A desmilitância é a cara da direita limpinha, que constrói suas virtudes a partir dos vícios que vê nas esquerdas
18out2023 17h21 (23out2023 16h41)
Por Paulo Roberto Pires, na revista QuatroCincoUm (grupo Folha)
O desmilitante é a cara da direita limpinha que tenta se viabilizar na ressaca do Inelegível. Jovens arrivistas ou veteranos comentaristas, aos deslimitantes não importa o tema: da tragédia em Gaza e Israel ao uso do pronome neutro, seu único objetivo é construir virtudes próprias a partir de vícios alheios, ou melhor, dos vícios que para eles definem as esquerdas.
Sempre alertas, os desmilitantes vendem indulgência reacionária em posts, colunas de opinião, comentários na TV ou palestrinhas histriônicas com forma e fundo tiktoker. Não importa o meio, a mensagem é única: a esquerda é inviável.
O desmilitante opera sobretudo por redução: as esquerdas são, para eles, “a esquerda”. O que determina a hierarquia entre um diretório acadêmico ou um partido histórico é a oportunidade de flagrá-lo em contradições ou patacoadas que sugerem anular o todo pela parte. A desmilitância é o rivotril da má consciência: acalma sem dopar.
Como bom camelô da moderação, o desmilitante apregoa que não é “nem de direita nem de esquerda”. No conforto do centro imaginário onde quer fazer crer que vive, é comum se definir como liberal — o que sempre garante horas e horas de tediosas perorações sobre o verdadeiro liberalismo. Ser expressão do que é verdadeiro é, aliás, uma das incontáveis certezas dos desmilitantes.
No léxico da deslimitância, o conceito fundador é, obviamente, “militante”, sinônimo de radicalismo, agressividade ou, com mais frequência, opinião firme e inequívoca contrária à do moderado de plantão. “Identitário” é o espantalho resultante de movimentos emancipatórios baseados em pertencimento — de raça, de gênero e de classe. “Cancelamento”, fantasia persecutória recorrente, é expressão que extrapola a dinâmica superficial de redes sociais e assume proporções monstruosas.
O desmilitante vive da higienização política dos discursos. Para ele, ideologia é a posição política do outro, já que seu olhar sobre o mundo é tão somente expressão do que é razoável e correto. Talvez por isso, o desmilitante costuma dar instruções de como deve ser o debate e, sempre que pode, atua como árbitro não solicitado da esquerda malvadona.
Na biblioteca desmilitante não pode faltar Francis Fukuyama, aquele que errou na mosca denunciando o “fim da História”. Também tem seu lugar os judiciosos Yascha Mounk e Anne Applebaum, bem como seus tristes epígonos tropicais. E, dependendo da maré, é notável a presença de acadêmicos pouco notáveis, de preferência norte-americanos, como assistentes de palco para números de contorcionismo conceitual.
O que mobiliza especialmente os desmilitantes é a racialização do debate político, face mais visível do tal identitarismo que elegeram como inimigo. Não é difícil imaginar que, para quem se vende como imparcial e neutro, seja pouco aceitável o confronto com posicionamentos estruturados sobre marcadores concretos e palpáveis, vivências e evidências.
Pois no mais das vezes o desmilitante é bem nascido — ou adere com fervor aos valores dos bem nascidos, defendendo-os como se fossem seus. Em Quem matou meu pai, uma radical narrativa político-afetiva que tanto irritou os moderados franceses, Édouard Louis lembra como seus pais, eufóricos, organizaram um fim de semana especial para celebrar o recebimento de um bônus escolar do governo:
Entre aqueles que têm tudo, nunca vi uma família ir à praia comemorar uma decisão política, porque a política não os afeta em quase nada. […] Para os poderosos, na maior parte do tempo a política é uma questão estética: uma forma de pensar, uma forma de ver o mundo, de construir sua persona. Para nós, significa viver ou morrer.
O desmilitante pertence, sem dúvida, à difusa categoria dos estetas da política. Para os cidadãos brasileiros resgatados de Israel e de Gaza, por exemplo, as ingerências diplomáticas do Brasil definiram suas vidas de forma imediata e pragmática. Para os desmilitantes o que importa é conectar Brasília e terrorismo, revisar linguagem diplomática e lançar mão de qualquer outro expediente retórico para que “a esquerda” seja tributária eterna das malversações históricas das esquerdas.
Astrojildo Pereira (1890-1965), fundador do Partidão e o oposto mais bem-acabado do desmilitante, aprendeu com a vida a identificar um movimento muito frequente entre os nem-nem, aqueles que historicamente se orgulham da suposta neutralidade: “Quando chega a hora braba que impõe a cada homem decidir no duro, quase sempre aparecem no outro lado da barricada, sem mais nenhum melindre puritano”.