Na Argentina, Milei entrega governo para Macri

Primeira grande manifestação contra Milei na Plaza de Mayo após sua eleição para presidente. Foto: Bruno Falci

Acuado, o presidente eleito necessita de apoio parlamentar da direita tradicional, que ele chamava de “casta”. Ele não tem outra saída se quiser governar e enfrentar a poderosa oposição, que já está protestando nas ruas.

Bruno Falci, de Buenos Aires, para O Cafezinho

Luís Caputo foi indicado por Mauricio Macri para ministro da Economia. Esta é a notícia mais comentada sexta-feira, 24/11, na imprensa em geral da Argentina. Tudo indica que o acordo está fechado e as diretrizes econômicas do país serão administradas por Macri e o PRO- Propuesta Republicana, seu partido neoliberal derrotado no primeiro turno das eleições presidenciais. Milei, acompanhado por Caputo, viajou aos Estados Unidos e tem encontros no Departamento de Estado e no FMI, nesta segunda-feira, 27/11. As tensões internas mostram a incerteza que cerca o próximo governo para poder tomar todas as medidas que defendeu durante a campanha. Acuado, ele não tem outra saída se quiser governar e enfrentar a poderosa oposição, que já está protestando nas ruas, e fazendo declarações incisivas.

Armado com um motosserra, Milei apelou durante a campanha ao “extermínio da casta política”, que acusa da perpétua crise econômica que devasta a Argentina, mas foi com essa mesma “casta” demonizada que ele pode se eleger presidente. Duas alianças eleitorais foram fundamentais. Além do apoio do ex-Presidente Maurício Macri, que governou de 2015 a 2019 e conduziu o país à bancarrota econômica devido ao empréstimo de 54 bilhões de dólares concedido pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), também teve a adesão da Ministra de Segurança do mesmo governo, Patricia Bullrich, candidata da clássica direita neoliberal, apoiada por Macri, que foi derrotada no primeiro turno.

 A necessidade de encontrar soluções imediatas obrigará Milei a negociar com aqueles que durante a campanha ele chamou de “escória humana” e “desastres”. A incorporação de nomes do partido para cargos em ministérios e secretarias do governo de extrema direita é um fato. Estão de volta os funcionários que cercaram Macri na presidência para realizar a dívida criminosa com o FMI e o ajustamento que aplicaram às condições de vida dos trabalhadores

 Caputo: FMI e paraísos fiscais

O anúncio ainda não é oficial, mas já está na boca de todos. Embora ainda não tenha confirmação sobre seu futuro imediato, Caputo já se desloca como o próximo ministro da Economia e reuniu-se nesta sexta-feira, 24/11, com autoridades dos mais importantes bancos do país. Caputo desempenhou um papel central no gabinete de Macri, como ministro da Economia e presidente do Banco Central, numa época em que se desenvolvia o empréstimo milionário com o FMI, e teve atividades paralelas com empresas offshore. Ele é sempre lembrado por suas atividades em paraísos fiscais revelados nos paradise papers, após o empréstimo com o FMI e pela ligação da sua família com a tentativa de assassinato da vice-presidenta Cristina Kirchner. Foi-se o tempo em que circulava um vídeo em que o próprio Milei critica Caputo por se dedicar apenas a endividar o país e fugir com dinheiro do acordo com o FMI.

Macri quer mais: Patricia Bullrich, candidata derrotada no primeiro turno pela coalizão de direita, Juntos por el Cambio, e que se aliou a Milei no segundo turno das eleições presidenciais, já foi escolhida para chefiar o Ministério da Segurança. Ela já havia exercido esse cargo no governo de Macri, de 2015 a 2018 e teve uma atuação extremamente repressiva, visando garantir a aprovação das medidas neoliberais.

Essas alianças anunciam também um prematuro e inevitável estelionato eleitoral, pois Macri e sua correligionária Bullrich não têm propostas políticas que se alinham automaticamente com a motosserra da extrema-direita, como o fechamento do Banco Central e a dolarização da economia. Mas a visão predatória de Milei vai mais adiante. Sua proposta principal tem sido a redução do Estado à sua expressão mínima, com o encerramento de ministérios como o da Educação e da Saúde e a eliminação progressiva da ajuda social. Mesmo com esse apoio, Milei segue longe de assegurar maioria no Congresso, o que imporá dificuldades para que ele consiga implementar suas propostas, como a redução drástica do tamanho do Estado, o corte de impostos e a privatização de estatais, o que pode deixá-lo vulnerável a um eventual processo de impeachment.

Cristina Kirchner e a perseguição judicial (Lawfare)

Há vários elementos que podem explicar a ascensão de Milei. Um deles é o lawfare e a perseguição judicial contra a maior liderança da esquerda peronista, Cristina Kirchner, que deveria ser a candidata à presidência nas últimas eleições. A inscrição de chapa ocorreu 24 horas antes de terminar o prazo e foi indicado nome o de Sergio Massa. Uma decisão de última hora porque até então o povo, nas ruas, pedia o nome Cristina. Houve uma manifestação na Plaza de Mayo, com cerca de 500 mil pessoas, que com bandeiras, cantavam e pronunciavam o nome dela para presidente.

Outro fator que explica a ascensão de Milei foi o papel da mídia hegemônica desempenhou. Esta jogou toda a responsabilidade da crise para o governo de Alberto Fernandes.  Isso não corresponde à verdade, pois a crise econômica foi acirrada por Macri, que deixou o governo com inflação de 70% e passou esse problema para os peronistas. Esses assumiram uma Argentina inflacionada e tendo uma dívida externa gigantesca, contraída também por Macri.

Dolarização e reforma trabalhista, para citar duas propostas que aparecem na plataforma do partido governista (La Libertad Avanza), requerem necessariamente a aprovação do poder legislativo. Qual será a situação da sua força no congresso? Político novato, durante a campanha Milei demonstrou ter pouco jogo de cintura para lidar com setores críticos do país. sua aliança com Macri e Bullrich foi cimentada apenas em interesses eleitorais de ambos os lados. Resta saber se construirão agora uma aliança de governo de fato.

O Congresso e as reformas predatórias

Milei será forçado a negociar com os interesses e objetivos dos legisladores aliados e a tarefa impossível de obter apoio da oposição peronista se pretende avançar com as reformas predatórias como a privatização de empresas públicas ou a dolarização da economia, uma vez que não terá maioria no Congresso.    

Na Câmara dos Deputados, a extrema direita terá apenas 38 cadeiras próprias de um total de 257; no Senado, oito das 72. Para iniciar uma sessão, é preciso metade mais um dos presentes, o que constitui quórum. Milei também não tem governadores do seu partido. Todos seus candidatos foram derrotados nas últimas eleições. Contando com os parlamentares do PRO, sigla de Macri, ele tem 79 deputados e para conseguir maioria necessita de 129. O peronismo terá um poder de oposição significativo na Câmara dos Deputados: a Unión por la Patria terá 108 legisladores.

Deve-se acrescentar que os peronistas são mais fortes no Senado. Para obter maioria simples, precisa de apoio de 37 senadores. A Unión por la Patria tem 35 senadores e só vai depender de apenas mais dois para obstruir qualquer proposta de Milei. Por esta razão, a aliança que Milei fechou antes do segundo turno com Macri e Bullrich, parece fundamental para garantir a governabilidade.

Milei dificilmente poderá contar integralmente com a UCR – Unión Cívica Radical, que, fundada 1891, é o mais antigo partido das Américas e representa setores influentes da classe média argentina.  Liderada por Gerardo Morales e Martín Lousteau, a entidade emitiu uma declaração parabenizando Milei por seu triunfo eleitoral e mostrou sua predisposição para fornecer “cooperação republicana” ao novo governo. O que pretende os radicais é exercer uma oposição responsável no Congresso, “porque esse é o papel que a sociedade nos atribuiu na hora de votar. nesse espírito apoiaremos o que é bom para o país e proporemos alternativas ao que nos parece errado”. Diante desse quadro adverso, ele já começa a sinalizar o abandono das propostas destrutivas da motosserra e se aproximar definitivamente do perigoso estelionato eleitoral.  

Oposição já está nas ruas

Ainda distante da governabilidade, que terá início em 10 de dezembro próximo, quando Milei assume a presidência, as ameaças de privatização e sucateamento do Estado, já estão sendo severamente contestadas. O titular da Associação de Pilotos de Linha Aérea (APLA), Pablo Biró, pediu “prudência” diante da indefinição sobre o futuro da Aerolíneas Argentinas, mas alertou que Milei “terá que carregar os mortos e terá que me atingir primeiro”. E se ainda por cima “ele quiser nos colocar na prisão ou abolir o direito de greve ou perseguir, ele, como Fujimori, ex-presidente peruano, acabará na prisão”. Mas “se houver uma mesa de diálogo”, acrescentou, os trabalhadores daquela empresa “têm elementos para discutir”.

Com a presença de milhares de pessoas na praça em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino, foi realizado na quinta-feira, 23/11, quatro dias após a eleição presidencial, o histórico ato das Madres de la Plaza de Mayo, que ocorre há 47 anos, com a presença de diversas organizações de direitos humanos, organizações sociais e de esquerda. Mais uma vez, manteve-se nas ruas a luta nas ruas pela Memória, Verdade e Justiça às portas de um novo governo com alto conteúdo pró ditadura. Uma nítida indicação que será firme a resistência às propostas predatórias e antidemocráticas de Milei, No dia seguinte, milhares de manifestantes também se mobilizaram do Congresso à Plaza de Mayo. A marcha foi convocada pela Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto e por uma ampla gama de organizações feministas, sociais, sindicais, estudantis e políticas. “Contra o ajustamento e Milei”, “Eles não ignorarão os nossos direitos” e “Nenhum direito a menos, nenhum ajuste a mais” estavam nos cartazes e faixas.  

Assista os vídeos feitos por Bruno Falci da Marcha das Madres da Plaza de Mayo, em Buenos Aires

Assista a entrevista de Bruno Falci para o programa Bom Para Todos da TVT, apresentado por Talita Galli

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