Ibrahim perdeu a irmã, a mãe e o avô quando mísseis atingirem sua casa
Nascida em meio aos horrores da guerra em Gaza, a menina de um mês deitada em uma incubadora nunca conheceu o colo dos pais.
Ela nasceu de cesariana depois que sua mãe, Hanna, foi gravemente ferida por um ataque aéreo israelense. Hanna não viveu para escolher o nome da filha.
“A gente simplesmente chama ela de filha de Hanna Abu Amsha”, diz a enfermeira Warda al-Awawda, que cuida da pequena recém-nascida no Hospital al-Aqsa em Deir al-Balah, no centro de Gaza.
No caos causado pela guerra em curso, com famílias inteiras quase exterminadas, médicos e socorristas muitas vezes lutam para encontrar cuidadores para crianças enlutadas.
“Perdemos o contato com a família dela”, conta a enfermeira. “Nenhum dos seus familiares apareceu e não sabemos o que aconteceu com o pai dela.”
As crianças, que compõem quase metade da população de 2,3 milhões de pessoas de Gaza, tiveram suas vidas destroçadas pela guerra.
Os ataques lançados por Israel já deixaram mais de 28 mil palestinos mortos, segundo o Ministério da Saúde controlado pelo Hamas.
Os bombardeios e invasão terrestre seguem a morte de mais de 1,2 mil pessoas durante os ataques do Hamas ao sul de Israel em 7 de outubro, segundo as autoridades israelenses.
Embora Israel diga que se esforça para evitar vítimas civis, emitindo por exemplo ordens de evacuação, mais de 11.500 menores de 18 anos foram mortos, de acordo com autoridades de saúde palestinas. Há ainda os feridos, aqueles com ferimentos que mudam completamente uma vida.
É difícil obter números precisos, mas de acordo com um relatório recente do Euro-Mediterranean Human Rights Monitor, um grupo sem fins lucrativos, mais de 24.000 crianças perderam um ou ambos os pais.
Ibrahim Abu Mouss, de apenas 10 anos, sofreu ferimentos graves nas pernas e no estômago quando um míssil atingiu sua casa. Mas suas lágrimas são pela mãe, pelo avô e pela irmã mortos.
“Ficaram me dizendo que elas estavam sendo tratadas no andar de cima no hospital”, diz Ibrahim enquanto seu pai segura sua mão.
“Mas eu descobri a verdade quando vi fotos no telefone do meu pai. Eu chorei tanto que doeu em todos os lugares.”
Os primos da família Hussein costumavam brincar juntos, mas agora sentam-se solenemente perto das sepulturas de areia onde alguns de seus familiares foram enterrados, próximo a uma escola que virou abrigo no centro de Gaza. Cada um perdeu um ou ambos os pais.
“O míssil caiu no colo da minha mãe e o corpo dela foi rasgado em pedaços. Por dias ficamos tirando as partes do corpo dela dos escombros da casa”, diz Abed Hussein, que morava no campo de refugiados de al-Bureij.
“Quando me disseram que meu irmão, meu tio e toda a minha família havia sido morta, senti que meu coração estava sangrando com fogo.”
Com bolsas escuras ao redor dos olhos, Abed fica acordado à noite, assustado com os sons do bombardeio israelense e sentindo-se sozinho.
“Quando minha mãe e meu pai estavam vivos, eu costumava dormir, mas depois que eles foram mortos, não consigo mais. Eu costumava dormir ao lado do meu pai”, explica ele.
Abed e seus dois irmãos estão sendo cuidados pela avó, mas a vida cotidiana é muito difícil.
“Não há comida nem água”, diz ele. “Estou com dor de estômago por beber água do mar.”
O pai de Kinza Hussein foi morto tentando buscar farinha para fazer pão. Ela é assombrada pela imagem de seu cadáver, trazido para casa para ser enterrado após ser morto por um míssil.
“Ele não tinha olhos e a língua estava cortada”, ela recorda.
“Tudo o que queremos é que a guerra acabe”, diz ela. “Tudo é triste.”
Quase toda a população em Gaza agora depende de distribuição de ajuda para o básico. De acordo com números da ONU, cerca de 1,7 milhão de pessoas foram deslocadas, muitas forçadas a se mover repetidamente em busca de segurança.
Mas a agência infantil da ONU, Unicef, diz que sua maior preocupação é com cerca de 19.000 crianças que estão órfãs ou sem qualquer adulto para cuidar delas.
“Muitas dessas crianças foram encontradas sob os escombros ou perderam os pais no bombardeio de suas casas”, diz Jonathan Crickx, chefe de comunicações da Unicef Palestina, de Rafah, no sul de Gaza. Outros foram encontrados em postos de controle israelenses, hospitais e nas ruas.
“Os mais jovens muitas vezes não conseguem dizer seu nome e até mesmo os mais velhos geralmente estão em choque, então pode ser extremamente difícil identificá-los e potencialmente reagrupá-los com a família estendida.”
Mesmo quando é possível encontrar familiares, eles nem sempre estão em condições de ajudar a cuidar de uma criança enlutada.
“Tenhamos em mente que muitas vezes eles também estão em uma situação muito ruim”, diz Crickx.
“Eles podem ter seus próprios filhos para cuidar e pode ser difícil, quando não impossível, cuidar dessas crianças desacompanhadas e separadas.”
Desde que a guerra começou, a organização sem fins lucrativos SOS Children’s Villages, que atua localmente com a Unicef, diz que tem trabalhado para receber 55 crianças, todas com menos de 10 anos. E empregou uma equipe especializada adicional em Rafah para fornecer ajuda psicológica.
Um funcionário sênior da equipe da SOS conta de uma criança de 4 anos que foi deixada em um posto de controle. Ela foi trazida com mutismo seletivo, um transtorno de ansiedade que a deixou incapaz de falar sobre o que aconteceu com ela e a família. Mas agora, depois de ser recebida com presentes e brincar com outras crianças com quem vive, está progredindo.
A Unicef acredita que quase todas as crianças em Gaza hoje precisam de apoio à saúde mental.
Com suas vidas dilaceradas, mesmo quando houver um cessar-fogo duradouro, muitos ficarão com traumas difíceis de superar.
Publicado originalmente pela BBC News em 12/02/2024
Por Yolande Knell