Sem a descolonização dos territórios ocupados por Israel, fórmula torna-se uma manobra para não abordar crimes cometidos
Publicado em 07/01/2024 – 09h17
Por Arturo Hartmann – Brasil de Fato – São Paulo (SP)
Brasil de Fato — Neste início de 2024, muitos olhares ainda voltam sua atenção para o destino político de Palestina/Israel, esta que é uma das mais importantes questões da política internacional contemporânea. Ao menos, desde 7 de outubro do ano passado, voltou a ser. A confusão ou algum tipo de angústia pode ocorrer porque o turbilhão de acontecimentos políticos e militares segue, de modo que haveria urgência de levar adiante uma política para interromper a destruição do corpo coletivo palestino.
O dilema central para o território, que permanece até hoje, foi levado pelos primeiros colonos europeus judeus que aderiram ao sionismo e chegaram ao território no fim do século 19 (ainda sob controle dos otomanos). A visão central era formar uma comunidade exclusivamente judaica dentro de uma Palestina transformada na Terra de Israel.
Theodor Herzl, um jornalista judeu vienense que cresceu nas regiões da Áustria que viram um aumento do sentimento pangermânico na segunda metade do século 19, publicou, em 1896, o hoje notório “O Estado judeu”. Isso fez dele o pai fundador da ideia de um Estado para os judeus, que seria implementado por meio de diplomacia e apoio político de grandes potências internacionais.
Mas já em 1895, muito antes desse Estado que ele imaginava se mostrar viável, ele pensava nas políticas internas necessárias para moldá-lo. Em junho de 1895, ele escreve em seu diário: “Quando nós ocuparmos a terra, devemos trazer benefícios imediatos para o Estado que nos receba. Nós devemos expropriar gentilmente a propriedade privada nos lotes de terra alocados para nós. Devemos tentar incentivar a população sem dinheiro a ir para além das fronteiras ao procurar empregos para ela em países de trânsito, enquanto negamos qualquer emprego em nosso país. (…) Tanto o processo de expropriação e de remoção dos pobres devem ser levados adiante discretamente e de forma circunspecta”.
A importância de voltar às formulações iniciais da chegada sionista à Palestina mostra que a disputa não era (e ainda não é) por fronteiras, mas um confronto de extermínio (não necessariamente físico, mas coletivo e político) e de sobrevivência. Ela pode ser, de fato, melhor lida sob a chave de Frantz Fanon para interpretação de confrontos coloniais: a violência do regime colonial e a contraviolência do nativo. No seu nível mais básico, e vimos isso de forma dramática no último trimestre de 2023, o que se costuma chamar de “conflito palestino-israelense” ainda é estruturado por esse dilema básico.
A solução de dois Estados, portanto, foi o enquadramento padrão que a comunidade internacional aplicou à Palestina, algo que virou um mantra para se referir a um fim desejado para o “conflito entre palestinos e israelenses”. Ou seja, ela foi alçada ao status de um santo graal da política internacional, a única configuração que acomodaria desejos nacionais de israelenses e palestinos, de colonizadores e colonizados.
Partilha forçada
A primeira elaboração da solução de dois Estados é de 1937, proposta pelos britânicos para resolver o dilema político que eles haviam construído nos primeiros vinte de seu controle colonial sobre a Palestina (que teve início em 1917). Ali, os britânicos manifestavam sua conclusão de que um governo único de representação proporcional não era mais possível, e apenas a partilha poderia acomodar o movimento colonial de judeus europeus ao qual haviam provido apoio em meio a um território que abrigava a existência de uma sociedade de nativos que desejava a independência.
Dez anos depois, a então recém criada ONU recoloca a fórmula com a proposta de Partilha da Palestina de 1947. É aqui que o Estado judeu é formalmente legitimado pela Assembleia Geral, com os importantes votos de EUA e URSS. No entanto, a configuração de fronteiras e demografia desse Estado foi desenhada em meio à guerra entre Israel e países árabes e à limpeza étnica contra os palestinos.
O consenso da divisão do território é reforçado depois da Guerra de 1967, quando é promulgada a Resolução 242. É este documento que sustenta o atual mantra da solução de dois Estados. A 242 reforçava a legitimidade da existência de Israel, mas negava a possibilidade de anexar e de adquirir o resto da Palestina que havia invadido no fim da década de 1960 (Cisjordânia e Faixa de Gaza).
É esta resolução que forma o preâmbulo central dos Acordos de Oslo (1993). Sobre esta base, os agentes envolvidos no processo (encabeçado pelos EUA) montariam uma estrutura que aproximaria palestinos e israelenses num mecanismo de construção de confiança. Assim, as partes teriam um ambiente para chegar a um acerto baseado nos dois Estados.
Mas a aliança entre EUA (o mediador do processo) e Israel contradisse a base normativa do acordo. Os movimentos de Israel no período de Oslo fortaleceram sua presença colonial na Cisjordânia, com o crescimento dos assentamentos de colonos (pelos últimos dados de 2020, são 451.700 na Cisjordânia, mais 229.377 em Jerusalém Oriental).
A fórmula da Partilha torna-se uma manobra para não abordar contravenções, crimes e compensação sobre o que ocorreu no fim da década de 1940, quando Israel é criado como resultado, entre outras coisas, da expulsão de cerca de 750 mil pessoas. Ou seja, o próprio conceito da solução de dois Estados cria um paradoxo com a demanda de resolução da questão dos palestinos refugiados – que hoje somam cerca de 6 milhões -, que tem sua normativa na Resolução 184, do direito de retorno.
Controle do território
O problema mais crucial é o dos palestinos refugiados, e isso se tornou dolorosamente óbvio no último trimestre de 2023. Não apenas Israel se manteve, nos últimos trinta anos, na posição de não aceitar qualquer um dos cerca de 6 milhões de refugiados que têm o direito de retornar ou compensá-los, como produz diante de nossos olhos um segundo momento de expulsão em massa.
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu declarou, em uma reunião de seu partido, o Likud, que trabalhava ativamente para expulsar os palestinos de Gaza. O ministro das Finanças Bezalel Smotrich disse que “Israel deveria controlar o território na Faixa de Gaza e significativamente reduzir o número de palestinos residentes de Gaza”. Para ele, dos cerca de 2 milhões de palestinos em Gaza, apenas 200 mil poderiam ficar. O ministro da Defesa, Itamar Ben-Gvir, disse no dia 2 de janeiro que o governo israelense deveria “promover a ‘solução’ para encorajar a migração dos residentes em Gaza”. Ou seja, mais de cem anos depois, a atual casta de políticos que governam o Estado imaginado por Herzl são menos “discretos e circunspectos” na hora de concretizar a expulsão dos nativos.
A solução de dois Estados fracassa, portanto, porque a configuração que poderia lhe dar sustentação, a saída da presença colonial israelense de Cisjordânia e Gaza, nunca se materializou no período de Oslo. O mais irônico é que a denominação de apartheid ganha força dentro do processo de “paz” porque é quando o regime israelense fortalece seu controle sobre diferentes partes da Palestina (Faixa de Gaza e Cisjordânia), instituindo estruturas de privilégios para os colonos judeus em meio à população palestina. O aumento dos postos de controle, a construção do Muro em 2002, o fechamento de acesso a Jerusalém e o cerco e seguidos bombardeios à Gaza a partir de 2007 são os monumentos que tornam visível o domínio sobre território e população, e que produzem a erosão de qualquer possibilidade de dois Estados na Palestina histórica. Ao mesmo tempo, o mecanismo político-econômico dos Acordos minou as possibilidades de atuação política palestina.
Portanto, se o status quo antes de 7 de outubro não era desejável – com o aumento dos colonos, a contenção de palestinos em zonas autônomas confinadas e a uma política de cerco sufocante à Gaza – o que vemos se desenhar como horizonte a partir de agora é uma reformatação pelo genocídio e pela limpeza étnica. Ou seja, falar de dois Estados torna-se um escárnio. O fato é que, de forma urgente, a comunidade internacional vai precisar de um novo paradigma, largar seu santo graal e encontrar uma forma mais precisa de lidar com este confronto colonial. Uma que escute mais os palestinos e que consiga desmontar projetos étnicos supremacistas.
Arturo Hartmann, é doutor em Relações Internacionais, pesquisador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe (CEAI-UFS) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU); foi coordenador de Internacional de Brasil de Fato em 2021-2023.
Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Nicolau Soares