Explicar a meteórica ascensão do candidato como uma resposta à crise econômica é insuficiente, para não dizer preguiçoso
Publicado em 15/11/2023 – 08h31
Por Rafael Rezende – Brasil de Fato – São Paulo (SP)
Brasil de Fato — Milei chegou em primeiro lugar nas eleições prévias argentinas de agosto.
1- Milei é fruto da crise econômica
De certo, a crise econômica que faz com que a Argentina tenha uma das maiores taxas de inflação do mundo, passando dos 100% anual, deteriora as condições de vida de toda a população. Tal fato não tem nada de banal e não pode ser lido como secundário. Por outro lado, não é possível tratar a esfera econômica como desassociada da esfera política nacional e internacional. Explicar a meteórica ascensão política de Javier Milei como uma resposta social à crise econômica é fácil, porém insuficiente, para não dizer preguiçoso.
O fenômeno Milei possui muitas particularidades, mas não é um raio em céu azul. Ele está inserido em uma onda global de avanço das extremas direitas populistas em todo o mundo. Podemos citar alguns exemplos como Bolsonaro, no Brasil; Trump, nos EUA; o partido Vox, na Espanha; e o partido AfD, na Alemanha. Em comum, esse partidos e lideranças são caracterizados pelo antagonismo à política tradicional e à democracia liberal; pelo incentivo à xenofobia; pelo militarismo; pela misoginia; e pelo conservadorismo político associado a valores religiosos.
Sim, Milei encontrou em um país devastado pela crise um cenário propício para o seu discurso extremista. Ao mesmo tempo, Milei utiliza de táticas largamente testadas em países como Brasil e Espanha que envolvem a utilização de fake news, mobilização do medo e deslegitimação das instituições democráticas. Sendo assim, o fenômeno Milei, apesar de ancorado em questões econômicas, não deixa de ser profundamente político.
2- Milei é um liberal
Milei não é um liberal, é um extremista de mercado que flerta com valores conservadores. Seu anti-estatismo econômico é apenas um dos muitos pilares do liberalismo. Novamente, olhar apenas para a economia é um erro.
Precisamos levar em consideração que o liberalismo, como conjunto ideológico, não é homogêneo, ou seja, existem muitas variações de liberalismo. Em nenhuma delas, por exemplo, seria aceita a defesa da relativização das violações aos direitos humanos, como faz Victoria Villaruel, candidata a vice-presidente na chapa de Milei e aberta defensora dos militares que comandaram o extermínio e desaparecimento de 30 mil argentinos (cifra largamente aceita por pesquisadores e organizações nacionais e internacionais de direitos humanos, porém questionada por Villaruel). Aliás, cabe lembrar que a própria noção de direitos humanos é uma construção liberal.
Ainda há um último ponto que afasta Milei do liberalismo: sua aproximação repentina com o conservadorismo. Qualquer liberal que se preze defende que o direito ao aborto é uma liberdade individual inviolável. Para não contrariar seus votantes religiosos e sua rede internacional de apoio, Milei passou a atacar a descriminalização do aborto, recente conquista das mulheres argentinas. Que liberal é esse que quer que o Estado e a Igreja digam a uma mulher o que fazer com o seu corpo?
3- Milei combate a casta política
Ao contrário de Jair Bolsonaro, seu apoiador de primeira hora, Milei realmente veio de fora do sistema político tradicional, o que tampouco quer dizer que ele não se adaptou muito facilmente a ele. Até pouquíssimo tempo, Milei esbravejava contra tudo e todos. Eram todos corruptos, parte da casta, gente que vivia de privilégios concedidos pelo Estado, afirmava o economista.
Com o avançar do processo eleitoral, Milei precisou de aliados e não teve vergonha de procurar antigos desafetos, políticos profissionais de longa data. O primeiro foi o ex-presidente direitista Mauricio Macri, a quem Milei outrora chamou de “socialista”, “repugnante”, “medíocre e covarde”. Logo depois, se aliou a sua ex-concorrente Patricia Bullrich, a quem chamou de ‘montonera [guerrilha peronista ativa nos anos 1970] assassina” em pleno debate presidencial. Por fim, Milei chegou a ter o apoio de Luis Barrionuevo, um dos maiores símbolos de um tipo de sindicalismo oligárquico e corrupto que existe na Argentina. Essa aliança, no entanto, não durou muito. Barrionuevo retirou o seu apoio após o anúncio da aliança com Macri, antigo desafeto.
4- Milei faz sua campanha sem grandes apoiadores
Milei está recebendo o apoio de boa parte dos grandes meios de comunicação argentinos. Os mesmos que, anos antes, alçaram-no à condição de comentarista econômico conhecido nacionalmente. Em 2018, por exemplo, quando Milei ainda não era candidato, ele deu 235 entrevistas, passando 193.547 segundos em cadeia nacional. Isso é muito mais tempo do que qualquer outro economista teve no mesmo período.
Alguns canais de televisão, como por exemplo o LN+, apresentam uma cobertura abertamente favorável a Milei. Ademais, não seria exagero considerar o radialista Alejandro Fantino e o apresentador Mauro Viale verdadeiros padrinhos da campanha do economista. Ambos tinham Milei como convidado recorrente em seus programas e são defensores das propostas apresentadas pelo candidato.
Isso sem contar o suporte oferecido por empresários e por latifundiários da poderosa Sociedade Rural Argentina. Só para citar alguns nomes, em um primeiro momento Milei foi apadrinhado pelo bilionário empresário do ramo das telecomunicações Eduardo Eurnekian. Mais recentemente, o apoio veio de Marcos Peña Braun, membro de uma família dona de uma rede de supermercados e outros negócio na Patagônia. E não para por aí: muitos dos exportadores enxergam com bons olhos a proposta de dolarização apresentada por Milei, uma vez que isso representará uma imediata valorização da moeda estadunidense com a qual são pagos, mesmo que isso aumente ainda mais a inflação e coloque mais alguns milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza.
5- Milei tem um projeto novo para a Argentina
Após anos de instabilidade econômica, sob o comando de diferentes partidos e governantes, parece tentador votar em alguém que promete algo radicalmente diferente. Milei usa e abusa de um vocabulário “economiquês”, apresenta fórmulas e cita teoremas. Para um leigo, soa como alguém bem preparado e com ideias novas. Para qualquer um com um mínimo conhecimento sobre econômica, soa como um enganador.
Suas proposta para a Argentina são vagas, confusas e quase sempre impraticáveis, portanto, não configuram um projeto. O pouco do que ele apresenta que pode ser considerado inteligível, nada tem de inovador, é pura destruição: desmantelar o sistema público de educação, saúde, aposentadoria; eliminar a moeda nacional e com ela a soberania econômica do país; e acabar com os programa sociais que garantem o mínimo de dignidade a milhares de pessoas. Se isso pudesse ser considerado um projeto, seria de miséria e sofrimento para muitos e enriquecimento para poucos.
Rafael Rezende é mestre e doutor em sociologia pelo IESP-UERJ. Foi pesquisador visitante na Universidad de Buenos Aires e atualmente é pesquisador visitante na Ruhr-Universität Bochumn, na Alemanha. Pesquisa, entre outras coisas, movimentos sociais e economia popular na Argentina.
Edição: Thalita Pires
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