O resultado dos conflitos liderados pelos EUA na Ucrânia e na Ásia Ocidental terá um impacto profundo na ordem mundial em desenvolvimento. Washington já perdeu o primeiro, e os seus principais adversários estão empenhados em garantir que perca também o último.
Publicado em 02/01/2024
Por MK Bhadrakumar
The Cradle — Os analistas geopolíticos concordam amplamente que a guerra na Ucrânia e a crise da Ásia Ocidental ditarão a trajetória da política mundial em 2024. Mas surge ao lado uma tese reducionista que vê o conflito Israel-Palestina de forma restrita em termos do que ele implica para a resiliência dos EUA.
A realidade é mais complexa. Cada um destes dois conflitos tem uma razão de ser e uma dinâmica próprias, estando ao mesmo tempo interligados.
O envolvimento profundo de Washington na atual fase da crise da Ásia Ocidental pode transformar-se num atoleiro, uma vez que também está emaranhado com a política interna de uma forma que a guerra na Ucrânia nunca esteve. Mas então, o resultado da guerra na Ucrânia já é uma conclusão precipitada, e os EUA e os seus aliados perceberam que a Rússia não pode ser derrotada militarmente; o fim do jogo reduz-se a um acordo para pôr fim ao conflito nos termos da Rússia.
É certo que o resultado da guerra na Ucrânia e o desfecho do conflito Israel-Palestina, que está na origem da crise da Ásia Ocidental, terão um impacto profundo na nova ordem mundial, e os dois processos reforçam-se mutuamente.
A Rússia percebe isso plenamente. Os impressionantes “finais de ano” do presidente Vladimir Putin na preparação para o Ano Novo falam por si: visitas de um dia inteiro a Abu Dhabi e Riade (assistidas em estado de choque pelo presidente dos EUA, Joe Biden), seguidas de conversações com o presidente do Irã e terminando em uma conversa telefônica com o presidente egípcio.
No espaço de cerca de 48 horas, Putin contactou os seus colegas dos Emirados, sauditas, iranianos e egípcios que entraram oficialmente nos portais dos BRICS em 1 de janeiro.
A evolução da intervenção dos EUA na crise da Ásia Ocidental só pode ser compreendida de uma perspectiva geopolítica tendo em conta a hostilidade visceral de Biden em relação à Rússia. O BRICS está na mira de Washington. Os EUA compreendem perfeitamente que a presença extra grande de países da Ásia Ocidental e árabes nos BRICS – quatro em cada dez Estados-membros – é central para o grande projeto de Putin de reestruturar a ordem mundial e enterrar o excepcionalismo e a hegemonia dos EUA.
A Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Irã são os principais países produtores de petróleo. A Rússia tem sido bastante explícita ao afirmar que, durante a sua presidência dos BRICS em 2024, pressionará pela criação de uma moeda para desafiar o petrodólar. Sem dúvida, a moeda dos BRICS estará no centro da cimeira do grupo que será organizada por Putin em Kazan, na Rússia, em outubro.
Num discurso especial no dia 1 de janeiro, marcando o início da presidência russa dos BRICS, Putin declarou o seu compromisso de “melhorar o papel dos BRICS no sistema monetário internacional, expandindo tanto a cooperação interbancária como a utilização de moedas nacionais no comércio mútuo”.
Se uma moeda dos BRICS for utilizada em vez do dólar, poderá haver um impacto significativo em vários setores financeiros da economia dos EUA, tais como mercados de energia e mercadorias, comércio e investimento internacionais, mercados de capitais, tecnologia e fintech, bens de consumo e retalho, viagens e turismo, e assim por diante.
O setor bancário poderá sofrer o primeiro golpe que poderá eventualmente repercutir-se nos mercados. E se Washington não conseguir financiar o seu gigantesco déficit, os preços de todas as matérias-primas poderão disparar ou mesmo atingir a hiperinflação, provocando um colapso da economia dos EUA.
Entretanto, a erupção do conflito Israel-Palestina deu aos EUA um álibi – a “autodefesa de Israel” – para regressarem ao polo gorduroso da política da Ásia Ocidental. Washington tem múltiplas preocupações, mas no seu cerne estão os objetivos duplos de ressuscitar os Acordos de Abraham (ancorados na proximidade saudita-israelense) e a sabotagem simultânea da reaproximação saudita-iraniana mediada por Pequim.
A administração Biden contava com o fato de que um acordo israelo-saudita daria legitimidade a Tel Aviv e proclamaria ao mundo islâmico que não havia justificação religiosa para a hostilidade para com Israel. Mas Washington sente que após 7 de outubro não seria capaz de garantir um acordo entre a Arábia Saudita e Israel durante o mandato de Biden, e tudo o que poderia ser persuadido de Riade seria uma porta entreaberta para futuras discussões sobre o tema. Sem dúvida, é um grande golpe para a estratégia dos EUA de liquidar a questão palestina.
Numa perspectiva de médio prazo, se o mecanismo russo-saudita conhecido como OPEP+ libertar o mercado petrolífero mundial do controle dos EUA, os BRICS enfiam uma adaga no coração da hegemonia dos EUA, que está ancorada no fato de o dólar ser a “moeda mundial”.
A Arábia Saudita assinou recentemente um acordo de swap cambial no valor de 7 bilhões de dólares com a China, numa tentativa de desviar maior parte do seu comércio do dólar. O Banco Popular da China afirmou num comunicado que o acordo de swap “ajudará a fortalecer a cooperação financeira” e “facilitará o comércio e o investimento mais convenientes” entre os países.
No futuro, as transações sensíveis entre a Arábia Saudita e a China em áreas estratégicas como a defesa, a tecnologia nuclear, entre outras, passarão a ocorrer abaixo do radar dos EUA. Do ponto de vista chinês, se o seu comércio estratégico estiver suficientemente isolado de qualquer programa de sanções anti-China liderado pelos EUA, Pequim pode posicionar-se com confiança para confrontar o poder dos EUA no Indo-Pacífico. Este é um exemplo revelador de como a estratégia dos EUA para o Indo-Pacífico perderá força como resultado da sua influência decrescente na Ásia Ocidental.
A sabedoria convencional é que a preocupação com a volátil Ásia Ocidental distrai Washington de prestar atenção ao Indo-Pacífico e à China. Na realidade, porém, a diminuição da influência na Ásia Ocidental está complicando a capacidade dos EUA para combater a China, tanto na região como no Indo-Pacífico. Os desenvolvimentos avançam numa direção em que as credenciais dos EUA como grande potência se encontram num ponto de inflexão na Ásia Ocidental – e essa constatação vazou para outras regiões geográficas em todo o mundo.
Em 2007, os ilustres cientistas políticos John Mearsheimer, da Universidade de Chicago, e Stephen Walt, da Escola de Governo John F. Kennedy de Harvard, escreveram com grande presciência no seu famoso ensaio de 34.000 palavras intitulado O Lobby de Israel e a Política Externa dos EUA, que Israel se tornou uma “responsabilidade estratégica” para os Estados Unidos, mas mantém o seu forte apoio devido a um lobby rico, bem organizado e fascinante que tem um “domínio estrangulado” sobre o Congresso e as elites dos EUA.
Os autores alertaram que Israel e o seu lobby têm uma enorme responsabilidade em persuadir a administração Bush a invadir o Iraque e, talvez um dia em breve, a atacar as instalações nucleares do Irã.
Curiosamente, na véspera do Ano Novo, num relatório especial baseado em extensas informações fornecidas por altos funcionários dos EUA, o New York Times destacou que “Nenhum outro episódio [como a guerra em Gaza] no último meio século testou os laços entre os Estados Unidos Estados Unidos e Israel de uma forma tão intensa e consequente.”
É evidente que, mesmo quando as ações bárbaras de Israel em Gaza e o seu projeto colonial na Cisjordânia ocupada são expostas, e a campanha do Estado israelita para forçar a migração da população palestina está à vista, dois dos objetivos estratégicos dos EUA na região estão se desfazem: primeiro, a restauração da superioridade militar de Israel no equilíbrio de forças a nível regional e vis-à-vis o Eixo da Resistência, em particular; e segundo, a ressuscitação dos Acordos de Abraão, onde as joias da coroa teriam sido um tratado saudita-israelense.
Vista de outro ângulo, a direção em que se desenrola a crise da Ásia Ocidental está sendo atentamente observada pela comunidade mundial, especialmente pela região da Ásia-Pacífico. O mais notável aqui é que a Rússia e a China deram aos EUA carta branca para navegar nos seus movimentos militares – incontestados, até agora, no Mar Vermelho. Isto significa que qualquer conflagração na região será sinônimo de um colapso catastrófico da estratégia dos EUA.
Pouco depois da derrota dos EUA no Afeganistão, na Ásia Central, e coincidindo com o fim ignominioso da guerra por procuração liderada pelos EUA pela OTAN contra a Rússia na Eurásia, um revés violento e grotesco na Ásia Ocidental enviará uma mensagem retumbante a toda a Ásia de que o movimento liderado pelos EUA perdeu força. Entre os utilizadores finais desta mensagem surpreendente, os países da ASEAN estão na vanguarda. O resultado final é que os acontecimentos tumultuosos sobrepostos na Eurásia e na Ásia Ocidental estão prestes a fundir-se num momento culminante para a política mundial.
As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente as do The Cradle.
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