BdF ouviu lideranças de alguns dos grupos representados na posse do petista para saber como avaliam gestão hoje
Publicado em 01/01/2024 – 11h11
Por Cristiane Sampaio – Brasil de Fato – Brasília (DF)
Brasil de Fato — Quando tomou posse para cumprir o seu terceiro mandato à frente do governo federal, em 1º de janeiro de 2023, o presidente Lula (PT) convidou para a subida da rampa do Palácio do Planalto representantes de oito segmentos civis que o acompanharam no trajeto. Foram lideranças das categorias dos artesãos, catadores, professores, metalúrgicos e cozinheiros, além de um atleta de 10 anos de idade, um militante da luta anticapacitista e do icônico cacique Raoni Metuktire, de 90 anos, uma das principais vozes do movimento indígena no Brasil e figura conhecida em diferentes partes do mundo.
Passado exatamente um ano após a cena que marcou a história do país, o Brasil de Fato buscou ouvir nomes de alguns desses grupos para saber como eles avaliam o desempenho da gestão petista até aqui, considerando aspectos como avanços, gargalos e também eventuais retrocessos. Confira a seguir os destaques feitos por cada segmento procurado.
Pessoas com deficiência
Ativista histórico da pauta das pessoas com deficiência, Rubens Linhares acompanhou com atenção os passos da administração federal neste primeiro ano de gestão. Entre outras coisas, o militante integrou o núcleo de direitos humanos do governo de transição, após as eleições de 2022, com a atribuição de cuidar da agenda do segmento. Ele atua na Associação das Pessoas com Deficiência do Pirambu, em Fortaleza (CE), e ainda na Associação das Pessoas com Deficiência de Maracanaú (CE). Linhares diz que, em 2023, passou a haver uma “perspectiva de avanço” nas políticas de inclusão, consideradas prioridade na área.
“A gente já vê isso na questão da educação inclusiva do MEC [Ministério da Educação], na questão da avaliação biopsicossocial, na qual o governo vem fazendo estudos, na questão da política de cuidados, que também é alvo de debate [na gestão], e na questão do Plano Viver sem Limites II. Tudo isso é um pacote que abre um horizonte de uma nova era, um novo tempo para as pessoas com deficiência.”
Linhares menciona também a volta da Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, cuja última edição se deu em abril de 2016, que discute e propõe políticas públicas. O evento foi alvo de uma portaria publicada em abril pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, estipulando prazos para as conferências municipais e estaduais para que a edição nacional do evento possa ocorrer em julho de 2024. “Nós temos um lema, que é ‘nada sobre nós sem nós’. A nossa conferência nacional é algo que responde a essa ideia de a gente participar das coisas”, afirma o militante.
Ele pontua também a existência de desafios que ainda esperam uma atuação incisiva do governo no chamado “Atendimento Educacional Especializado (AEE)”, política que prevê a elaboração de recursos pedagógicos e de acessibilidade que ajudem a eliminar barreiras para a manutenção de alunos com deficiência no sistema regular de ensino. “É muito duro ouvir uma mãe dizendo que, quando chega na escola, o filho dela está sozinho no meio da quadra ou na biblioteca. Tem que melhorar a educação inclusiva no processo de formação. Infelizmente, o nosso quadro ainda deixa a desejar. Até mesmo a formação nas universidades tem que se melhorar, que é para os educadores saírem de lá preparados para lidarem com isso”, defende Rubens Linhares.
Movimento negro
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), avalia que o governo deu passos positivos ao tomar medidas como a instituição do Programa Aquilomba Brasil, feita em março. A política é coordenada pelo Ministério da Igualdade Racial, que foi recriado por Lula em janeiro, e tem o objetivo de promover medidas intersetoriais que favoreçam os direitos dessa parte da população.
A entidade também conta que vê avanços em algumas frentes da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e na chamada pública do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), um braço do Minha Casa Minha Vida que busca subsidiar a produção ou reforma de imóveis para trabalhadores rurais. Apesar disso, a organização pondera que sente falta de “vontade política” da gestão para se avançar em outras direções.
Biko Rodrigues, coordenador da Conaq, conta que o segmento vem pedindo a revisão de instruções normativas (IN) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que burocratizam o processo de regularização de terras quilombolas, mas até agora não teve sucesso. Entre os pleitos estão a IN 57/2009, editada na segunda gestão Lula, e a IN 128/2022, herança do governo Bolsonaro.
“Entendemos que o momento é marcado pelo orçamento deixado pela gestão passada, mas a gente precisa avançar nesses processos, que não demandam recursos, mas sim vontade política para se fazer [isso]”, diz Biko. Entre os 5.994 territórios quilombolas existentes no país, 97% aguardam regularização. O dirigente menciona que há um gargalo ainda sem avanço também na inclusão dos territórios quilombolas no cadastro do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA).
“As comunidades quilombolas já são público da reforma agrária desde 2004, mas mesmo assim há uma postura dentro das estruturas do Incra de não aceitar as comunidades quilombolas como público da reforma agrária. Hoje nós somos, inclusive, o maior público a ser atendido pelo programa, segundo as regras do Cadastro Único (CadÚnico), por isso a gente precisa avançar”, ressalta o líder da Conaq.
A Coalizão Negra por Direitos, que congrega 292 organizações da sociedade civil interessadas na pauta da igualdade racial, acrescenta alguns aspectos na avaliação do primeiro ano da gestão Lula. A volta do Ministério da Igualdade Racial, fundado em 2003 por Lula e extinto em 2016 por Michel Temer (MDB), em uma fase em que já havia se fundido com outras secretarias da área de direitos humanos por decisão de Dilma Rousseff (PT), é considerada um ponto alto. A Coalizão, no entanto, analisa que falta transparência na pasta.
“Dizem que orçamento é um problema grande do ministério, mas a verdade é que esse assunto nunca foi publicamente ressaltado do ponto de vista da sua magnitude. Faço a crítica de que nunca soubemos de quanto precisamos e o quanto ainda não temos. Agora, orçamento também não pode ser uma justificativa pra não se fazerem certas coisas”, afirma a historiadora e consultora Wania Sant’Anna, que integra a coalizão. Ela considera que a atuação do Executivo federal na busca pela igualdade racial carece também de vontade política em algumas frentes.
“Tivemos, em 2023, uma campanha para que o presidente indicasse uma mulher negra ao STF, por exemplo. Ninguém [do governo] veio conversar com a gente, e eu tenho certeza de que seus pares políticos sabiam da existência da campanha. A pergunta que não quer calar: por que não houve essa interlocução? Não quero dizer que necessariamente teríamos resultados, mas a conversa é importante.”
Indígenas
O ano de 2023 também foi marcado por uma forte relação institucional entre o governo e o movimento indígena organizado. Além de ter criado oficialmente o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), um ineditismo na arquitetura administrativa do Executivo federal, a gestão Lula convidou para a liderança da pasta Sônia Guajajara (PSOL), até então integrante da cúpula da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), principal entidade representativa do segmento. Dinaman Tuxá, da coordenação executiva da organização, vê a criação do MPI como “positiva”.
Entre outras coisas, ele comenta que a existência da pasta contribuiu para chamar a atenção para aspectos importantes da agenda indígena. Uma delas foi o reconhecimento da crise humanitária nas comunidades da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Em janeiro, o governo decretou estado de calamidade pública na área e passou a promover ações de socorro à população local. Outro ponto de realce foi a ida de Sônia Guajajara a diferentes territórios ao longo do ano, em uma atitude que interrompeu os anos de ausência de diálogo entre o governo federal e o segmento.
“A ida de um ministro a esses locais acaba mobilizando o Estado para o atendimento aos indígenas em suas necessidades. É que a demarcação das terras é competência federal, mas tem outras que podem partir de outras instâncias porque nós somos munícipes, tanto é que também participamos do processo eleitoral”, ilustra Tuxá. Ele realça, no entanto, que a limitação orçamentária do MPI acabou ditando o ritmo e o desenho das ações da pasta.
“O espaço institucional dentro de uma estrutura de Estado no alto escalão é muito positivo, se tiver estrutura. Como não estava dentro do orçamento, o ministério não conseguiu desenvolver ações que se refletissem nos territórios. Neste primeiro ano o que nós enxergamos foi um ministério de articulação, de mobilização dentro da estrutura do Estado, mas não de implementação. Não vimos ações realizadas pelo ministério, nem em parceria com outras pastas, dentro das terras. Ainda não é um ministério que tenha conseguido efetivar políticas públicas.”
A Apib pontua também outras questões. “Tivemos dificuldade de diálogo, de acesso [ao governo] e de se implementar o prometido pelo presidente em campanha. Tivemos avanços com as seis terras que foram demarcadas, reconhecemos isso, mas ainda é preciso melhorar [a gestão]. Coisas simples poderiam ter sido realizadas e não foram, como a revogação de pareceres e portarias”, ressalta Tuxá.
O dirigente cita como exemplo a manutenção do Parecer nº 001/2017, da Advocacia-Geral da União (AGU), que traz argumentos em defesa da tese do marco temporal. O documento foi editado pelo governo Temer e encaminhado, na época, ao Supremo Tribunal Federal (STF) para marcar posição no debate sobre o tema.
Tuxá destaca ainda que a postura da gestão do PT diante do projeto de lei que institucionaliza o marco temporal incomodou a Apib. Apesar de o presidente ter vetado uma parte da proposta aprovada pelo Congresso Nacional, a entidade considera que faltou interesse da gestão em barrar a derrubada dos vetos na sequência, quando os parlamentares votaram novamente a pauta, no último dia 14.
“Nós poderíamos ter tido um maior engajamento do Palácio do Planalto no que tange à permanência dos vetos na votação no Congresso. Isso não ocorreu, por isso tivemos aí um retrocesso nos nossos direitos. Tentamos por diversas vezes dialogar com a Casa Civil e outros ministérios que ficam no Planalto para tentar articular com eles uma estratégia para manutenção dos vetos, mas sequer responderam nossos e-mails. Nós somos aliados do governo, mas não somos submissos a ele, por isso a importância de se destacar isso aqui”, frisa o representante da Apib.
Catadores
No que tange à pauta dos trabalhadores que atuam na área da reciclagem, o segmento menciona a recriação do antigo programa Pró-Catador, extinto pelo governo Bolsonaro, e a instituição do Programa Diogo Sant’Ana Pró-Catadoras e Catadores para a Reciclagem Popular. A política tem o objetivo de articular, em todos os níveis federativos, projetos da administração pública que promovam os direitos humanos do segmento. A gestão Lula também pôs fim ao Recicla+, projeto criado pelo governo anterior. O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) afirma que a extinção da política era uma demanda da categoria.
“Era um projeto construído pelo governo Bolsonaro com as empresas privadas e, por exemplo, eles falavam sobre encerrar lixões, mas não falavam sobre a inclusão dos catadores nisso. Antes de se encerrar lixões é preciso incluir os catadores, implantar coletiva seletiva, galpões de reciclagem, mas nada disso era previsto”, diz Alex Cardoso, da equipe de articulação nacional do MNCR. A organização engloba um total de 1.590 cooperativas e associações do ramo, reunindo 89 mil trabalhadores.
O ano também foi marcado pela recriação do Comitê Interministerial para Inclusão Socioeconômica de Catadoras e Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis, responsável pelo monitoramento do Pró-Catador. Questionado sobre o andamento dessas e de outras políticas, o MNCR diz entender que o ano foi uma fase de resgate da pauta da categoria. A entidade ressalta que a falta de orçamento foi um entrave para as ações voltadas ao setor.
“A primeira medida foi a criação do programa e, com ele, [a área] pôde começar a receber recursos, mas, como houve uma dificuldade enorme de verbas para investimentos, a gente ficou construindo projetos e agora, no Natal dos catadores [em 22 de dezembro], é que o governo assinou um dos primeiros projetos com recursos específicos para catadores, que foi o programa Cataforte”, diz o dirigente, ao citar um dos eixos de atuação de um acordo recém-anunciado que inclui diferentes ações voltadas ao segmento. O Cataforte prevê um edital – ainda a ser lançado – para incentivar a capacitação de catadores.
“Diante da dificuldade de conseguirmos recursos para a área, este foi um ano muito mais de articulação. Nós tivemos muitas agendas com o governo, por exemplo. Voltamos a ter agendas, no caso, porque na gestão anterior não se tinha nada em relação aos catadores, já que toda a nossa pauta foi cortada. Ver os catadores como parte do Estado foi o mais importante. Para o ano que vem um dos desafios é a gente conseguir avançar na pauta que prevê para os catadores um pagamento por serviços ambientais”, finaliza Alex Cardoso.
Edição: Nicolau Soares