Está chegando a hora

REPRODUÇÃO

É tão fundo o silêncio entre as estrelas.

Nem o som da palavra se propaga,

Nem o canto das aves milagrosas.

Mas lá, entre as estrelas, onde somos

Um astro recriado, é que se ouve

O íntimo rumor que abre as rosas.”

–José Saramago, poema “É tão fundo o silêncio”

Não há, muitas vezes, nenhuma poesia em viver a vida de uma maneira mais difícil. Mas, eventualmente, ela, a poesia, reside nos detalhes. Quando saí da minha Patos de Minas para estudar, fui morar em Goiânia em um barraco de 12 m² com teto de zinco e chão de vermelhão. Ficava nos fundos de um escritório de arquitetura e era absolutamente impossível ir lá durante o dia, um calor insuportável.

Meu companheiro, à época, era Alberto Caeiro e eu achava, como ele, que “só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”. Ainda não existia o “Livro do Desassossego” e eu seguia ludicamente meu guardador de rebanhos. Era feliz, e sabia, por estar me posicionando no mundo e me oferecendo a ele.

Filho de um boiadeiro semianalfabeto, não temia quase nada. O enfrentar a vida com desassombro era um ato de sobrevivência. Só bem mais tarde compreendi que existia alguma coragem nesse enfrentamento.

Ao longo da vida, fui me colocando ao lado de quem lutava contra a desigualdade. Parecia-me tão óbvio. Cursar direito foi uma posição política. Ser advogado era a única hipótese de tentar ter voz em um mundo cruel e hipócrita. E ser um homem de esquerda não era uma opção minha; era, como Pessoa ensinou, a minha maneira de estar no mundo.

A dor da tristeza do mundo não cabia dentro de um peito que foi criado nas montanhas de Minas Gerais. Era impossível não ter o tal “sentimento do mundo” que não nos permite ser indiferente. Pessoa nos ensinou:

Ser poeta não é minha ambição, é a minha maneira de estar sozinho.

Tantos anos depois, estamos enfrentando um momento delicado na história do país, que foi dividido por um grupo da ultradireita, radical e profundamente ignorante. Com uma fúria messiânica, esse bando, fascista e de alta periculosidade, dominou a cena política e social. Saquearam-nos em nome de uma falsa moralidade.

Bandidos de 5ª categoria. Desonestos, corruptos e vulgares. Indigentes intelectuais. Uma corja que, desprovida de escrúpulos, usou e abusou de mentiras, de verdades inventadas e de uma mídia programada para promover verdadeiro apartheid social. O Brasil foi jogado às trevas.

Agora, vamos testar o grau da nossa maturidade democrática. O relatório da CPI que investigou o Dia da Infâmia, 8 de Janeiro, quando os bolsonaristas explicitaram a tentativa de golpe com a depredação das sedes do Três Poderes, pediu o indiciamento de 61 pessoas por diversos crimes. Dentre os mais comuns estão: associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.

Constam nesse rol o ex-presidente Bolsonaro, 5 ex-ministros do governo fascista, alguns generais –Braga Netto, Augusto Heleno, Eduardo Ramos, ex-comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira– e outras altas autoridades militares.

Como o Supremo Tribunal –Corte que manteve a estabilidade democrática quando dos acenos fascistas e golpistas da turba ensandecida– já começou a condenar alguns denunciados por vários crimes contra o Estado Democrático de Direito, certamente veremos agora a responsabilização dos militares golpistas, dos políticos que tramaram o golpe, dos financiadores e, óbvio, da família e do entorno do ex-presidente Bolsonaro. Espero que identifiquem os advogados e jornalistas que deram o auxílio luxuoso a esses golpistas.

Hoje, temos um quadro definido. As acusações apresentadas contra os golpistas foram pelos crimes de associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e deterioração de patrimônio tombado.

Os primeiros julgados estavam na linha de frente da tentativa de golpe, mas eram os famosos “Zé Ninguém”. Foram condenados a penas de reclusão que variaram de 12 a 17 anos. Pelo fato de ser obrigatória a soma das punições em concurso material, mesmo com a penalidade mínima, o resultado é altíssimo.

Agora, que aguardamos o julgamento dos reais responsáveis pela tentativa de golpe, as punições tendem a passar dos 30 anos de cadeia. Não se pode supor que o Supremo Tribunal Federal condene um golpista sem nome e sem rosto a 17 anos e deixe de incriminar os políticos, empresários financiadores, militares e o chefe da gangue com as penas proporcionais à conduta de cada um.

Quando da transição democrática, o país optou por não responsabilizar criminalmente os facínoras torturadores e assassinos. Criamos um ambiente para o golpismo bolsonarista. Não podemos repetir o erro. O país espera, com maturidade, a condenação de todos os responsáveis pelo desastre desse grupo fascista e golpista. Simples assim. A democracia agradece.

Lembrando-nos do poeta Augusto dos Anjos:

Não enterres, coveiro, o meu Passado. Tem pena dessas cinzas que ficaram; eu vivo dessas crenças que passaram, e quero sempre tê-las ao meu lado!”.

Kakay: Antônio Carlos de Almeida Castro,o Kakay, é advogado criminalista. É natural de Patos de Minas (MG) e formou-se em Direito pela Universidade de Brasília, a UnB. Ao longo da sua carreira, defendeu 80 governadores, 4 ex-presidentes da República, ministros e congressistas.
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