Lula é neoliberal?
A crítica não é nova. Desde seu primeiro governo, iniciado em 2003, o presidente Lula enfrenta acusações pesadas de que estaria traindo os princípios ideológicos e o projeto econômico que deveriam nortear um governo verdadeiramente de esquerda.
Lula teria se submetido, desde a Carta aos Brasileiros, aos ditames liberais do sistema financeiro e, desde então, suas administrações não têm feito nada mais do que “dourar” a pílula do ultracapitalismo que devora as esperanças e o futuro do nosso país.
Conforme nos aproximamos do fechamento de seu primeiro ano do terceiro mandato, vemos a crítica se repetir em algumas bolhas militantes.
Verdade seja dita que essa crítica hoje não faz, nem de longe, o barulho que fazia em 2003 e 2004. Ah, como me lembro daqueles primeiros anos de Lula, em que a esquerda não escondia a ansiedade por transformações urgentes e profundas, e a insatisfação furiosa com as diretrizes econômicas moderadas, e mesmo conservadoras, do governo recém-eleito!
O PT, a chamada militância, os setores progressistas de forma geral (desde as franjas mais à esquerda, até as mais liberais), estamos todos mais maduros, focados e pacientes. Talvez até mesmo mais cínicos, embora não numa acepção ruim, negativa, mas ao contrário, num sentido de sermos hoje mais calejados. A geração que tinha 20 ou 30 anos quando Lula governou pela primeira vez, hoje tem 40 e 50 anos. Todas as crises políticas terríveis, dolorosas, vividas pelo Brasil, marcaram essa geração de várias formas. A maturidade nos deixou ao mesmo tempo mais seguros e confiantes, não por ignorar os riscos constantes que um governo progressista sofre no Brasil, mas porque agora conhecemos, muito melhor que antes, a força de nossos adversários e a nossa própria debilidade.
Algumas das críticas mais ferozes ao presidente Lula, por parte de setores radicalizados da esquerda, fazem ruído apenas dentro dessas câmaras de eco ou bolhas, em que se fragmentam as redes sociais. Alguns fogem das bolhas apenas porque interessa, a setores oportunistas da direita, “dividir para reinar”, ou seja, fomentar intrigas dentro do nosso campo, com objetivo de desesetabilizá-lo. Essa é uma tática mais antiga que as pirâmides do Egito!
Longe de mim, todavia, incorrer no erro de desprezar ou, pior, criminalizar essas críticas. Um governo, especialmente um com pretensões progressistas e populares, precisa ouvir as críticas e reagir a elas com o máximo de inteligência possível, o que inclui, naturalmente, usá-las para corrigir rotas e se autoaperfeiçoar.
Entretanto, seríamos ingênuos – e a ingenuidade é sempre um erro fatal em política – se ignorássemos os riscos que essas críticas produzem sobre a estabilidade do governo. Toda crítica produz instabilidade, porque esse é o objetivo de toda crítica: balançar o status quo, provocar um debate, gerar condições para mudanças e, em último caso, derrubar e destruir para que algo novo possa nascer.
Toda força política, portanto, é sempre, necessariamente, sensível às críticas, por mais minoritárias que sejam. São conhecidos os casos de prefeitos de cidade pequena que, apesar de controlarem quase que inteiramente a imprensa local, sentem-se profundamente perturbados com críticas vindas de um blog qualquer com pouquíssimos acessos.
Isso explica, aliás, a força da mídia independente, antes e agora. No início, éramos tão pequenos, quase insignificantes, diante da magnitude colossal dos grandes meios de comunicação! Pequenos mamíferos rastejando, semi-escondidos, entre os dinossauros. Mas assim como nossos frágeis ancestrais peludos se mostraram muito mais resilientes aos caprichos da natureza do que os gigantescos répteis de outrora, esses blogs e portais alternativos tinham poderosas vantagens darwinistas: custo menor de operação, mais agilidade e atingiam uma audiência progressista que estava, há décadas, órfã de uma mídia afinada com suas preferências políticas.
Hoje não somos mais tão pequenos, o que faz toda a diferença na correlação de forças, e isso inclui o debate crítico sobre os rumos do governo Lula III.
As críticas à esquerda ao governo Lula, que em 2003 e 2004 efetivamente desestabilizaram o governo, ao ponto de produzirem cisões partidárias importantes (vários deputados e quadros petistas saíram do partido e fundaram o PSOL, em razão dessas críticas), agora são em boa parte absorvidas pelos aparelhos ideológicos dos setores governistas da própria esquerda, formado por seus influenciadores e portais.
Em vários aspectos, críticas à esquerda a um governo progressista têm um potencial mais desestabilizador do que aquelas vindas à direita. Se um quadro bolsonarista ataca Lula, por exemplo, isso frequentemente até beneficia o governo, porque ajuda a coesionar o campo progressista em determinado tema. Por exemplo, quando um ultraliberal ataca o governo petista, chamando-o de perdulário, intervencionista, socialista, comunista, ou coisa que o valha, isso gera um efeito curiosamente positivo para o governo, porque de certa maneira neutraliza as “acusações” vindas do extremo oposto, da esquerda, de que a administração estaria amarrada em dogmas neoliberais e obcecada por reduzir o gasto público e equilibrar as contas.
E vice versa, naturalmente. A cada vez que um comunista radical ou um desenvolvimentista de esquerda (e uso essas expressões aqui em suas acepções mais nobres e positivas possíveis) critica o arcabouço fiscal de Haddad como excessivamente conservador, ou chama o governo Lula de “liberal”, ou “neoliberal”, ou acusa-o de seguir a “mesma linha econômica” de FHC, Temer ou Bolsonaro, o céu dos neoliberais fica menos estrelado.
Apesar dessa dialética sutil, ambígua, sempre tão contaminada de cinismo (agora num sentido negativo), oportunismo, vaidade e jogo de cena, sempre há espaço para uma avaliação objetiva do governo Lula. Afinal, Lula é neoliberal ou não? Sua política econômica é igual a de Bolsonaro, ou não?
Em minha opinião, não. Lula não é um neoliberal. O governo federal, no entanto, é uma coalizão onde os liberais têm um espaço fundamental, e isso tanto porque Lula representa, ele mesmo, muitas ideias políticas e econômicas liberais, como porque a administração acolheu inúmeros quadros importantes do liberalismo nacional. Os ministros Alckmin e Tebet, por exemplo.
Creio que esse ponto, sobre o liberalismo do governo Lula, merece ser melhor desenvolvido, porque há muita confusão. Liberalismo talvez seja o conceito mais distorcido no debate nacional.
Diversas bolhas de esquerda, e nesse ponto elas convergem com algumas bolhas reacionárias, como as autodenominadas “nacionalistas”, vêm incorrendo no erro primário de tratar o conceito de liberalismo, especialmente o econômico, por um ângulo puramente negativo. Esse é um maniqueísmo burro, ahistórico, e que faz a esquerda negar suas próprias origens e perder a oportunidade de usufruir de um patrimônio que, em alguns aspectos, pertence muito mais a ela do que à direita.
O liberalismo – político e econômico – foi parido pela esquerda. Os tempos iliberais, como a Idade Média, os primeiros séculos da Idade Moderna, e até mesmo as primeiras ondas de revolução industrial, foram marcados pelo domínio do conservadorismo. Foram as ideias liberais da esquerda (tanto em política como em economia) que modernizaram o capitalismo.
Pegue, por exemplo, o primeiro livro de Marx, “Miséria da Filosofia”, cuja tese central é uma crítica duríssima, até mesmo cruel, ao Proudhon, cuja doutrina seria apenas romântica (e portanto fantasiosa e inútil) por não entender o mecanismo poderoso que o liberalismo econômico, sobretudo o seu sistema relativamente livre de preços, havia colocado a serviço do desenvolvimento das forças sociais.
“A burguesia desempenhou na história um papel altamente revolucionário”, diz o Manifesto Comunista, assinado por Engels e Marx. E por quê? Porque pôs fim ao mundo mofado da Idade Média, emancipando as forças econômicas latentes do trabalho e da criatividade.
O problema do governo Lula, portanto, não é ser “liberal”. Nem é esse o problema de nenhum governo no mundo. Liberalismo pode ser uma excelente coisa, desde que o sentido que damos a esse termo seja uma coisa boa, como, por exemplo, uma economia baseada num sistema de preços relativamente livre, mas regulamentado adequadamente pelo Estado, de forma a combater distorções. Essa é, aliás, a grande lição de Keynes, um dos próceres mais importantes das teorias modernas de desenvolvimento. Liberalismo, sim, mas com regulamentação do Estado sobre os níveis de investimento e crédito, com foco sobretudo na manutenção de elevados níveis de emprego. Keynes, além disso, introduziu um valor ético fundamental no liberalismo moderno, que é a preocupação humanista com a qualidade de vida do cidadão. Essa deve ser uma preocupação que pensa o tempo presente, focada na segurança alimentar e na educação. As teorias liberais que não tinham como foco primário o bem-estar concreto da população, e se dispersavam em previsões de futuros “equilíbrios”, foram aniquiladas por Keynes com uma só frase: “no futuro estaremos todos mortos”.
O termo liberalismo ganhou um sentido mais negativo junto à esquerda por causa do contraponto soviético, que no entanto não existe mais.
Um socialismo moderno, como vemos se desenvolver na China, deve aprender a usar as ferramentas liberais de mercado, mas invertendo a relação de poder existente nos países capitalistas. Lá, o mercado livre de preços deve estar a serviço da sociedade, enquanto nos países capitalistas tradicionais, a sociedade parece estar à serviço do mercado.
É um grave erro político, de qualquer forma, equiparar a política econômica de Lula com a de governos anteriores, como o de Temer e Bolsonaro. Ciro Gomes tem feito isso, por exemplo, mas a sua crítica é tão contaminada pelo rancor pessoal, que soa apenas como desonestidade. Em política, infelizmente, a desonestidade às vezes é terrivelmente eficaz, e por isso é importante contestar esse tipo de cretinice.
Na verdade, aqueles que fazem essa equiparação entre as políticas econômicas de Lula e Bolsonaro parecem estar, eles sim, aprisionados por uma cultura ultraliberal, vivendo num quartinho escuro e asfixiante. Os enormes investimentos do governo Lula em programas sociais, em educação em tempo integral, em campanhas de vacinação, em projetos de energia renovável, em cultura, em pesquisa científica, são obliterados nessa crítica.
Tudo isso não seria também política econômica?
A tentativa dos governos Lula e Dilma de iniciar um audacioso projeto de reindustrialização, a partir da cadeia de óleo e gás, com a expansão da produção de petróleo e a construção de refinarias, foi infelizmente abortada pela Lava Jato e pelo golpe de 2016, mas ela existiu!
Existem várias maneiras de se fazer a crítica ao governo. Não acho que seja o caso de fazer a crítica entre quatro paredes, ou evitar “lavar roupa suja” em público. Não gosto dessa maneira de pensar. Crítica que presta e que é realmente levada à sério é apenas aquela que é feita em público. E crítica eficiente é crítica dura. O campo progressista precisa aprender a ouvir as críticas mais duras, ferozes e até mesmo injustas, com firmeza e serenidade, evitando essa lamentável cultura do “cancelamento”, que não nos leva a lugar nenhum. Críticas injustas ou erradas devem ser respondidas com classe e categoria, e neste sentido elas serão úteis para consolidar nossas próprias posições e fortalecer o próprio governo que defendemos.
Se Lula foi eleito por 60 milhões de votos, e se há esperanças de que dias melhores virão, é natural, necessário, saudável, que o governo Lula seja defendido. Neste sentido, a constituição de uma base social sólida de apoio à administração petista é uma excelente notícia. Alguns militantes, no afã de defender o governo, talvez exagerem, mas isso é do jogo. O lado ruim é que esses exageros frequentemente são contraproducentes, ou seja, são defesas que, ao invés de ajudar, atrapalham o governo. Cabe às lideranças políticas sinalizar posturas e diretrizes adequadas.
Da minha parte, penso que o campo democrático (que uso aqui para incluir essa coalizão de liberais, comunistas, socialistas e social-democratas que se uniu para derrotar Bolsonaro) deve tomar cuidado para não perder o foco em polêmicas menores. Às vezes polêmicas importantes, mas menores, porque o foco de toda crítica ao governo Lula deveria ser, a meu ver, a questão da infraestrutura. O governo Lula precisa investir mais em infraestrutura: mobilidade urbana, tecnologia, comunicações e energia.
O Brasil precisa de ferrovias de alta velocidade, indústrias de semicondutores, centros de pesquisa científica, novas refinarias de petróleo, fábricas de placas fotovoltaicas. As cidades brasileiras precisam se voltar para a energia solar, capaz de reduzir drasticamente as contas de luz, liberando crédito para o povo consumir cultura e conhecimento. O lixo precisa ser tratado e transformado em biomassa, gerando empregos, crédito, desenvolvimento, além de deixar as cidades limpas.
Enfim, temos ainda um país a ser construído. Mesmo as crises internacionais, por mais terríveis e dramáticas que sejam, como vemos na Palestina, não devem nos desviar de nosso foco (por exemplo gerando brigas fratricidas entre brasileiros pró-Palestina e pró-Israel), porque apenas poderemos efetivamente ajudar nossos irmãos em outros países quando nosso país se desenvolver.
Que venham as críticas, mas os críticos também que se preparem para o debate sem vitimismo. Quem faz a crítica, precisa ter maturidade para desenvolvê-la, defendê-la, e sabedoria para retificá-la, se for o caso.
Lula vai terminando o seu primeiro ano de governo com avanços importantes. A acusação de neoliberalismo não é justa, porque o governo expandiu enormemente a máquina pública. O arcabouço fiscal, por sua vez, foi o instrumento usado pelo governo justamente para driblar o teto de gastos e a camisa de força ideológica do ultraliberalismo hegemônico no Congresso e na mídia. Ele dará mais flexibilidade às despesas públicas, ao mesmo tempo em que cumpre a função política de atender, democraticamente, a opinião de setores liberais que apoiam o governo. A esquerda deve evitar a postura arrogante de que sua opinião sobre economia corresponde a alguma fórmula mágica para o desenvolvimento. Não é assim. Política econômica, numa nação periférica, é uma arte complexa, e os resultados não podem ser apurados pelo que achamos que poderia acontecer, e sim pelos indicadores reais da economia.
Em 11 meses de governo, os indicadores econômicos estão bons: a inflação deve terminar o ano abaixo de 5%, ou seja, dentro da meta. Os juros finalmente estão baixando: em ritmo inferior ao que desejaríamos, mas ao menos começaram a cair. O desemprego voltou aos menores níveis da história, e agora já temos o recorde de 100 milhões de pessoas trabalhando, segundo números do IBGE divulgados há alguns dias.
O saldo comercial deste ano deve bater um recorde histórico, o que nos ajudará a manter reservas internacionais elevadas.
Se esses indicadores se mantiverem firmes ao longo do primeiro trimestre de 2024, isso pode ajudar o campo progressista a ter um desempenho favorável nas eleições municipais, preparando terreno para outra vitória em 2026, desta vez elegendo um congresso menos conservador e mais desenvolvimentista.
Por outro lado, seria também muita mediocridade rebaixar o debate apenas à análise desses índices. Mais que nunca, precisamos de críticas construtivas e ideias inovadoras e por isso será tão necessário, ao campo democrático, investir na criação de espaços para discussão objetiva de projetos, de preferência projetos concretos, que a população possa visualizar e alimentar esperanças de vê-los se materializar ainda em seu tempo de vida.