Não há nada mais necessário e revigorante, para a saúde mental individual e coletiva, do que alguns bons momentos de paz. Ainda mais após uma década inteira de intermináveis crises políticas, algumas das quais com efeitos devastadores sobre a economia.
A confirmação de Flavio Dino para o Supremo Tribunal Federal (STF) redime Lula de escolhas erradas feitas em gestões anteriores e garante, para a nossa democracia, pelo menos mais uns vinte anos de estabilidade institucional e política.
É verdade que, antes mesmo da indicação de Dino, os erros do passado já vinham sendo corrigidos, naturalmente, pela ação do tempo e da experiência. O STF de 2023, antes mesmo de Flavio Dino, já não é o de 2005, 2010 ou 2014. Se Lula fez escolhas erradas, e portanto se é o maior responsável político, não é ele o responsável moral.
Esses erros morais, profundos, do STF, vinham sendo redimidos pelo próprio tribunal desde que seus ministros passaram a rever a injustiça que haviam cometido contra o presidente Lula, contra a ordem econômica nacional e contra a própria soberania jurídica do país.
Se isso tudo já era página virada, se o fim do lavajatismo marca o fim de uma era, a entrada de Flavio Dino representa a construção de uma “muralha da China”, de proporções suficientemente ambiciosas para que o espírito nacional possa relaxar a coluna por duas décadas.
O flagra na mensagem de celular de Sergio Moro, onde se vê que o ex-todo poderoso da Lava Jato pode ter votado em favor de Dino no STF, agrega um toque irônico e ajuda a fixar o momento na memória coletiva. O contraste não podia ser mais ilustrativo e didático. De um lado, o senador que simboliza toda uma era de instabilidade política, vazio ideológico e autodestruição econômica. De outro, Flavio Dino, uma das mais poderosas inteligências do país, representando o início de um processo de reconstrução da autoestima nacional.
Durante a sabatina, Dino lembrou aos senadores que é preciso uma interpretação moderna e equilibrada do que se entende, num Estado Democrático, como separação dos poderes. A extrema-direita brasileira, dominada pelo ressentimento de ter sofrido sucessivas derrotas jurídicas e políticas nos últimos anos, elegeu o STF como seu inimigo número 1. Daí se entende a estratégia, quase infantil, de usar a carta da “separação dos poderes” para jogar o legislativo contra o judiciário, ou mais especificamente contra o que este último possui de mais poderoso, em termos políticos, que é a sua corte suprema. A doutrina democrática pressupõe, ao contrário do que preconizam os bolsonaristas, uma relação de harmonia entre os poderes, e se a independência de cada um é tão importante, é justamente para realizar um objetivo, que é obtencão de paz, estabilidade e justiça, e não de criar um ambiente de permanente conflito e crise entre os poderes.
Flavio Dino usou a sabatina para fazer uma defesa contundente do judiciário e de sua importância para o equilíbrio e a saúde da nossa democracia.
Os ataques bolsonaristas a Flavio Dino foram simplesmente patéticos. Para Flavio Dino, foram tão oportunos que poderíamos até fazer alguma piada sobre “infiltrados”, caso não vivêssemos uma época tão perigosa para o uso da ironia (pela incapacidade generalizada em entendê-la). Câmeras do ministério da Justiça, terroristas com tornozeleira eletrônica, uso da Guarda Nacional para coibir os visigodos de Bolsonaro, os senadores repetiam, qual papagaios, argumentos que Flavio Dino já conhecia muito bem das oito vezes (!) em que participou este ano de audiências com senadores e deputados, rebatendo exatamente os mesmos ataques ridículos.
O 8 de janeiro foi um ataque terrorista aos Três Poderes, e teve três culpados: Jair Bolsonaro, em primeiro lugar, os próprios terroristas em segundo, e a secretaria de Segurança do Distrito Federal, comandada à época por Anderson Torres, em terceiro. Ponto final. Enquanto a extrema direita continuar se acorrentando, no fundo do mar, a essas almas penadas do terrorismo doméstico, continuará perdendo batalhas, e é ótimo portanto que ajam assim. Aliás, nem deveríamos falar disso, pois correto estava Napoleão, ao dizer que jamais se deve interromper um inimigo quando este estiver cometendo um erro.
De qualquer forma, precisávamos viver tudo isso para chegarmos a esse momento. Não houvesse Lava Jato, golpe e prisão de Lula, talvez demorássemos a entender a importância capital, estratégica, de termos um “dream team” no STF, um grupo de juízes durões e corajosos, dispostos a enfrentar pressões e histerias sociais.
Mas não é só isso. A indicação anterior, de Cristiano Zanin, já havia de certa forma cumprido esse papel de “dispositivo antigolpe” dentro do STF. Flavio Dino tem uma função mais complexa, que é ser um dos formuladores estratégicos, para lidarmos com um desafio infinitamente mais complicado, sutil, perigoso, e ao mesmo tempo mais desesperadamente necessário, que o país tem diante de si: o desafio do desenvolvimento.
Assim como os gritos de “liberdade” de Javier Milei, recém-eleito presidente da Argentina, não devem fazer efeito por mais que alguns meses, há um risco enorme de que a questão “democrática” não tenha mais tanto apelo em 2026, ou pelo menos não a ponto de ser praticamente o único fator de coesão de uma frente ampla da classe política e da sociedade. Em 2026, a coesão terá de ser amarrada num grande e ambicioso projeto econômico, que garanta o crescimento do país pelas próximas décadas. É isso que Flavio Dino, a meu ver, e o STF como um tudo, ajudarão a construir, através da estabilidade política e institucional. Se o país conseguir respirar tranquilamente, sem rupturas traumáticas, sem operação judiciais apocalípticas, sem crises políticas terminais, por alguns anos, teremos muito mais condições de construir um projeto coletivo racional e equilibrado.
Esse é o erro trágico, pueril, de alguns setores radicalizados da oposição, e refiro-me tanto aos radicalizados pela ideologia como pelo ressentimento, que é o mergulho no romantismo, na fantasia e na utopia. Não há nada mais antimarxista do que isso. Nada mais antitrabalhista e antimoderno. Em suma, é apenas estupidez, como toda ideologia assentada na antipolítica. Se há uma aliança filosófica que deu bons resultados, no passado e no presente, foi aquela celebrada, explicita ou tacitamente, desde o final da II Guerra até hoje, entre os setores pragmáticos do socialismo e os setores realistas dos liberais. O realista dinâmico, dialético, que nunca deixou que o cinismo inevitável da realpolitik aniquilasse o seu humanismo, de um lado, e a sua preocupação com o desenvolvimento econômico, de outro, fez história e, seja nos bastidores do poder, seja à frente dos governos, conduziu a humanidade, relativamente intacta, a uma longevidade média quase duas vezes superior àquela com que se iniciou o período. Os mesmos realistas, e só eles, poderão interromper as tendências de autodestruição que voltaram a rondar o planeta, como vemos na Ucrânia, na Palestina e no estreito de Taiwan.
Voltando ao ponto inicial, a presença de Flavio Dino no STF ajuda a cimentar a estabilidade política necessária para que um audacioso projeto nacional de desenvolvimento seja discutido e posto em prática. Esse projeto, no entanto, não existe ainda, e não por falta de caráter de alguém. Conspurcar o debate econômico com argumentos supostamente morais, com seus xingamentos adolescentes (“neoliberal safado” X comunista), é fazer o jogo do status quo. O conservadorismo adora esse tipo de barulho, justamente por entender que ele produz a instabilidade necessária para que nada de novo possa ser consolidado. Essa instabilidade crônica da política nacional é que gera uma situação pela qual, nas eleições nacionais, o fator de coesão seja a “democracia”, ao invés da materialização de um novo projeto de mobilidade urbana. O projeto nacional começa agora, finalzinho de 2023, com Lula no poder, STF revigorado e relações construtivas, consequentes, entre os distintos poderes da república.