O Carnaval de 2024 transcorreu tranquilamente, com milhões de brasileiros saindo às ruas para dançar, cantar, se divertir, em centenas de cidades de todo o país. Os mais sossegados ficaram em casa, assistindo a festa pela televisão, ou aproveitando o feriado para descansar. Alguns momentos foram especialmente marcantes, como um diálogo ao vivo entre as cantoras Baby Consuelo e Ivete Sangalo, em Salvador. Baby e Ivete faziam uma participação especial num dos trios elétricos do carnaval da capital baiana, quando a primeira começou a alertar para a chegada do Apocalipse, em 5 ou 10 anos. Ivete então rebateu imediatamente que, com ajuda de Deus, ela iria “macetar o Apocalipse”. Aparentemente foi tudo improvisado, até mesmo pelo visível nervosismo de Ivete. O episódio todo acabou sendo engraçado, sobretudo em virtude da espirituosa resposta de Ivete Sangalo.
Mas eu lembrei de Baby Consuelo ao ler o editorial do Globo desta quarta-feira de cinzas, onde há uma menção sinistra a um possível confronto militar entre Estados Unidos e China, no qual o “apoio europeu” seria um “enorme ativo”.
Seguindo o exemplo da querida Ivete, gostaria de “macetar” o editorial apocalíptico do Globo…
O jornal carioca usa o editorial para criticar duramente uma fala recente de Donald Trump, na qual o presidenciável zomba da Otan, dizendo que incentivará a Rússia a atacar a quem “diabos quiser” na Europa, caso os países não cumpram sua meta de gastar 2% dos PIB em gastos militares.
A fala de Trump, hoje liderando as pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais americanas, que devem ocorrer em 5 de novembro deste ano, caiu como uma bomba em todo o mundo ocidental, e foi particularmente humilhante para a Europa.
É preciso interpretar corretamente o que Trump queria dizer. Seria ingenuidade atribuir-lhe alguma preocupação com a paz mundial. É exatamente o oposto. Trump exige dos vassalos europeus que aumentem suas despesas militares, para 2% do PIB, pela simples razão de que os EUA são o maior fabricante de armas do mundo. De maneira que, se os governos expandem seus gastos no setor, isso significa que terão de comprar mais da poderosa indústria bélica norte-americana.
Mas Trump cruzou uma linha importante da elegância diplomática adequada para a relação entre EUA e seus satélites. Para a Otan, foi um desastre. Ao tratar a Otan apenas como um mercado útil para os fabricantes de armas dos EUA, e ao fazer troça com uma coisa séria, dizendo que permitirá à Rússia fazer o que quiser na Europa, Trump implodiu a aliança, moral e politicamente. A organização ainda sobreviverá por algum tempo, mas os próprios europeus, depois dessa cacetada, já entenderam que ela nunca mais será a mesma.
Neste sentido, a fala de Trump foi comemorada, paradoxalmente, em setores anti-imperialistas do mundo inteiro, que também entenderam a sua consequência mais imediata: a desmoralização de uma organização que deveria ter sido extinta há muito tempo.
Voltando ao editorial do Globo, destaco o trecho, já mencionado, que achei particularmente sinistro: “o apoio europeu é um enorme ativo para dissuadir russos e chineses de ações militares. Não é preciso criatividade para imaginar o risco para o planeta do afastamento americano da Otan.”
Não vou me estender sobre a Rússia. Aconselho os internautas a acompanharem as entrevistas dos principais analistas geopolíticos americanos vivos hoje: John J. Mearsheimer e Jeffrey David Sachs (nos links, tem vídeos de entrevistas recentes com eles sobre a guerra na Ucrânia). Desde o início da guerra, tivemos tempo para nos informar sobre as causas da guerra na Ucrânia e agora minha opinião está formada. Quem iniciou essa guerra foi justamente a Otan, através do rompimento sistemático de acordos estabelecidos com a Rússia no início da década de 90. Mas discutiremos isso em outro momento.
O que me achou atenção, em particular, nesse editorial do Globo, foi a leveza, ou leviandade, com que o jornal arrastou a China para um cenário de guerra contra o Ocidente. E isso “do nada”, ou “doneide” como dizem os jovens.
Sei que, hoje em dia, pouca gente lê ou repercute editoriais do Globo… Mesmo assim, o tema é sério demais para deixarmos passar.
O apoio europeu é importante sim, não para “russos e chineses”, e sim para impedir os americanos de se lançarem em novas aventuras militares.
Vide também o massacre em Gaza. Os Estados Unidos são o principal responsável pela tragédia, porque apenas eles teriam poder de impedir Israel de prosseguir promovendo um genocídio de proporçõees bíblicas, que está produzindo instabilidade em todo oriente médio. Foi o veto americano, solitário, isolado, no Conselho de Segurança da ONU, que ajudou a guerra a se arrastar por meses, causando a morte de dezenas de milhares de palestinos, um número que Israel se esforça para multiplicar a cada dia.
Mesmo na China, o que vemos é, novamente, os Estados Unidos fazendo todo o tipo de provocação, como que desejando arrastar o gigante asiático para um conflito cujas consequências seriam dramáticas para o planeta.
Infelizmente o que temos visto, na prática, é uma subserviência total dos europeus aos delírios de grandeza dos Estados Unidos.
Outra frase sem sentido do editorial está no subtítulo, onde se trata a Otan como “principal pilar da paz global”.
Não é bem assim. Na verdade, é inteiramente o contrário.
A Otan hoje é o principal pilar da “guerra global”. O Globo, portanto, é a Baby Consuelo da geopolítica. Como a cantora, o jornal insinua que devemos nos preparar para um Apocalipse nuclear “em cinco ou 10 anos”.
Felizmente temos Ivete – e o bom senso.
O bom senso inventou a diplomacia e o pragmatismo político. Esperemos que o bom senso, portanto, faça com que empresas de mídia, políticos profissionais, e cidadãos comuns parem de falar em guerra de americanos e europeus contra russos e chineseses e passem a trabalhar por soluções pacíficas para os conflitos, através do fortalecimento e democratização dos órgãos multilaterais, investimento em técnicas de diplomacia, fim do uso político indiscriminado de sanções econômicas contra determinados países, defesa do cessar fogo na Palestina e chamada para uma rodada de negociação na Ucrânia!
Abaixo, a íntegra do editorial pró-Apocalipse nuclear do Globo:
Ataques de Trump à aliança atlântica geram instabilidade
Ao lançar diatribes contra a Otan, virtual candidato republicano sabota principal pilar da paz global
Editorial
14/02/2024
Desde que se lançou na corrida para a eleição presidencial deste ano, Donald Trump retomou suas provocações contumazes. O último alvo foi a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), acordo militar entre Estados Unidos, Canadá e países europeus. Em comício de campanha, ele relembrou a pergunta do líder de “um grande país” da Europa quando era presidente: “Se não pagarmos e formos atacados pela Rússia, você nos protegerá?”. Trump disse que respondeu: “Não, eu não os protegeria. Na verdade, eu os encorajaria a fazer o que diabos quisessem”.
A declaração de Trump é lastimável por colocar em dúvida o artigo número 5 do tratado, segundo o qual um ataque a qualquer integrante da aliança deve ser encarado como ataque a todos. Isso significa que os países mais fortes se comprometem a defender os mais fracos quando agredidos. Esse poder de dissuasão tem evitado há décadas uma guerra entre países da Otan e a Rússia.
É verdade que o petardo de Trump contra a aliança atlântica poderia não passar de mais uma bravata dele. Afinal, apesar de todos os ataques, das inclinações isolacionistas e dos acenos explícitos de Trump ao russo Vladimir Putin durante seu governo, a Otan resistiu incólume. Com a agressão da Rússia à Ucrânia, até cresceu com a adesão de dois países nórdicos antes neutros (Suécia e Finlândia). Mas há indícios de que, desta vez, caso eleito, Trump terá mais poder para pôr em marcha seus desígnios. E de que, por força da guerra em curso na Europa, eles venham a ser testados.
Em recente entrevista, o ministro da Defesa da Dinamarca, Troels Lund Poulsen, constatou uma mudança nos cenários traçados no continente. Para Poulsen, não se pode descartar a possibilidade de a Rússia, que invadiu a Ucrânia justamente para evitar que ela entrasse na Otan, pôr à prova a solidariedade atlântica nos próximos anos, algo que não era cogitado no ano passado. “Está vindo à tona agora”, disse.
Trump encara a aliança atlântica como um negócio. Em 2006, os países da Otan concordaram em gastar no mínimo 2% do PIB em defesa. No primeiro ano da Presidência de Trump, apenas quatro dos 29 integrantes atingiam a meta. No último ano de governo, eram nove. Os gastos com defesa de europeus e canadenses saíram de US$ 277 bilhões em 2017 para US$ 314 bilhões em 2020. Trump vê os países que não cumprem a meta como “inadimplentes”. Mas, mesmo com a saída dele da Casa Branca, os europeus continuaram a aumentar o gasto, que alcançou US$ 356 bilhões em 2023. A razão é óbvia: a instabilidade gerada pela guerra na Ucrânia. A Polônia, com vasto histórico de agressões russas, investiu 3,9% do PIB em defesa no ano passado.
Por décadas, a tendência isolacionista no eleitorado americano era combatida por um esforço bipartidário. Se Trump vencer, ficará mais difícil. Ele já tem agido para bloquear um novo pacote de ajuda à Ucrânia no Congresso.
Os Estados Unidos detêm as armas mais poderosas do mundo e gerações de soldados com experiência em combate. O apoio europeu é um enorme ativo para dissuadir russos e chineses de ações militares. Não é preciso criatividade para imaginar o risco para o planeta do afastamento americano da Otan. Basta lembrar que ela tem mantido o mundo em estado de paz relativa — com vários conflitos regionais, mas sem enfrentamento direto de grandes potências — desde a Segunda Guerra.
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