente sozinhos, em grande parte porque ainda têm o apoio de seu mais firme aliado, os Estados Unidos.
Desta vez, no entanto, Israel enfrenta uma rara quebra com Washington. O governo Biden está circulando um projeto de resolução no Conselho de Segurança da ONU que alertaria o Exército israelense para não realizar uma ofensiva terrestre em Rafah, perto do Egito, onde mais de 1 milhão de refugiados palestinos estão se abrigando. Também pediria um cessar-fogo temporário.
— É um grande problema para o governo israelense, porque ele sempre foi capaz de se esconder atrás da proteção dos Estados Unidos — disse Martin Indyk, ex-embaixador dos EUA em Israel. — Mas agora [Joe] Biden está sinalizando que Netanyahu não pode mais considerar essa proteção como garantida. Há um contexto mais amplo de condenação pela opinião pública internacional, que é sem precedentes em amplitude e profundidade, e que se espalhou para os Estados Unidos. Os progressistas do Partido Democrata, a juventude e os eleitores árabes-americanos todos ficaram irritados e criticaram duramente Biden por seu apoio a Israel.
Até agora, o presidente Biden não permitiu que a pressão internacional ou doméstica o influenciasse. Na terça-feira, os Estados Unidos voltaram a um papel familiar, invocando seu veto no Conselho de Segurança para bloquear uma resolução, patrocinada pela Argélia, que exigia um cessar-fogo imediato em Gaza. Foi a terceira vez durante a guerra entre Israel e o Hamas que os Estados Unidos vetaram uma resolução colocando pressão sobre Israel.
Desde que as Nações Unidas foram estabelecidas em 1945, três anos antes do Estado de Israel, os Estados Unidos usaram seu veto mais de 40 vezes para proteger o país no Conselho de Segurança. Na Assembleia Geral da ONU, onde os americanos são apenas mais um voto, as resoluções contra Israel são comuns. Em dezembro passado, a Assembleia votou 153-10, com 23 abstenções, por um cessar-fogo imediato.
— Para os israelenses, essas organizações estão contra nós — disse Michael Oren, ex-embaixador de Israel nos Estados Unidos, referindo-se à ONU, à Corte Internacional de Justiça e a outros órgãos. — O que eles fazem não nos afeta estrategicamente, taticamente ou operacionalmente.
Mas Oren reconheceu que qualquer quebra com os Estados Unidos, seu maior fornecedor de armas, poderoso aliado político e seus principal defensor internacional, seriam “outros quinhentos”.
Embora Israel tenha enfrentado uma forte pressão desde os primeiros dias de sua ofensiva em Gaza, o coro de vozes de países que o criticam se tornou ensurdecedor nos últimos dias. Em Londres, o Partido Trabalhista, da oposição, pediu um cessar-fogo imediato na terça-feira, mudando sua posição em relação ao Partido Conservador, no governo, sob pressão de seus membros e de outras legendas.
Acusação na CIJ
Possivelmente a manifestação mais marcante do isolamento de Israel ocorre na Corte Internacional de Justiça em Haia, onde representantes de 52 países estão se preparando para esta semana apresentar argumentos em um caso que examina a legalidade da “ocupação, assentamento e anexação” de territórios palestinos por Israel, incluindo a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. A maioria tem sido extremamente crítica em relação a Israel.
A África do Sul comparou o tratamento de Israel aos palestinos a uma “forma extrema de apartheid”. O governo sul-africano trouxe um caso separado à corte acusando Israel de genocídio em Gaza.
Na quarta-feira, os Estados Unidos mais uma vez defenderam Israel, implorando à Corte para não emitir uma decisão que exija que Israel se retire incondicionalmente desses territórios. Um advogado do Departamento de Estado, Richard C. Visek, argumentou que isso tornaria ainda mais difícil um acordo de paz entre Israel e os palestinos, pois não levaria em conta a segurança de Israel.
Mas a voz dos Estados Unidos está cada vez mais isolada, e só o Reino Unido hoje concorda com esse argumento.
— A verdade é exatamente o oposto — disse Philippe Sands, um advogado de direitos humanos que falou em nome dos palestinos. — A função desta Corte, desses juízes, de vocês, é declarar a lei: definir os direitos e obrigações legais que permitirão uma solução justa no futuro.
Uma decisão da Corte Internacional de Justiça seria apenas consultiva, e Israel se recusou a comparecer ao tribunal e reconhecer os procedimentos. Mas o embate com as organizações internacionais não significa que o governo israelense as ignore completamente.
Israel inicialmente rejeitou a alegação de genocídio da África do Sul como “desprezível”. Houve relatos de que Netanyahu queria enviar Alan Dershowitz, o advogado que defendeu o ex-presidente Donald Trump e o financista e agressor sexual Jeffrey Epstein, para apresentar o caso de Israel — uma escolha que alguns disseram que teria transformado a audiência em um circo.
No final, enviou uma equipe jurídica de alto nível, liderada por um respeitado advogado australiano-israelense, Tal Becker, que argumentou que a África do Sul apresentou “uma descrição contrafactual abrangente” do conflito.
Em uma decisão provisória no início de fevereiro, a Corte ordenou que Israel impedisse e punisse declarações públicas que constituíssem incitações ao genocídio e garantisse que a ajuda humanitária chegasse a Gaza. Mas não atendeu a um pedido-chave da África do Sul: que Israel suspendesse sua campanha militar.
Por Mark Landler, para o The New York Times, de Nova York
23 de fevereiro de 2024