Publicado em 14/11/2023 – 8h00
Por Élida Graziane Pinto
Conjur — Após a revogação do teto, especuladores curto-prazistas sobre a sustentabilidade da dívida pública brasileira buscam estabelecer um rígido dogma totalizante para se fiarem religiosamente. Daí se explica o surgimento de um coro ruidoso e muito bem articulado, que tenta impor, a qualquer custo, a simplificação linear do tamanho máximo que o Estado poderia alcançar, sem supostamente gerar pressão inflacionária ou implicar suposto abismo de endividamento.
Ao nosso sentir, essa não é propriamente uma preocupação republicana, porque envolve fortes conflitos de interesses. Sem um devido processo que resguarde contraditório, os defensores da meta de “déficit primário zero” em 2024 elevam o tom das suas ameaças e rechaçam — agressivamente — quaisquer reflexões plurais que lhe façam contraponto. A bem da verdade, parece haver uma espessa cortina de fumaça em torno da meta de resultado primário que está em debate no projeto de lei de diretrizes orçamentárias (PLDO) da União para 2024.
O nível do déficit primário é escolha política que, a rigor, não traz consigo uma repercussão necessariamente negativa para a sustentabilidade intertemporal da dívida pública. É preciso desmistificar essa falsa correlação que tem sido apregoada no senso comum de que seria fiscalmente irresponsável a hipótese de que a LDO venha a adotar uma trajetória mais suave de gestão do déficit primário, o qual, aliás, tem sido registrado pelo governo federal há quase uma década.
Vale lembrar que a sustentabilidade da dívida pública é uma equação que leva em consideração tanto o nível consolidado da dívida (em termos de dívida bruta do governo geral), quanto o nível de riqueza e produção do país (medido pelo produto interno bruto). Se o país cresce pouco ou não cresce, isso é tão ou mais grave para a avaliação intertemporal da dívida quanto o próprio volume global de receitas e despesas governamentais.
Eis a razão pela qual há muita distorção analítica e excesso retórico em torno da meta de resultado primário para o próximo exercício financeiro. Tal manipulação da opinião pública visa capturar a agenda das políticas públicas da União não apenas para 2024. Como as metas fiscais inscritas na LDO se referem ao exercício de referência e aos dois anos subsequentes, trata-se de uma tensão que pretende pautar o triênio 2024-2026, sobretudo em termos de condicionantes que impõem o contingenciamento de despesas discricionárias, o que pode, no limite, inviabilizar a ação planejada e transparente na consecução progressiva das políticas públicas a cargo do governo federal.
Ao invés de o Brasil pautar, neste momento, o horizonte de médio prazo do próximo plano plurianual – PPA e projetar os investimentos e os programas de duração continuada que poderiam nos levar a um patamar socialmente mais inclusivo, ambientalmente equilibrado e economicamente pujante até 2027, estamos aprisionados a um foco reducionista sobre acionamento, ou não, dos gatilhos da Lei Complementar 200/2023.
Por trás desse impasse, há um grande conflito distributivo no debate das regras fiscais brasileiras. É preciso evidenciar a quem aproveita essa espessa cortina de fumaça que interdita o planejamento de médio prazo do país. Impor constrangimento fiscal de curto prazo aproveita tanto aos agentes que precificam risco da dívida e são remunerados com juros mais altos, quanto aos parlamentares que barganham maior espaço orçamentário para suas emendas paroquiais. Ainda que sejam conduzidos por motivos e finalidades distintos, ambos os grupos frustram qualitativamente a agenda republicana do PPA, porque lhes aproveita mais a gestão curto-prazista de boca-de-caixa na execução orçamentária que o contingenciamento enseja.
Criar dificuldade para vender facilidades é, em grande medida, a estratégia que mobiliza os agentes política e economicamente mais hábeis a pautar suas prioridades alocativas à frente dos interesses do conjunto da sociedade. Às vésperas do 134º aniversário da Proclamação da República, é preciso desvendar tais capturas tão nucleares na definição de qual será o percurso dos recursos públicos no Brasil ao longo dos próximos anos.
Vilanizar ontologicamente a ação governamental e defender a redução linear das despesas primárias mediante limites intransponíveis, ainda que isso implique a erosão fiscal do pacto constitucional civilizatório de 1988, são estratégias que tornam opacas tanto a regressividade tributária, quanto a natureza ilimitada das despesas financeiras.
A grande iniquidade do ciclo orçamentário brasileiro reside no fato de que a riqueza subtributada tem sido seguramente muito bem remunerada na dívida pública. Ora, os agentes superavitários da economia não pagam tributos conforme sua capacidade contributiva e se recusam a ser chamados a tal dever. As inúmeras exceções acrescidas à reforma tributária evidenciam o quanto vivemos uma espécie de fuga à tributação por parte daqueles que conseguem ter acesso privilegiado ao eixo político-decisório do Estado. Aliás, nada mais contraditório que privilégio e República.
Do outro lado dessa tensão, encontram-se agentes políticos pouco dispostos a alocar recursos mediante pactuações planejadas, porque almejam maximizar seus retornos de curto prazo eleitoral, manejando liberações balcanizadas de emendas parlamentares e benefícios tributários paroquiais.
O foco do ajuste fiscal exclusivamente incidente sobre despesas primárias e, por conseguinte, tão demandante da busca do déficit primário “zero” pelo prisma da redução da ação governamental implica — concomitantemente — a ocultação das iniquidades na gestão das receitas governamentais e na seara das despesas financeiras; tanto quanto amplifica o espaço para barganhar exceções político-paroquiais no varejo dos interesses de curto prazo eleitoral.
O equilíbrio nas contas públicas exige que se vá além da seletiva abordagem de ajuste adstrito às despesas primárias, como fez o teto dado pela Emenda Constitucional 95/2016 e como infelizmente parece se repetir agora com a Lei Complementar 200/2023.
É preciso igualmente que se enfrente a iniquidade e a ineficiência na gestão das receitas e que se balize minimamente a repercussão opaca e ilimitada para a dívida pública das despesas financeiras, as quais revelam, entre outras dimensões, o impacto fiscal das decisões do Banco Central no âmbito das políticas monetária, creditícia e cambial.
Ora, para falar de equilíbrio das contas públicas em um sentido, de fato, equitativo, que permita voltar a resgatar os investimentos, fomentar o crescimento econômico, mitigar a desigualdade, bem como buscar o próprio desenvolvimento sustentável no sentido mais amplo, o país precisa resgatar a percepção sistêmica das finanças públicas. Responsabilidade fiscal e social conjugam-se quando efetivamente são reguladas e bem geridas as receitas governamentais, todas as despesas estatais (primárias e financeiras) e a dívida pública.
Para que nosso país volte a promover investimentos e consiga destravar a capacidade de implementar progressivamente os direitos fundamentais à luz da Constituição de 1988, é preciso que façamos a revisão das regras fiscais brasileiras a partir desse prisma ampliado entre receitas, despesas e dívida públicas. De um lado, urge aprimorar a gestão das receitas, buscando torná-las mais progressivas e eficientes; revendo, por exemplo, as renúncias fiscais; enfrentando o estoque volumoso da dívida ativa, que não se arrecada como deveria etc. Há uma inegável disparidade nessa caótica e regressiva matriz tributária brasileira, onde se sobrecarrega a taxação incidente sobre a produção e o consumo ao invés de efetivamente tributar o patrimônio e a renda. Por outro lado, precisamos acompanhar, no mínimo pelo prisma dos princípios da motivação, transparência e proporcionalidade, o impacto causado pelas despesas financeiras sobre a dívida pública. A percepção assimétrica de riscos fiscais tem imposto rotas seletivas de ajuste apenas incidentes sobre despesas primárias, sendo iníquo tal arranjo normativo de regras fiscais, na medida em que, por vezes, promove uma inversão das prioridades constitucionais no ciclo orçamentário nos diversos entes da federação.
Se só há o diagnóstico de risco fiscal no custeio intertemporal dos direitos fundamentais, esquecemo-nos de aprimorar as outras dimensões que também impactam a dívida pública.
Há anos tem-se vilanizado muito o Estado, como se fosse ontológica e aprioristicamente mau gastador. Diz-se que não sabe compreender o seu papel e que o mercado seria sempre o melhor espaço de alocação racional e eficiente, quando, na verdade, a o Brasil precisa aprimorar a qualidade da execução das finanças públicas, mediante elaboração e contínuo monitoramento de um consistente planejamento do ciclo orçamentário que mobilize as expectativas do mercado, que permita a racionalidade alocativa do Estado e que projete o médio prazo.
Falta-nos, em última instância, projetar o horizonte de futuro da sociedade de forma mais clara e mais racional, sem tanta captura de curto prazo, a exemplo do que aconteceu com o orçamento secreto infelizmente nos últimos anos.
A racionalidade alocativa virá se o país conseguir sistematizar e introduzir a noção de ordenação legítima de prioridades, a partir do fortalecimento do planejamento. Todo o debate de qualidade do gasto público e de atuação legítima do Estado brasileiro passa pela integração do planejamento com o orçamento. A partir daí, seria possível tentar consolidar, em estrita consonância com a Constituição de 1988, essa visão sistêmica das finanças públicas, sem que restem vilanizadas ou amesquinhadas, de forma preconceituosa e apriorística, as despesas primárias ou mesmo toda a própria política fiscal.
Ampliar esse debate estrutural é o esforço que temos de empreender, até porque, como já dito, não há reflexão sistêmica sobre as iniquidades na gestão da receita e segue basicamente ilimitada a repercussão para a dívida pública da atuação das políticas cambial, creditícia e monetária a cargo do Banco Central.
O Brasil tem esse profundo desequilíbrio em relação a quem paga e a quem se omite de pagar a conta da vida em sociedade, mesmo quando possui maior capacidade contributiva. A regressividade tributária é, de certa forma, o outro lado da moeda do elevado custo de carregamento da dívida pública, na medida em que a liquidez subtributada dos agentes privados superavitários tem sido muito bem remunerada na dívida pública. Esse me parece ser um dos mais destacados impasses das nossas finanças públicas, o qual acaba por constranger a eficácia dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988.
Sem equidade no regime jurídico das contas públicas, apenas as despesas primárias são alvo de ajuste, donde se explica a pressão colossal pela adoção de uma meta de déficit primário “zero” no PLDO/2024. Assim resta precarizada a própria qualidade dos serviços públicos essenciais e tem sido agravado o endividamento público, em um círculo vicioso de desigualdade social que se reproduz, sedimenta e se invisibiliza por dentro do orçamento público. Cabe, pois, o alerta de que, se o planejamento ordena prioridades incomprimíveis, há de haver uma relação instrumental entre as receitas e esse tamanho constitucionalmente necessário do Estado.
Se houvesse tal clareza acerca do custo de arcar com seus compromissos constitucionais, a gestão da dívida se tornaria mais passível de planejamento intertemporal. Tal norte qualitativo dado pelos eixos do PPA e da LDO (programas de duração continuada e despesas não suscetíveis de contingenciamento) permitiria que o Estado expandisse, de forma contracíclica, seus gastos, para estimular a economia, fazendo os investimentos necessários à retomada do crescimento econômico.
Ter clareza de que, por um lado, há um tamanho constitucionalmente necessário do Estado para manter esse mínimo de direitos fundamentais e, por outro, a carga tributária tem um patamar instrumental a cumprir é esforço que nos permitiria diagnosticar melhor e paulatinamente equacionar alguns dos nossos maiores conflitos distributivos. Assim, dentro do debate do PPA e da LDO, isso se tornaria qualitativamente mais evidente. Essa transparência acerca do custeio necessário do Estado explicitaria quem está se ausentando de participar, conforme a sua capacidade contributiva e quem está sendo prejudicado ao longo do tempo, com serviços públicos precarizados ou passivos judicializados.
Vivemos sob uma disputa balcanizada e irracional, a todo tempo, pelos recursos escassos, sem que seja cumprido sequer o basilar do conjunto de despesas já definidas como programas de duração continuada do PPA e como despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento na LDO. As filas de espera nos benefícios assistenciais e previdenciários, os passivos judicializados, os restos a pagar e as omissões regulamentares são exemplos de preterição na ordenação legítima de prioridades feita pelo PPA e pela LDO.
Afinal, adiar o cumprimento do horizonte civilizatório da CF/1988 tem sido uma forma oculta, deliberada e muito tergiversadora de ajustar as contas públicas no Brasil. Assim acumulamos uma dívida social tão ou mais grave que a sua congênere fiscal, algo mensurável, por exemplo, no déficit de vagas em creches, na fila de milhões de vulneráveis famintos por auxílio alimentar e no próprio adensamento de demandas judiciais.
Quem nega prioridade real à Constituição de 1988 e ao PPA 2024/2027, a bem da verdade, almeja repetir a estratégia recorrente de proclamar de forma meramente retórica a República. Ao fim e ao cabo, tal coro uníssono prega a vilanização da ação estatal — por meio de contracionistas metas fiscais de curto-prazo — apenas para perenizar seu locus de poder no ciclo orçamentário como privilégios invisíveis e naturalizados.
Élida Graziane Pinto é professora da FGV-SP e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.
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