Desde os ataques terroristas do Hamas, o Kremlin não toma partido por palestinos nem por israelenses. Paralelamente, alimenta a narrativa de que “o Ocidente” é o grande perigo – como faz no caso da guerra na Ucrânia.
Publicado em 15/10/2023
Por Juri Rescheto
DW — Bandeira nacional a meio-mastro, um pequeno buquê de cravos com as cores de Israel, azul e branco: cidadãs e cidadãos russos acorrem à embaixada israelense em Moscou para expressar suas condolências às vítimas do atentado do Hamas de 7 de outubro. Policiais conferem seus documentos. A situação é tranquila até o cair da tarde, assim como diante da representação palestina na capital.
“Tradicionalmente, a Rússia cultiva boas relações diplomáticas com ambos os lados, ao mesmo tempo em que mantém uma certa distância”, explica o especialista em Oriente Médio Ruslan Suleymanov, que vive no Azerbaijão. “Essas relações são, em parte, até mesmo de confiança, mesmo depois de a Rússia ter atacado a Ucrânia e a relação com Israel deteriorar-se, até certo ponto.”
Nesse contexto, ele gravou o comentário do ministro do Exterior russo, Serguei Lavrov, em maio de 2022. Referindo-se ao presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, ele afirmou que os “antissemitas mais ferrenhos” seriam, via de regra, os próprios judeus. O governo israelense condenou as palavras de Lavrov: seu então homólogo Jair Lapid classificou-as como “uma declaração imperdoável e ultrajante e um terrível erro histórico”. “No entanto, desde então nada de irreparável aconteceu”, constata Suleymanov.
Declarações do ministro tão Exterior Serguei Lavrov sobre “judeus antissemitas” geraram crise entre Tel Aviv e Moscou – Foto: Aliança AP Foto/imagem
Contatos Kremlin-Hamas intensificados
O mesmo se aplica ao relacionamento com os palestinos, prossegue o especialista: “Esses contatos até mesmo se intensificaram nos últimos tempos. Representantes do Hamas vieram com frequência crescente a Moscou, pela última vez em março deste ano.”
Ele duvida que o Kremlin tenha sido informado sobre os planos de um ataque em massa por parte do grupo radical islâmico Hamas. “Mesmo o serviço de esclarecimento militar israelense ficou totalmente surpreso”, diz o especialista, acrescentando que “não se descartava fundamentalmente em Moscou a possibilidade de tal cenário, mas ninguém contava com tais dimensões”.
A politóloga moscovita Elena Suponina também tem certeza de que a liderança do Kremlin não sabia de nada. Além disso, ela não acredita que a Rússia poderia ter contribuído para evitar o ataque, até por ter outras prioridades “do seu lado ocidental”, no momento, ou seja: a Ucrânia.
Por outro lado, ela supõe que no momento Moscou “esteja realizando esforços” para se coordenar sobre o conflito, sobretudo com seus outros parceiros na região, em especial com o Egito, Emirados Árabes, Catar e Irã. Mas a Rússia não vai tomar partido nem se envolver em “atividades terroristas”. Na verdade, a posição oficial de Moscou é de repudio à atual escalada do conflito entre palestinos e israelenses. O Ministério do Exterior definiu como “o resultado de um círculo vicioso de violência” e fez um apelo à moderação.
O ex-presidente Dmitri Medvedev perdeu muito influência, mas não deixa as teorias de conspiração antiocidente – Foto: Yekaterina Shtukina/dpa/picture aliança
“Ocidente”, eterno bode expiatório do Kremlin
Ao discutir o assunto nas redes sociais, os propagandistas russos defendem basicamente três teses: que os erros do “Ocidente” provocaram a escalada; que as guerras se tornaram normalidade; e que os russos emigrados para Israel (em decorrência da guerra contra a Ucrânia) retornariam agora ao seu país de origem.
O ex-presidente russo Dmitri Medvedev gosta muito de apelar à tese de que “o Ocidente”, acima de tudo os Estados Unidos, seria prejudicado pela intervenção do Hamas. Em seu canal do Telegram, ele afirma que a potência americana é um “player decisivo”, e faz uma ponte geopolítica para a guerra da Rússia contra a Ucrânia.
Segundo o atual vice-presidente do Conselho de Segurança Russo, o conflito do Oriente Médio seria exatamente aquilo “de que seria melhor Washington e seus aliados estarem se ocupando”. Em vez disso, contudo, os “malucos” americanos “se intrometeram conosco, ajudando os neonazistas e jogando dois povos próximos [russos e ucranianos] um contra o outro”.
Suleymanov não leva a sério as palavras de Medvedev: “Ele está tão longe da realidade, há muito tempo não tem mais a menor influência.” E afirma que, embora também o Kremlin defenda que “o Ocidente” estaria provocando tais conflitos intencionalmente, tudo não passa de uma teoria de conspiração, pois na realidade o conflito entre Israel e os palestinos têm motivos bem outros.
Em sua opinião, o Kremlin estaria antes lucrando com a escalada de violência no Oriente Médio, já que “o ataque pelo menos desvia as atenções do que o Exército Russo está fazendo na Ucrânia”. Tudo o mais é propaganda para consumo interno russo – embora a maior parte da população seja indiferente ao conflito no Oriente Médio, considerando-o distante e complicado demais, ressalva o orientalista.
Isso talvez valha para a maioria, mas não para todos. Senão, não teria flores diante da embaixada de Israel em Moscou, nem uma mulher segurando um cartaz de “Não ao terrorismo”. No entanto, ela não manteve a sua posição por muito tempo: pouco depois a polícia a levou embora presa.
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