As mais de mil e quinhentas pessoas que participaram da votação para a escolha de representantes dos bairros centrais de Porto Alegre [Região1] no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental [CMDUA, que elabora o Plano Diretor] testemunharam práticas de cabresto e coronelismo características do período áureo da República das Oligarquias, a República Velha.
Funcionários das construtoras eram despejados de ônibus e vans na Câmara de Vereadores, onde se realizou a votação. De acordo com a legislação contemporânea, trata-se de transporte ilegal de eleitores. Um crime, portanto.
Na ausência de comprovante individual de residência para poderem votar na Região1, os funcionários portavam declarações de endereço comercial emitidas pelas próprias empresas. Apesar da validade discutível, tais declarações foram aceitas.
Nas extensas e demoradas filas de espera para a votação os cabresteados explicavam que havia controle de comparecimento e pagamento de horas extras. Não sabiam, porém, se ganhariam adicional noturno devido ao atraso na votação, que só terminou na madrugada.
Na sala de votação, cabos eleitorais com adesivo da Chapa 2, de candidatos do empresariado, faziam boca-de-urna ostensivamente e sem serem importunados.
Uma vergonha que desonra a história de participação popular de Porto Alegre. Um atentado ao processo de deliberação pública com decência, lisura, liberdade de escolha e sem compra de votos.
Apesar do poder econômico e da arregimentação ilegal de eleitores, o governo bolsonarista de Sebastião Melo e as mega-construtoras perderam a eleição na Região1 do CMDUA.
O advogado Felisberto Seabra Luisi, especializado em regularização fundiária, foi eleito com 941 votos [59,7%], contra 636 votos [40,3%] do preposto da vanguarda do atraso.
O comparecimento foi recorde. Houve uma participação cinco vezes maior que na eleição para o mandato anterior, quando 316 pessoas votaram.
Isso tem explicação.
Nos dias precedentes à eleição, notícias sobre a estratégia de empresários e governo municipal de carregar eleitores foram o gatilho para uma mobilização espontânea de cidadãs, cidadãos, ativistas e militantes sociais. Essa mobilização resultou no comparecimento recorde de 1.577 pessoas.
Um impressionante contingente de jovens se sujeitou a permanecer quatro, cinco, até seis horas nas filas de votação que serpenteavam três andares da Câmara de Vereadores desde o pátio de estacionamento do legislativo municipal.
Muitas pessoas idosas e mulheres grávidas ficaram várias horas enfileiradas em pé, pacientemente, a despeito das condições absurdas, de calor tórrido e sem ventilação no ambiente; e apesar da exaustão física, da falta de água e de horas sem poder ingerir um alimento.
Um diretor da Secretaria da Governança do Município, interpelado para que algo fosse feito diante daquelas condições desumanas, manteve-se irredutível.
Com arrogância, recusou-se a atender apelos de ao menos distribuir água às pessoas e se retirou.
Diante das condições ultrajantes e do caos organizativo, dezenas de pessoas passando mal e já num nível insuportável de exaustão foram obrigadas a se retirar antes de votar, depois de horas aguardando para exercer seu direito de cidadania.
O portal Sul21 fez um primoroso trabalho jornalístico sobre os “donos da cidade” – bloco formado por mega-construtoras, burguesia imobiliária, finanças, empresariado, grande capital e mídia que, com sua influência e poder, na última década conseguiu criar leis e alterar regras urbanísticas “para atender interesses de alguns poucos empresários e seus projetos imobiliários especiais”.
Os donos da cidade implantaram um verdadeiro regime de exceção urbanístico em Porto Alegre para permitir a expansão exponencial dos seus negócios imobiliários às custas da desfiguração urbana e paisagística e da devastação ambiental da cidade.
Porto Alegre está no centro de uma dinâmica de domínio hiper concentrado do território da cidade pelos donos da cidade. A prefeitura funciona como capatazia das construtoras.
Apesar do cabresto, do coronelismo e de todos abusos, os donos da cidade foram derrotados. Uma vitória épica da cidadania e da resistência democrática e popular que, a despeito de todas condições adversas, resistiu e permaneceu até o último momento, porque entendia o jogo que estava sendo jogado.
Assim mesmo, o Ministério Público não pode deixar de apurar as ilegalidades e abusos e punir os responsáveis.
A eleição para o Conselho de Desenvolvimento Urbano e Ambiental é um aperitivo do que poderá acontecer na eleição municipal de outubro próximo.
Essa vanguarda de atraso que faz da cidade um laboratório de retrocessos ultraliberais e reacionários não hesitará em apelar para o gangsterismo político para manter-se no poder.
Jeferson Miola //
Imagem: Isabelle Rieger //
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