Por Rodrigo Perez
O discurso do presidente Lula na cerimônia de refiliação de Marta Suplicy ao Partido dos Trabalhadores (em 04/02) instaurou definitivamente o debate a respeito daquilo que se convencionou chamar de “identitarismo”.
A discussão não é nova e já há algum tempo desperta embates acalorados dentro do campo político progressista.
Durante o governo Bolsonaro, esses conflitos ficaram relativamente contidos, em compasso de espera. Afinal, o bode estava na sala. Era necessário tirá-lo e não havia ambiente para que os “companheiros” brigassem entre si.
Com a vitória de Lula, a situação mudou e a guerra foi definitivamente declarada. A temperatura está tão alta que a questão chamou a atenção do presidente Lula e de outros quadros históricos do Partido dos Trabalhadores, como José Dirceu e Gilberto Carvalho, que recentemente também se manifestaram sobre o assunto.
Acredito que seja possível tratar a questão em tom mais sóbrio, analítico, separando a necessária defesa das políticas públicas de proteção às minorias da critica ao identitarismo.
São duas coisas completamente diferentes e esse é um ponto fundamental.
Política pública de reparação e de proteção aos grupos historicamente subalternizados (negros, mulheres, LGBTs, indígenas) é imperativo civilizatório. Não há democracia de fato se não existe equidade de gênero, se o racismo nega direitos fundamentais aos negros e se LGBTs sofrem violência.
Já o identitarismo é uma cultura política característica do mundo contemporâneo e que se manifesta à direita e à esquerda do espectro ideológico.
Sim, existe identitarismo de direita.
Analisar e criticar o identitarismo, portanto, é algo perfeitamente possível. E a discussão não pode ser interditada.
Mas o que é identitarismo?
É o sintoma do colapso da representação política liberal no não território da modernidade digital. Com o advento da internet, a ideia do território físico como critério fundamental da representação política foi quase totalmente esvaziada. Outras identidades foram trazidas ao primeiro plano do debate político.
O identitarismo consiste, portanto, na auto-afirmação da especificidade como o principal elemento da existência humana. Essa especificidade é sempre atravessada por marcadores de diversidade, que podem ser racial, de gênero ou religioso.
A pessoa negra militante, o lgbt militante se afirmam como portadores de identidades oprimidas pela identidade hegemônica, branca, masculina e heterossexual.
O militante de extrema direita, branco, cristão e heterossexual, se apresenta como portador de uma identidade oprimida pelo avanço do “marxismo cultural”.
Jean Wyllys e Nikolas Ferreira são igualmente identitários.
Ambos são o resultado da mesma condição de época, ainda que não exista equivalência ética entre a natureza de suas reivindicações.
Diante disso, insisto, é possível, sim, criticar o identitarismo. Sistematizo a crítica nos seguintes pontos:
- O militante identitário é movido por um afeto narcísico. Não quer exatamente ser “representado” na política, no sentido moderno do termo. Quer ser refletido, quer ser projetado. Quer ver a si mesmo no poder, como se estivesse diante de um espelho. Essa projeção narcísica é mais importante do que a defesa dos interesses objetivos dos grupos que o militante identitário diz representar. Foi exatamente essa a crítica feita pelo presidente Lula. Ninguém deveria ser candidato apenas pra se projetar no poder. É necessário ter base real e defender projetos concretos. Política partidária é um partido como o PT deve sempre ter como objetivo o desenvolvimento de políticas públicas de impacto e não a simples projeção dos militantes profissionais no mercado capitalista dos bens simbólicos.
- O militante identitário é cético. Desconfia da ciência e das universidades, que estariam dominadas pelos comunistas (para o identitarismo de direita) ou pelos homens brancos heterossexuais (para o identitarismo de esquerda).
- Os identitários radicalizam o procedimento da análise do discurso, fundado na ideia de “lugar de fala”. Radicalizam tanto que não há mais discursos a serem analisados. Há apenas lugares a serem habilitados ou interditados de acordo com os critérios da moral identitária. O discurso, então, é reduzido ao lugar de onde foi enunciado. Aquilo que era pra ser o início da analise se torna o meio e o fim.
- Os militantes identitários alargam seus signos de denúncia a tal ponto que perdem o objeto e inviabilizam o convívio democrático. Para os identitários de direita até João Dória é comunista. Para os identitários de esquerda, qualquer coisa que destoe do politicamente correto pode ser tomado como transfobia, racismo, machismo, etc.
- A cognição identitaria é rudimentar, primária, sendo fundada totalmente na experiência. Não há muito espaço para abstração, sempre vista com desconfiança.
Ainda há muito para ser analisado no vocabulário político identitário. O esforço é fundamental para a compreensão da cultura política contemporânea. A manifestação do presidente Lula colabora para a naturalização dessa discussão.