A educação é de graça na Alemanha, mas em meio à falta de professores e à piora do desempenho dos estudantes, cada vez mais pais estão optando por escolas privadas, gerando tempos de crescimento da desigualdade social.
Publicado em 19/12/2023
Por Helen Whittle
DW — “Se eu tivesse dinheiro, mandaria minha filha para uma daquelas escolas particulares de crianças ricas, porque é só lá que você pode comprar sua saída do sistema”, diz Luisa.
Ela relata que seus filhos simplesmente não receberam o apoio de que necessitavam nas escolas públicas de Berlim, onde os professores frequentemente tinham licença médica e quase nenhum aluno falava alemão. “Havia tantas crianças que precisavam de atenção especial que a professora focava nisso e pronto, e aí não havia atendimento individual para crianças com mais talentos”, explica.
Luisa encontrou sua própria solução: mandar as filhas para uma escola católica. “Escolha a escola [não por razões religiosas], mas porque tem uma comunidade forte”, diz. “É um ambiente muito gentil e pessoal. Gostei muito.” E Luisa consegue pagar as mensalidades: a escola cobra entre 180 e 360 euros, dependendo da renda dos pais.
Problemas no ensino público
Na quarta maior economia do mundo, muitas escolas estão em estado precário, com prédios necessitando de reparos ou fechados para obras. Assim como no resto do país, também nas escolas a digitalização é devagar: muitas não têm condições de comprar computadores e nem sempre há WiFi.
Há também uma deficiência imensa de professores, um elevado número de atestados médicos e cada vez mais abandonos da profissão devido à exaustão e às más condições de trabalho. A geração baby boomer de professores também está se aposentando.
No último relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), encomendado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os alunos alemães do nono ano tiveram o pior desempenho que o país já teve em matemática, ciências e competências de leitura, o que gerou um grande debate sobre o que está errado no sistema educacional de um dos países mais admirados justamente pela formação de seus profissionais.
Muitos alemães colocam a culpa pelo lamentável estado do sistema educacional do país na imigração. Só as crianças refugiadas ucranianas somam cerca de 217 mil nas escolas na Alemanha.
O especialista em educação e desigualdade social Marcel Helbig, do Instituto Leibniz de Trajetórias Educacionais, questiona essa argumentação. “O desempenho em escolas secundárias nas quais quase não há crianças migrantes também caiu muito”, diz.
E o número de estudantes está crescendo: o órgão federal de estatísticas afirmou que 830 mil crianças ingressaram na escola em 2023, o número mais elevado em 20 anos.
Divisão precoce das crianças
Para especialistas, o principal problema é a própria estrutura do sistema escolar. No sistema federalizado da Alemanha, a educação está sob a responsabilidade dos 16 estados. O resultado é uma colcha de retalhos de diferentes tipos de escolas.
Cada estado pode regulamentar a educação em seu território, mas o sistema básico separa as crianças em três tipos de escolas, após o ensino primário: Hauptschule, para as de menor desempenho acadêmico, Realschule, para as de desempenho médio, e Gymnasium, para as mais qualificados. Os métodos de ensino e o tipo de conteúdo variam de acordo com o nível da escola.
Em geral, essa separação é feita ao final da quarta série, quando as crianças têm cerca de 10 anos. A maioria dos jovens que fazem Hauptschule ou Realschule se formam com cerca de 15 anos e seguem para a educação profissional. Os que fazem Gymnasium terminam o curso com cerca de 18 anos e fazem o exame alemão para entrar na universidade, o Abitur.
O sistema não está completamente engessado. Dependendo do desempenho do aluno nos dois primeiros anos do ensino secundário, é possível conseguir uma transferência para um outro tipo de escola. Mais tarde, quando o estudante já ingressou na formação profissional, ainda há chances de ingressar na universidade. É preciso passar por um curso preparatório de dois anos para o ensino superior.
No caso das escolas primárias, da primeira à quarta série, a grande maioria das crianças frequenta uma escola que fica perto da sua residência, e é apenas nos centros urbanos que os pais têm a opção de escolher uma outra escola – ainda que as vagas sejam abertas preferencialmente destinados a quem mora nas redondezas.
Por exemplo, muitos acadêmicos que vivem no bairro de Neukölln, um dos mais pobres e ao mesmo tempo de gentrificação mais rápida de Berlim, possivelmente não escolheriam uma escola local para seus filhos. Pesquisas mostram que alguns pais em Berlim forneceram endereços falsos para colocarem os filhos numa escola melhor em outra área.
Mas o que é bom para uma criança não é necessariamente bom para a sociedade, uma vez que as crianças oriundas de meios socioeconômicos desfavorecidos acabam sendo, na prática, segregadas em escolas públicas de bairros mais pobres. Na última análise, isso é ruim para a coesão social, comenta Helbig, apontando para o exemplo de uma cidade da Turíngia com duas escolas públicas e duas privadas e onde nenhuma criança com antecedentes migratórios ou cujos pais recebiam assistência social frequentava as escolas privadas.
“Muitos pais, principalmente aqueles das classes média e alta, principalmente acadêmicos, são atraídos pelo modelo das escolas privadas, mas é dizer se realmente é a pedagogia de uma determinada escola que eles consideram tão boa ou se não querem que os filhos frequentem uma escola pública porque nelas há um grande número de crianças migrantes ou pobres”, diz Helbig.
Aumento da desigualdade social?
O número crescente de crianças matriculadas em escolas privadas gerou temores de que pais ricos e bem instruídos estivessem abandonando o sistema escolar público, de fraco desempenho, e assim alimentando a desigualdade social.
A proporção de alunos que frequentam escolas particulares aumentou para quase 10% em 2022/23, quando há 20 anos era de 6%.
O pesquisador Stephan Köppe, professor de política social na University College Dublin (a principal universidade da Irlanda) e que pesquisou os sistemas de ensino privado na Alemanha, na Suécia e nos EUA, disse não haver evidências de que as crianças em escolas privadas tenham um desempenho melhor do que nas escolas públicas: na Alemanha, esse desempenho depende sobretudo do contexto socioeconômico, diz.
“O que é preocupante é que isso realmente indica um descontentamento com o sistema escolar público ou que há mudanças culturais até agora não compreendidas”, comenta.
O direito de estabelecer uma escola privada é garantido pela Lei Fundamental (Constituição Alemã), com a intenção de proteger a pluralidade religiosa. “Do ponto de vista democrático, eu não diria que as escolas privadas deveriam ser proibidas ou abolidas, mas a questão é: deveriam ser encorajadas?”, diz Köppe.
Segundo ele, a Alemanha ainda está muito distante do tipo de desigualdade encontrada nos sistemas de ensino nos Estados Unidos ou no Reino Unido. “Há uma trajetória ligeira ascendente, e talvez com o tempo as escolas privadas poderão gerar mais desigualdades. Mas, no momento, o principal problema na Alemanha continua sendo o sistema de seleção e diferenciação nas escolas”, diz Köppe.
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!