Pagamentos teriam como objetivo manipular consulta pública realizada em setembro deste ano, com a presença do presidente da Potássio do Brasil. Alguns representantes indígenas aceitaram receber outra área e desistir da demarcação do território, agora em estudo, abrindo caminho para empresa construir mina de produção de fertilizantes no local. Lideranças Mura indicaram falta de consenso e reunião foi considerada nula pela Justiça.
Publicado em 29/11/2023 – 13h30
Por Fábio Bispo
InfoAmazonia — Uma decisão da Justiça Federal do Amazonas aponta que a mineradora canadense Potássio do Brasil pagou suborno de R$ 5 mil a R$ 10 mil a indígenas do povo Mura, “com o intuito de coagir e manipular as comunidades” a desistirem da demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. O objetivo da empresa, segundo o documento judicial, era obter o consentimento dos indígenas para a escavação de uma mina de cloreto de potássio dentro do território, no município de Autazes.
Na semana passada, reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que a Potássio do Brasil ofereceu uma área de 5 mil hectares para os indígenas darem consentimento para o projeto da mina. A InfoAmazonia teve acesso ao áudio completo da reunião em que o presidente da mineradora, Adriano Espeschit, condiciona o oferecimento da nova área em troca da “não demarcação da terra indígena em cima da área do Soares”. Para influenciar na decisão, segundo a decisão da Justiça, cerca de 10 indígenas teriam recebido os pagamentos entre R$ 5 mil e R$ 10 mil.
Decisão judicial aponta que pagamentos teria intuito de “coagir e manipular” processo de consulta indígena. – Reprodução/JF
“Esses 5 mil hectares estariam disponíveis a partir de hoje se vocês votarem favorável”, disse Espeschit. Por cerca de uma hora, ele detalhou o acerto da negociação e indicou como os indígenas deveriam decidir: “Nós não podemos ter terra indígena em cima da nossa lavra”, orientou.
A proposta ocorreu durante a reunião de consulta indígena com integrantes do povo Mura nos dias 21 e 22 de setembro de 2023. No encontro, os indígenas presentes – na decisão, a Justiça afirma que seria menos de 1% do povo Mura – teriam aceitado a proposta do presidente da Potássio do Brasil para desistirem da demarcação do território em troca dos 5 mil hectares fora do local de exploração. A decisão chegou a ser levada ao governador do Amazonas, Wilson Lima (União).
No entanto, após saberem do resultado da consulta, lideranças Mura apresentaram gravações ao Ministério Público Federal (MPF) e relataram a falta de consenso dos indígenas sobre o que foi aprovado. Em 16 de novembro, a Justiça Federal do Amazonas suspendeu o processo de consulta indígena, apontando nulidade da reunião que aprovou o projeto. Espeschit, presidente da empresa Potássio do Brasil, chega a afirmar aos indígenas que após a retirada do minério, o que pode demorar até 30 anos, eles poderão voltar a requerer a área como terra indígena.
“A partir do momento que acabar a retirada do minério, aquela terra vai poder ser terra indígena, o direito de vocês é adquirido, não existe problema nenhum, é só uma postergação. Vai continuar sendo possível depois que a empresa terminar”, declarou Espeschit na reunião.
Segundo consta na decisão de Jaiza Fraxe, juíza que julgou o pedido do MPF, a reunião não tem validade e não contou com representação de todas as lideranças indígenas das aldeias impactadas pelo empreendimento. Segundo ela, o resultado teria sido manipulado em favor da mineradora com apoio de pessoas aliciadas pela empresa.
“São mais de 12 mil indígenas Mura afetados com o empreendimento, dos quais nem 1% chegou a participar da reunião onde correu uma lista de presença depois transfigurada em lista de aprovação, havendo clara pressão de cerca de dez indivíduos – alguns já identificados e ouvidos no MPF”, diz trecho da decisão.
À reportagem, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) informou que suspendeu o processo de consulta pública até que sejam concluídos os estudos para demarcação da TI Soares/Urucurituba.
A consulta livre, prévia e informada, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, foi determinada pela Justiça em 2017, em ação civil que acompanha o cumprimento dos direitos dos indígenas na área do projeto. Desde então, a mineradora tem sido seguidamente denunciada por interferir no processo de livre escolha dos indígenas e, segundo a decisão da Justiça, isso provocou a “desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta”.
A decisão da juíza aponta que pelo menos sete aldeias do povo Mura registraram casos de coação, manipulação e intimidação. Por isso, cada uma poderá ser indenizada no valor mínimo de R$ 1 milhão pela atuação de má-fé da mineradora.
A Justiça também impôs uma multa de R$ 1 milhão à Potássio do Brasil por descumprimento de acordos anteriores que proibiram a presença de representantes da empresa em reuniões internas dos indígenas e determinou a retirada de marcos físicos instalados pela empresa na área ocupada pelas comunidades.
Placa da Potássio do Brasil na Aldeia Soares, no local próximo onde pretende escavar a entrada da mina que vai ficar a quase 1 km de profundidade. – Christian Braga/InfoAmazonia
Além disso, desde agosto, todo o licenciamento ambiental concedido à empresa pelo estado do Amazonas está suspenso, sob o argumento de que é competência federal e não estadual licenciar a obra.
Demarcação pode inviabilizar mina para fertilizantes
Esta não é a primeira vez que a mineradora é acusada de desrespeitar os direitos dos povos indígenas. O mesmo projeto de exploração de potássio em Autazes enfrenta conflitos desde 2015, quando a Potássio do Brasil iniciou perfurações em terras indígenas da região sem autorização. Após um acordo em 2017 com o MPF, a empresa aceitou respeitar as regras de consulta indígena como a OIT-169.
Na época, a Potássio do Brasil reformulou o projeto para evitar sobreposição com a Terra Indígena Jauary, e iniciou uma consulta indígena com base no Protocolo Mura, que tem validade legal e foi elaborado pelos próprios indígenas. O documento estabeleceu os critérios em que a comunidade deve ser consultada sobre projetos que impactam diretamente seu território. A criação destes instrumentos próprios de consulta tem sido estimulada pelo MPF para resguardar a autonomia e preservação das características próprias de cada povo sobre seus territórios.
No entanto, grande parte do empreendimento continua sobre área da Terra Indígena Soares/Urucurituba, que estava com processo para demarcação parado desde 2003 na Funai, e só foi retomado em abril deste ano após decisão judicial.
Em junho deste ano, o MPF pediu a suspensão do projeto de mineração até a conclusão dos estudos para demarcação da terra indígena. Segundo declarou o procurador federal Fernando Merloto na época do pedido, “se esses estudos comprovarem de fato os elementos da tradicionalidade e da ocupação, se extingue o projeto [da Potássio do Brasil]”.
A legislação brasileira não permite mineração em terras indígenas, no entanto, a empresa tem buscado alternativas para impedir a conclusão do processo de demarcação de terras na área onde pretende explorar o minério.
Em 2020, na gestão do ex-presidente Bolsonaro (PL), um projeto para liberar a mineração em terras indígenas foi apresentado ao Congresso e chegou a tramitar em regime de urgência. O ex-presidente chegou a usar o caso do projeto da Potássio do Brasil para justificar seu projeto para liberar a mineração em terras indígenas. Após assumir o governo, o presidente Lula (PT) pediu arquivamento do projeto.
Projeto do agronegócio tem apoio político
Anunciado como promessa para reduzir a demanda externa do agronegócio brasileiro por fertilizantes, o projeto da Potássio do Brasil tem conquistado o apoio de grandes empresários do setor e de parte da classe política.
Segundo informações da própria mineradora, o projeto de potássio na Amazônia vai custar 2,4 bilhões de dólares (R$ 11,6 bilhões). A empresa tem buscado investidores internacionais e tentado uma liberação para captação de recursos na bolsa de valores dos Estados Unidos, onde a empresa tem sido acusada de esconder informações dos investidores.
Mesmo sem garantias da viabilidade do projeto, a Potássio do Brasil anunciou um contrato de exclusividade para venda de 2,4 milhões de toneladas de potássio com o conglomerado agrícola Amaggi, da família de Blairo Maggi, que foi ministro da Agricultura no governo do ex-presidente Temer (2016-2019) e é o maior produtor de soja do Brasil.
Os executivos da Potássio também são vistos frequentemente com políticos e já receberam apoio público do governador do Amazonas, Wilson Lima (União), que chegou a se posicionar publicamente contra a demarcação da terra indígena na região do projeto, e até do vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSB), que se encontrou com os empresários em março deste ano. Inclusive, um desses encontros não foi registrado na agenda pública do vice-presidente, no dia 3 daquele mês.
Alckmin se reuniu com executivos da Potássio do Brasil e gravou vídeo defendendo o projeto que pode estar totalmente dentro da terra indígena Mura. – Divulgação Potássio do Brasil
A Potássio do Brasil tem 177 requerimentos de mineração registrados na Agência Nacional de Mineração (ANM). O projeto Potássio-Autazes, segundo informações divulgadas pela própria mineradora, é o maior dentro de um planejamento que prevê exploração em vários outros municípios no leito do Rio Madeira. A ideia é garantir a exploração e produção de fertilizante em plena Amazônia, e escavar o subsolo a quase um quilômetro de profundidade, abrindo galerias em uma área de 13 quilômetros de comprimento com 10 quilômetros de largura.
Empresário conta com liberação do Congresso
Na mesma reunião em que teria pressionado os indígenas a aprovarem o projeto, o presidente da Potássio do Brasil chegou a afirmar que a empresa considera uma liberação do Congresso para mineração em terras indígenas.
Segundo declarou aos indígenas, a empresa tem planos futuros para explorar potássio na Terra Indígena Jauary, que estava nos planos iniciais, mas foi retirada do projeto após acordo judicial.
Segundo Espeschit, a mineradora vai escavar até chegar no limite da terra indígena, o que pode levar 19 anos. “E aí, sim, a gente vai poder estar entrando dentro do Jauary com a regulamentação do Congresso Nacional, porque vocês vão nos ajudar”, declarou.
Potássio do Brasil diz que pagamentos foram legais
Procurada pela reportagem da InfoAmazonia, a Potássio do Brasil disse que os pagamentos de R$ 5 a R$ 10 mil para as lideranças indígenas ocorreu “dentro do processo através de depósitos judiciais com a devida liberação da juíza”.
Sobre a proposta de uma nova área para os indígenas fora do local do projeto de potássio, a empresa justificou que “todos os benefícios socioeconômicos e ambientais previstos para os indígenas e para os não indígenas no âmbito do Projeto Potássio Autazes são declarados publicamente pela Potássio do Brasil”.
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