O documentário ‘Terra Vista’ retrata jornada de assentamento para recuperar território e cultivar cacau agroecológico
Sou parte do extenso clube mundial de entusiastas do chocolate; há três décadas como chocolate e moro em um país que já foi líder de produção de cacau, entretanto, até pouco tempo atrás, não sabia reconhecer um pé de cacau. Dirigindo pela região cacaueira do sul da Bahia, Pedro me mostrava cacaueiros aqui, cacaueiros ali. Família e amigos respondiam às fotos com perguntas semelhantes: o que é este fruto amarelo? O que é aquele grosso suco branco?
Além de demonstrar a distância que nos separa da origem do que somos e do que comemos (a terra), esse estranhamento estrategicamente obscurece a compreensão da realidade dos/as agricultores/as no Brasil e da posição do país na sociedade global. Alheios à forma do cacau, mas familiarizados com as marcas de chocolate, muitos ignoram o mundo da produção de “matéria-prima” que há quinhentos anos colocaram nas costas do Sul, e colocamos nosso foco onde convém aos interesses do poder e do mercado: o consumo do produto final, beneficiado e vendido por empresas multinacionais.
As relações de poder entre classes, raças e nações são questões fundamentais para compreender os mais urgentes desafios que enfrentamos, desde a pobreza e a fome até as crises climática e ecológica. Simetricamente, algumas das alternativas mais potentes também abordam estas questões de forma multidimensional. O documentário Terra Vista retrata uma comunidade assentada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 1992 na vanguarda de um processo histórico de resistência e mudança do sistema hegemônico de produção de cacau no sul da Bahia, tipicamente marcado por uma oligarquia branca, desigualdades de poder e condições de trabalho degradantes.
Hoje, um total de 55 famílias assentadas em 904 hectares estão envolvidas na produção de cacau e chocolate. Terra Vista se destaca pela cadeia produtiva limpa, bem como pela abordagem agroflorestal e pela preservação ecológica. À época da ocupação, a área era uma fazenda degradada e abandonada. A terra do assentamento foi formalmente entregue à Terra Vista em 1994 pelo órgão governamental Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O território pertence a todos os membros e não pode ser vendido.
Durante a minha visita fiquei encantada com a floresta abundante e frondosa que se espalha por Terra Vista. Tive a oportunidade não apenas de testemunhar a beleza do rio Aliança, mas também de nadar em suas águas, às vezes mais profundas que meus pés. Tanto a floresta quanto o rio estavam ausentes no início da ocupação, como consequência da criação de pasto para gado e extração de madeira. O povo de Terra Vista começou a restaurar a Mata Atlântica e a praticar a agrofloresta de cacau em 2000 – desde então, a comunidade recuperou 92% da mata ciliar do rio Aliança e 80% de suas nascentes, devolvendo vida aos seus riachos.
Vista aérea do assentamento Terra Vista, localizado na cidade de Arataca, sul da Bahia/Noa Cykman
O filme traz entrevistas inéditas com assentadas e assentados, incluindo alguns de seus primeiros integrantes, e retrata como o processo de transição agroecológica começou e continua até hoje. As trajetórias e reflexões dos membros da comunidade expõem a sua agenda operante que funde justiça social, soberania alimentar e restauração ecológica. Diz-se por lá que a agroecologia não é apenas um conjunto de técnicas: é um modo de vida. É uma prática enraizada na gestão da terra e na cooperação comunitária, orientada por valores como a coletividade, a reciprocidade e a solidariedade, não só entre os seres humanos, mas também com a terra, o solo, as águas, tudo o que vive junto. Isso é notável no dia a dia do assentamento e revelado no documentário.
Problemas como a pobreza, a fome, a perda de biodiversidade são preocupações de primeira ordem para a agroecologia, e o MST, juntamente com outros movimentos camponeses em todo o mundo, está a demonstrar o potencial efetivo dessa prática e modo de vida para responder com integridade a tais questões globais e desafios urgentes. Terra Vista é um exemplo vivo de transformação do modelo de produção e das estruturas de dominação local e de (re)territorialização dos povos, processos fundamentais na construção de modelos de sociedade e de sistemas alimentares justos e ecologicamente equilibrados. A agrofloresta, explica Joelson de Oliveira, veterano e liderança do assentamento, é um passo no caminho da soberania alimentar dentro da longa jornada rumo à libertação e à derrubada dos sistemas de opressão. Uma tarefa para uma tática dentro de uma estratégia.
Trabalho no assentamento do MST recuperou 92% da mata ciliar do rio Aliança e 80% de suas nascentes/Noa Cykman
Cheguei ao assentamento na noite de uma sexta-feira de agosto para uma estadia de duas semanas, junto com Pedro, codiretor do documentário, cinegrafista e amigo. Na noite quente e úmida da costa tropical, eu poderia ter confundido o inverno com qualquer outra estação. Joelson abriu a janela para ver quem chamava e logo nos convidou para entrar. Joelson é um dos veteranos que participou da ocupação inicial em 1992, e um dos três que ainda hoje guardam ali essa memória viva. Com Solange, sua esposa, trabalham incansavelmente pelo mundo que estão construindo: reivindicando terras e territórios para os povos, revitalizando esses territórios através da agroecologia e estabelecendo redes de colaboração e ajuda mútua entre os territórios. Solange nos ofereceu o jantar – arroz com feijão saboroso, farofa e muito mais da comida brasileira que adoro e sentia falta. Depois ela se retirou para preparar-se para a “Marcha das Margaridas”, um evento que ocorre a cada quatro anos na capital do país que reúne milhares de mulheres camponesas, para onde se dirigiria em poucos dias.
Joelson sentou-se conosco por horas ao redor da grande e aconchegante mesa de madeira da cozinha, centro social da casa e da comunidade. Escutamos a história do assentamento e conversamos debruçados sobre mapas, fotos, slides e registros. Sob os calos de uma vida dedicada à luta, Joelson mantém sua doçura e extrema generosidade. Os olhos pretos em seu rosto negro movem-se calmamente, cheios de memória. Com modéstia, paixão e paciência, ele nos contou as virtudes, as contradições, os reveses, os acertos e os erros de Terra Vista.
Durante minha estadia e produção do documentário, sempre que eu chamasse alguém pelo nome em frente a sua casa, vinham me cumprimentar com um sorriso e convidavam para um café, mesmo que ainda não nos conhecêssemos. Camponeses como Loro, Teresa, Sisi e outros retratados no documentário vivem com simplicidade e mostram franqueza, bondade, humildade e inteligência consistentes. Apesar dos desafios do passado e do presente, expressam gratidão e orgulho pelas conquistas do movimento e do assentamento: cada casa tem uma bandeira do MST pintada na parede frontal e outra cuidadosamente guardada em algum lugar.
Casas do assentamento Terra Vista, polo produtor de cacau agroecológico no sul da Bahia/ Noa Cykman
Brotos
A agenda política de Terra Vista inclui reforma agrária popular, direitos dos camponeses, a luta por/defesa da terra e do território e a construção da soberania em vários níveis, da educação à água, da energia à alimentação. A história do assentamento já conta com conquistas marcantes na busca desses objetivos, como a implantação de duas escolas públicas no assentamento. O futuro inclui o avanço dessas camadas de soberania, o aumento da renda e da produção de chocolate, e o estabelecimento de alianças com outros povos através da “Teia dos Povos”.
Com o documentário Terra Vista esperamos criar diálogos com outras organizações e movimentos sociais ao redor do mundo que estão construindo a agroecologia como alternativa ao agronegócio. Esperamos também alcançar educadores e políticos com poder de decisão. O MST, e o Terra Vista em particular, é uma referência importante para o avanço de sistemas alimentares equitativos e justos.
Contexto: O cacau na história brasileira
Deslocadas e privadas de terra desde o início da colonização do Brasil, sem haver vivido uma reforma agrária sistêmica ou quaisquer benefícios para efetuar, após a suposta abolição da escravatura, a transição da escravidão à cidadania, as comunidades negras e indígenas têm uma história de luta por terra datada de séculos. Até hoje persiste o modelo plantation do período colonial: mão-de-obra explorada em terras usurpadas, produzindo monocultura para exportação, a fim de gerar lucro para as indústrias e economias dos países do Norte. Este modelo pressupõe terra gratuita e trabalho alheio, extirpados para abastecer a Europa com “matérias-primas”. Após seu beneficiamento como produtos (por exemplo, chocolate), estes regressam ao Sul como mercadorias, gerando mais lucros externos.
A região cacaueira da Bahia é um caso notório: o cultivo do “fruto dourado” levou o Brasil à posição de maior produtor do mundo nas décadas de 1970 e 1980, por meio de tal dinâmica de desenvolvimento dependente. O Brasil produz o cacau que é a base do enriquecimento dos países europeus industrializados onde o chocolate é produzido. Esta base histórica permanece nas estruturas contemporâneas de exploração. A seguir resumo tal história.
A produção de cacau foi estruturada e fortalecida décadas antes da abolição da escravatura no Brasil, em 1888, e mecanismos foram criados para garantir que o evento não provocasse prejuízos aos proprietários brancos. Por exemplo, a Lei de Terras de 1850 transformou a terra em propriedade privada, para que os donos de terras pudessem comprá-las cautelosamente antes de “libertarem” seus escravos. Quando da abolição, além de privadas de acesso à terra, as pessoas até então escravizadas não tiveram oferecidos nenhum recurso financeiro ou apoio institucional, permanecendo, assim, à mercê dos coronéis.
Uma “burguesia do cacau” se formou ao longo do século 20 à medida que os interesses de uma rica elite de proprietários de terras se alinhavam os de com comerciantes exportadores. Apesar de um declínio maciço na produção e no lucro na década de 1980, causado por uma crise econômica e pela propagação do fungo vassoura-de-bruxa, os donos de terras ligados ao mercado global de cacau ainda dominam a produção da cultura, extraindo e explorando terras e camponeses e determinando o preço do “cacau commodity”.
Ecoando Marx, “a história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa”. Após a perda em grande escala da produção de cacau na década de 80, muitos proprietários abandonaram suas fazendas, deixando as propriedades improdutivas e agravando os problemas ecológicos com a exploração madeireira e criação de pasto para gado. Essa crise significou a demissão de cerca de 250 mil trabalhadores, que ficaram sem terra, sem emprego e sem destino para onde ir. Diante de terras improdutivas e degradadas, diversos movimentos camponeses organizados passaram a ocupá-las. No período que se seguiu, de 1990 a 2010, foram estabelecidos 113 assentamentos na região por meio de ocupações diretas, garantindo acesso à terra e à moradia para mais de 5 mil famílias (Incra, 2010).
O MST foi formado em 1984 em resposta a essas injustiças históricas, com um projeto claro de reterritorializar as populações camponesas nas vastas e abundantes terras do país. Sua luta segue, assim como os problemas envolvendo terra e trabalho. A cadeia produtiva do cacau no Brasil, principalmente no Pará e na Bahia, é marcada pelo trabalho precário, principalmente entre os trabalhadores que sobrevivem em fazendas insalubres, muitas vezes submetidas ao modelo clássico de escravidão por dívida. A presença de trabalho infantil não é incomum. O assentamento Terra Vista é um oásis ecológico e social na região, comprometido com relações justas.
Hoje, três empresas multinacionais – Cargill, Olam e Barry Callebaut – retêm entre 94 e 97% do lucro da produção de cacau, e convenientemente ignoram as condições de trabalho dos produtores. Para tais trabalhadores anônimos restam entre 3 e 6% do valor da mercadoria. Em contraste, o chocolate rebelde Terra Vista é produzido com cacau orgânico, dentro do assentamento, pelas mesmas pessoas que cultivam os frutos, e que assim se tornam progressivamente autônomas e soberanas em seu território. Com o chocolate próprio, o assentamento agrega valor ao produto e retém 100% do faturamento.
Publicado originalmente pelo Brasil de Fato em 14/01/2024 – 09h10
Por Noa Cykman – Arataca (BA)
Edição: Thalita Pires
Noa Cykman é doutoranda em Sociologia na Universidade da Califórnia, Santa Barbara (UCSB), bolsista da Fulbright/CAPES e do programa “Education for Nature”, WWF (World Wildlife Fund). Em sua pesquisa, busca compreender como se integram as lutas por restauração ecológica, liberação humana e soberania comunitária em Terra Vista, assentamento do MST.
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!