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Antonio Negri: um filósofo do ‘autonomismo’

Negri procurou construir uma vida intelectual além da academia e isso lhe rendeu enorme respeito por sua posição em questões críticas. Publicado em 17/12/2023 The Wire — Antonio Negri, o ilustre filósofo político italiano e sociólogo marxista que morreu aos 90 anos em Paris, deixa um legado marcado por profundas contribuições intelectuais. Em colaboração com […]

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Negri procurou construir uma vida intelectual além da academia e isso lhe rendeu enorme respeito por sua posição em questões críticas.

Publicado em 17/12/2023

The Wire — Antonio Negri, o ilustre filósofo político italiano e sociólogo marxista que morreu aos 90 anos em Paris, deixa um legado marcado por profundas contribuições intelectuais. Em colaboração com o seu co-autor Michael Hardt, 30 anos mais novo, Negri ganhou aclamação e crítica global pelos seus trabalhos influentes que geraram extensos debates sobre filosofia, política e movimentos sociais. Negri lecionou como professor de filosofia e ciência política nas Universidades de Pádua e Paris. No entanto, procurou construir uma vida intelectual além da academia e isso lhe rendeu enorme respeito por sua posição em questões críticas.

No final do século XX e início do século XXI, Negri tornou-se uma figura proeminente no domínio da filosofia continental, especificamente dentro do movimento Neo-Spinozismo de inspiração francesa, ao lado de pensadores influentes como Althusser e Deleuze. Esta abordagem filosófica inspira-se nas ideias do filósofo Spinoza do século XVII. Em uma entrevista, Negri disse que Spinoza forneceu um princípio de liberdade que ressoava com a ideia de construir um mundo através de a multiplicidade de maneiras singulares. As suas contribuições para o Neo-Spinozismo envolvem uma reinterpretação e extensão dos conceitos de Spinoza, explorando temas como a imanência, o poder e a relação entre o individual e o coletivo. O envolvimento de Negri com o Neo-Spinozismo, semelhante ao de Althusser e Deleuze, marca um afastamento dos modos filosóficos tradicionais, oferecendo uma nova perspectiva sobre assuntos como subjetividade, política e organização social.

Mais conhecido por suas contribuições ao autonomismo, Negri desempenhou um papel crucial na fundação do grupo Potere Operaio (Poder do Trabalhador) em 1969 e foi uma figura chave na Autonomia Operária. A sua defesa do trabalhador (operaismo), alinhada com o autonomismo, centrava-se no empoderamento da classe trabalhadora. Operaismo baseia-se na ideia de Marx de que o capital responde às ações da classe trabalhadora, enfatizando o papel ativo da classe trabalhadora e a natureza reativa do capital. A teoria argumenta que as lutas contínuas da classe trabalhadora influenciam as mudanças tecnológicas e políticas, citando exemplos como a ligação entre greves e a introdução de máquinas.

No final da década de 1970, Negri enfrentou acusações ligadas a atividades militantes de esquerda, mas foi condenado em 1984 por acusações não relacionadas. Ele passou um tempo na prisão, posteriormente buscando refúgio na França. Em Paris, colaborou com intelectuais como Alain Badiou e Gilles Deleuze e conheceu Michael Hardt. Negri retornou voluntariamente à Itália em 1997, cumpriu pena comutada e foi libertado em 2003. Seus anos de prisão foram produtivos, resultando em trabalhos colaborativos influentes com Hardt, incluindo O Trabalho de Dionísio (2000).

O lançamento de Império empurrou Negri e Hardt para a vanguarda da teoria social, coincidindo com a influente ‘Batalha em Seattle’ em novembro de 1999. O livro introduziu o conceito de ‘Império’, uma forma global de soberania que ultrapassa os estados-nação. Entre preocupações com o neoconservadorismo, a perspectiva de Negri e Hardt, enfatizando uma nova classe chamada multidão emergente da globalização, ganhou popularidade. De acordo com Slavoj Žižek, Império é uma reinterpretação moderna, expondo conflitos inerentes ao capitalismo global. Negri descreveu uma estrutura de poder global descentralizada, denominada Império, que desafia a narrativa do “fim da história” e apela a um envolvimento abrangente com o capitalismo contemporâneo. O modelo promoveu um sistema totalizante de dominação capitalista onde o capital e a soberania convergem, perpetuando a exploração global e a concentração de riqueza.

Após o sucesso de Império, Negri e Hardt foram coautores de Multitude: Guerra e Democracia na Era do Império em 2004, explorando o potencial para a democracia global, um conceito novo na época. O livro trata do “projeto da multidão”, vislumbrando um mundo marcado pela igualdade e pela liberdade e propondo meios tangíveis para alcançá-lo. Multitude engaja-se com a ideia de uma transformação democrática global, afirmando que a guerra se tornou uma parte inerente da ordem global, com a força militar considerada essencial para o mundo funcionamento do mercado. Ao contrário de alguns teóricos da globalização, Negri enfatizou os movimentos populares e as forças sociais como impulsionadores de mudanças transformadoras.

A trilogia foi concluída em 2009 com Commonwealth, enfatizando a concebibilidade e a viabilidade de uma democracia da multidão. O termo “comum” incorpora a riqueza material do mundo, estendendo-se ao ar, à água, ao solo e aos recursos da natureza, bem como aos produtos sociais como o conhecimento, as línguas, os códigos, a informação e os afetos. Esta perspectiva retrata a humanidade como entrelaçada com a natureza, enfatizando práticas de interação, cuidado e coabitação num mundo partilhado, com foco na promoção de aspectos positivos do comum, ao mesmo tempo que limita os prejudiciais.

Em 2012, Negri lançou a Declaração, um panfleto centrado nos movimentos Occupy. Ele também colaborou com Hardt em Assembly (Oxford University Press, 2017), um trabalho que explora a potência da ação política coletiva. O título “Assembleia” capta a ideia de união para o envolvimento político. O livro fornece uma análise abrangente da política contemporânea, analisando vários aspectos do capitalismo influenciados pelo neoliberalismo, capital financeiro, nacionalismo e dinâmica digital. Criticando tanto o capitalismo como a burocracia, defende políticas progressistas de movimentos sociais, apelando a uma reavaliação das estratégias de esquerda e enfatizando dialéticas como movimento/liderança, espontaneidade/organização e revolução/reforma. Um aspecto fundamental é a apropriação do capital fixo, delineado na sua estratégia como o “novo Príncipe” e o “empreendedorismo da multidão”.

Na trilogia de Negri – compreendendo Império, Multidão e Comunidade – ele introduziu uma tese de “altermodernidade”, afirmando a obsolescência da antiga estrutura e dinâmica de classe. Afastando-se da dialética tradicional, Negri apresenta uma nova lógica da história caracterizada pela diversidade infinita, em vez da crescente homogeneidade de classes. Este afastamento da ortodoxia dialética, influenciado por Mil Platôs de Deleuze e Guattari, introduz o conceito de “multidão” como um conjunto diverso inspirado em Spinoza. Na opinião de Negri, a multidão pós-moderna é uma coleção de singularidades.

Raewyn Connell critica as obras de Negri, particularmente Império e Commonwealth, por falta de conhecimento concreto nas discussões de poder. Connell aponta a ausência de análises sobre as corporações multinacionais, suas estratégias e os problemas que enfrentam. Ela também observa a imprecisão da “multidão” como entidade social, ecoando críticas de outros. Alex Callinicos vê a multidão como uma expressão de boas intenções, em vez de uma ferramenta útil para análise de classe. Giovanni Arrighi criticou a forte dependência de metáforas no Império e a negação de evidências empíricas, argumentando que algumas afirmações importantes sobre a globalização são falsas.

Samir Amin criticou as teses de Hardt e Negri, identificando duas premissas falhas. Primeiro, argumentaram que a globalização torna obsoletas as políticas nacionais, descartando a importância das nações e dos interesses nacionais. Em segundo lugar, alegaram que não existe imperialismo, apenas um “império” sem poder central. Amin contestou estas afirmações, enfatizando a relevância contínua do imperialismo como a utilização de meios econômicos, políticos e militares para subjugar as periferias aos centros dominantes. Amin afirmou que a formação das sociedades capitalistas periféricas resulta em formas distintas de proletarização, variando com base nas funções atribuídas. Estas formas, embora diferentes das dos centros dominantes, são complementares. A “multidão” percebida, representando as classes trabalhadoras globais, está estruturada de forma diferente entre países e fases do desenvolvimento capitalista. Amin destacou o erro de Negri ao apoiar a constituição europeia, argumentando que esta visa consolidar, e não enfraquecer, o capitalismo neoliberal, eliminando o potencial de protesto da sociedade civil. Amin também contrastou isto com o entendimento do establishment de Washington, enfatizando o papel das potências imperialistas no controle da globalização através de estratégias militares, um ponto minimizado por Hardt e Negri.

Num artigo da New Left Review de 2019, Negri e Hardt discutiram a evolução da dinâmica da globalização, observando o seu ressurgimento como uma questão central. Observaram diversas reações, desde o declínio da ordem internacional liberal até aos apelos à soberania nacional. Os autores defenderam a transição de lutas centradas em classes para um quadro de multiplicidade, abraçando a análise interseccional e reconhecendo a multiplicidade na abordagem de diferentes formas de dominação. Eles enfatizaram a importância de compreender as subjetividades em relação às diversas estruturas de dominação.

Negri, historicamente crítico do socialismo do século XX e da União Soviética, mais tarde apoiou a social-democracia moderna. Em 2005, aprovou um voto “Sim” à proposta de constituição da UE, vendo a União Europeia não como uma restrição, mas como uma arena adequada para a luta da classe trabalhadora na era da globalização. Apesar das diferenças com as forças de esquerda, apoiou referendos sobre a Constituição Europeia. No atual contexto global, marcado por um declínio relativo do poder americano, Negri acreditava que uma Europa unida poderia servir como uma alternativa democrática poderosa, reforçando aspectos como o bem-estar e a cultura dos direitos. Defendeu o desligamento da União Europeia da OTAN, posicionando-se como herdeira do antifascismo e do socialismo do século XX.

Em uma entrevista, Negri refletiu sobre a derrota do socialismo e a derrubada violenta do comunismo. Ele caracterizou o pós-modernismo como o quadro ideológico predominante que legitima uma restauração global do poder capitalista. Vivenciando pessoalmente a derrota da luta de classes e da violência contra os explorados, os pobres e os excluídos, ele se identificou como cidadão desta catástrofe. Apesar da solidão da derrota e da prisão, ele manteve o reconhecimento do inimigo e uma sensação de possível renascimento.

Reconhecendo a guerra em curso entre o Ocidente e o Oriente, ambos incapazes de produzir liberdade, Negri expressou o desejo de que ambos se enfraquecessem. Da dor, sofrimento e miséria resultantes, ele previu o potencial para emergir uma nova força – uma que rejeita veementemente a guerra e encara a paz como a condição essencial para a vida humana.

Em um artigo na New Left Review em 2022, Negri e Nicolas Guilhot argumentaram que a guerra na Ucrânia representava uma ameaça significativa para o futuro da Europa, não pelas razões comumente citadas. Sugeriram que o conflito poderia criar uma divisão entre a Europa Oriental e Ocidental, marcando potencialmente o fim da Europa como projeto político. Salientaram também a importância de evitar este resultado e defenderam um regresso ao realismo. Negri e Guilhot sublinharam que os interesses europeus diferem cada vez mais dos dos Estados Unidos, exortando a Europa a não sacrificar a unidade pelos objetivos dos EUA. Eles também alertaram contra permitir que a guerra na Ucrânia seja explorada por Washington para manter a sua hegemonia em declínio. A Europa, presa entre a crise americana e as manobras do Kremlin, deve afirmar-se politicamente e desenvolver autonomia estratégica a nível global, observaram Negri e Guilhot.

O impacto de Negri na literatura política é profundo, evidente numa série de artigos e livros. Este conjunto diversificado de trabalhos demonstra a posição de Negri como um intelectual notável no discurso político contemporâneo.

K.M. Seethi, membro sênior do ICSSR, é consultor acadêmico do Centro Internacional de Estudos Polares (ICPS) e diretor do Centro Interuniversitário de Pesquisa e Extensão em Ciências Sociais (IUCSSRE), Universidade Mahatma Gandhi, Kerala.

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