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Kakay: a dura realidade: processo penal não é ficção

Por Kakay “Sinto esse frio coração em mim. Admirado de ser um coração, tão frio está.” – Fernando Pessoa Há alguns anos, em um debate em Coimbra, um intelectual português falou na palestra que todo aquele que dizia não existir mais a divisão entre esquerda e direita era porque era de direita. Fui observando as […]

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Extremistas presos no 8 de janeiro. Brasília, janeiro de 2023.


Por Kakay

“Sinto esse frio coração em mim. Admirado de ser um coração, tão frio está.” – Fernando Pessoa

Há alguns anos, em um debate em Coimbra, um intelectual português falou na palestra que todo aquele que dizia não existir mais a divisão entre esquerda e direita era porque era de direita. Fui observando as discussões no mundo sempre tendendo a confirmar a impressão do cientista político. Nos últimos tempos, as dúvidas se aprofundaram. O crescimento internacional da ultradireita deu outro contorno às diferenças políticas e, até mesmo, ao posicionamento das pessoas nas relações do dia a dia.

A extrema-direita precisa alimentar um grande número de seguidores que se porta de maneira irracional, agressiva, intuitiva e com comportamento que, muitas vezes, não segue nenhuma racionalidade, salvo a atitude de uma seita ensandecida.

A maneira de agir dos bolsonaristas, durante os 4 anos de governo Bolsonaro, não pode ser considerada como um comportamento dentro de uma normalidade. A adoração a pneus, a propagação de que a Terra é plana, a crença de que a vacina pode transformar alguém em jacaré, a opção pelo ódio, pela violência, pelo preconceito e pela reverência à tortura, tudo revela uma conduta doentia e perigosa. Ninguém leu Manoel de Barros:

“Ando muito completo de vazios. Meu órgão de morrer me predomina. Estou sem eternidades”.

No caso brasileiro, esse hábito se tornou um mantra para a manutenção da existência da extrema-direita. Foi exatamente a aposta na polarização, nos acampamentos nos quartéis, na pregação pela necessidade da ruptura institucional com a interferência das Forças Armadas, na convicção de fechar o Supremo Tribunal e na instalação de um governo de força que manteve unido, até na cadeia, um bando de ineptos e fanáticos coordenados por uma direita dinheirista, corrupta e com forte base em grupos de militares, empresários e políticos.

Nada é por acaso. Tentaram o golpe. Falharam, por enquanto, em razão da resistência democrática dentro das instituições, especialmente do Poder Judiciário.

Mas uma série de questões continuam a preocupar e, de certa forma, tumultuar o momento delicado pelo qual passa o país. Boa parte dos bolsonaristas mais empedernidos continua tratando o processo penal como uma ficção. Estavam descolados da realidade na tentativa de promover um golpe, com a abolição do Estado Democrático de Direito, e seguem em um mundo à parte. Chegam informações no sentido de que vários condenados e presos há mais de 1 ano pelo 8 de Janeiro continuam a viver numa bolha, na qual criaram uma falsa realidade. É assustador.

Os pretendentes a terroristas que encaram, já condenados ou aguardando julgamento, as agruras de um regime fechado e cruel continuam a considerar que o mundo aqui fora é outro. Acreditam que o ex-presidente Bolsonaro coordena o país, que as Forças Armadas estão de prontidão e que a ditadura está prestes a ser instalada.

É insano. Vivem em bolhas nas prisões sem perceberem que ainda irão cumprir 5, 6 ou 7 anos nesse sistema prisional medieval. Isso sem contar os vários outros anos de cumprimento de pena. Foi uma verdadeira lavagem cerebral.

Agora, com o aprofundamento técnico e sério das investigações, o quadro tende a se agravar. A última fase da operação que, corretamente, desnudou o comportamento de 16 militares de alto coturno, certamente, abrirá espaço para o necessário e republicano enfrentamento dos coordenadores do movimento golpista. Líderes políticos, militares, financiadores e a família Bolsonaro.

A sensação que fica, para quem está acompanhando o desenrolar das apurações, é a de que não só os golpistas iniciantes, que foram usados como bucha de canhão, estão completamente fora da realidade. Mesmo o grupo que, seguramente, é o responsável direto pela organização do plano golpista insiste em viver em um mundo à parte. Parece que desistiram da defesa técnica.

E olhe que, por enquanto, só se tem conhecimento de uma delação premiada e ainda não veio a lume o grande material apreendido nas diversas buscas e apreensões, inclusive nas casas de generais que se sentiam intocáveis.

É bom que esse panorama passe a ser enfrentado adequadamente. Para os que já estão presos, a miséria humana vai, a cada dia, trazer o tamanho da desgraça que se abateu sobre eles. E não terão como viver eternamente no mundo fictício que criaram.

A realidade dura, nua e crua vai, cada dia mais, mostrar a gravidade do que fizeram ao tentar romper com a democracia. E o sofrimento de passar por um sistema prisional falido fará dessas pessoas verdadeiros farrapos humanos, desprovidos até de dignidade.

Em regra, os bolsonaristas golpistas nunca defenderam os direitos mínimos dos que estão no sistema carcerário. Desprezavam. Gostavam de humilhar. Pregavam que bandidos bons eram bandidos mortos. Acusavam-nos de resguardar os direitos humanos de bandidos. Nunca concordaram com nossa tese de que o condenado perde a liberdade, mas deve ter todos os demais direitos inerentes à pessoa humana preservados. Vão ter um longo tempo para refletir.

E, pelo visto, mesmo tentando se apegar ao mundo de ficção que construíram, a realidade já bate às portas e cada um vai ser responsabilizado pelas suas ações ou omissões. Esse é o preço que se paga para vivermos em um Estado Democrático de Direito.

Remeto-me ao velho Bertolt Brecht:

“Pelo que esperam?

Que os surdos se deixem convencer

E que os insaciáveis

Lhes devolvam algo?

Os lobos os alimentarão, em vez de devorá-los!

Por amizade

Os tigres convidarão

A lhes arrancarem os dentes!

É por isso que esperam!”

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