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PEC 50/2023: retorno à carta ditatorial do Estado Novo (1937)?

Publicado em 03/10/2023 – 7h00 Por Celso de Mello Conjur — A PEC 50/2023, formalizada por iniciativa parlamentar, tem por objetivo alterar “o artigo 49 da Constituição Federal para estabelecer competência ao Congresso Nacional para sustar, por maioria qualificada dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, decisão do Supremo Tribunal Federal transitada […]

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Publicado em 03/10/2023 – 7h00

Por Celso de Mello

Conjur — A PEC 50/2023, formalizada por iniciativa parlamentar, tem por objetivo alterar “o artigo 49 da Constituição Federal para estabelecer competência ao Congresso Nacional para sustar, por maioria qualificada dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, decisão do Supremo Tribunal Federal transitada em julgado, que extrapole os limites constitucionais”.

Essa proposta encontra clara inspiração em cláusula de nítido perfil autocrático inscrita na carta ditatorial do Estado Novo imposta ao país por Vargas, em 10 de novembro de 1937!

Com efeito, o parágrafo único do artigo 96 da Carta Constitucional de 1937 consagrou medida inédita em nosso constitucionalismo, consistente no denominado “recall” judicial, como se constata de seu texto normativo, “verbis”:

“Art 96 – Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República.
Parágrafo único — No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.”

A medida consubstanciada em referida proposta de emenda constitucional (PEC), em claro retrocesso histórico e grave ofensa ao dogma da separação de poderes, atribui ao Congresso competência para sustar a eficácia de decisão do Supremo Tribunal Federal que, embora transitada em julgado, tenha, a critério do Parlamento, extrapolado os limites constitucionais que restringem a atividade jurisdicional!

Ou, em outras palavras, a PEC em questão confere aos órgãos legislativos o poder de superação legislativa (“power of legislative override”) dos julgamentos realizados pela Suprema Corte, transformando o Congresso em anômala instância de revisão das decisões transitadas em julgado proferidas pelo STF!!!

O Congresso, caso venha a promulgar tal proposta, estará claramente infringindo um dos limites materiais — a separação de poderes — que o poder constituinte originário estabeleceu no catálogo dos temas protegidos por cláusula pétrea (CF, artigo 60, $ 4º, nº III).

Isso significa que emendas à Constituição também podem ser qualificadas como inconstitucionais, se e quando transgredirem os limites impostos ao poder reformador do Congresso (ADI 466/DF — ADI 926/DF — ADIN 939/DF , v.g.).

Há a considerar, também, no sistema institucional plasmado no texto de nossa Constituição, que o Supremo Tribunal Federal foi investido, por soberana deliberação da Assembleia Nacional Constituinte, da condição de guardião da intangibilidade da Lei Fundamental da República, o que lhe confere, em matéria de interpretação constitucional, “o monopólio da última palavra”, na conhecida expressão de Gomes Canotilho!

Inegável reconhecer, por tal razão, que compete ao Supremo Tribunal Federal, em sua condição indisputável de guardião da Lei Fundamental, o poder de interpretá-la e de seu texto extrair, nesse processo de indagação hermenêutica, a máxima eficácia possível, em atenção e respeito aos grandes princípios estruturantes que informam, como verdadeiros vetores interpretativos, o sistema de nossa Carta Política, em ordem a fazer prevalecer a força normativa da Constituição, cuja integridade, eficácia e aplicabilidade, por isso mesmo, hão de ser valorizados, em face de sua precedência, autoridade e grau hierárquico, como enfatizam autores eminentes (ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional”, p. 109, item n. 2.8, 2a ed., 2003, Atlas; OSWALDO LUIZ PALU, “Controle de Constitucionalidade”, p. 50/57, 1999, RT; RITINHA ALZIRA STEVENSON, TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. e MARIA HELENA DINIZ, “Constituição de 1988: Legitimidade, Vigência e Eficácia e Supremacia”, p. 98/104, 1989, Atlas; ANDRÉ RAMOS TAVARES, “Tribunal e Jurisdição Constitucional”, p. 08/11, item nº 2, 1998, Celso Bastos Editor; CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, “A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, p. 215/218, item nº 3, 1995, RT, v.g.).

Cabe destacar, bem por isso, tendo presente o contexto em questão, que assume papel de fundamental importância a interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pela Corte Suprema, cuja função institucional de “guarda da Constituição” (CF, artigo 102, “caput”) confere-lhe — repita-se — o monopólio da última palavra em tema de exegese das normas positivadas no texto da Lei Fundamental, como tem sido assinalado, com particular ênfase, pela jurisprudência do Supremo Tribunal:

“(…) A não-observância da decisão desta Corte debilita a força normativa da Constituição (…)” (RE 203.498-AgR/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES).

A circunstância de o STF, na qualidade de “organo di chiusura”, dispor de competência para interpretar o ordenamento constitucional, encerrando, em caráter definitivo, as controvérsias jurídicas a ele submetidas, não significa que suas decisões sejam imunes à crítica, à divergência e ao debate no âmbito da sociedade civil e no plano da comunidade acadêmica, especialmente se se considerar a afirmação de que se vive sob a égide de uma “sociedade aberta dos intérpretes livres da Constituição”, como a ela se refere Peter Häberle.

Inquestionável, desse modo, o reconhecimento, em favor da generalidade das pessoas e das instituições, inclusive dos próprios Poderes da República, de verdadeira “abertura hermenêutica”, que lhes permite discutir o alcance, o significado e a abrangência das cláusulas que compõem o “corpus” constitucional, não lhes sendo possível, contudo, desrespeitar as decisões judiciais, eis que o seu inconformismo com elas tem, no próprio sistema recursal, o meio adequado de buscar-lhes a reforma.

Deputado Ulysses Guimarães, em 1988 – Agência Brasil

Com essa compreensão, é importante destacar, pluraliza-se o debate constitucional, confere-se expressão real e efetiva ao princípio democrático e permite-se que o Supremo disponha de todos os elementos necessários à resolução final da controvérsia, buscando-se alcançar, com tal abertura material, consoante assinala expressivo magistério doutrinário (GUSTAVO BINENBOJM, “A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira”, 2ª ed., 2004, Renovar; ANDRÉ RAMOS TAVARES, “Tribunal e Jurisdição Constitucional”, p. 71/94, 1998, Celso Bastos Editor; ALEXANDRE DE MORAES, “Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais”, p. 64/81, 2000, Atlas; DAMARES MEDINA, “Amicus Curiae: Amigo da Corte ou Amigo da Parte?”, 2010, Saraiva; GILMAR MENDES, “Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade”, p. 503/504, 2a ed., 1999, Celso Bastos Editor; INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO, “As Ideias de Peter Häberle e a Abertura da Interpretação Constitucional no Direito Brasileiro”, “in” RDA 211/125-134, v.g.), a possibilidade de superação da grave questão pertinente à legitimidade democrática das decisões emanadas da Corte Suprema no exercício de seu extraordinário poder de efetuar, notadamente em abstrato, o controle de constitucionalidade.

A única — e fundamental — diferença que existe entre a atuação de nossa Corte Suprema nos processos em que profere o seu julgamento e a possibilidade democrática de ampla discussão social em torno da Constituição, passando, inclusive, pelo “diálogo institucional” entre os órgãos e Poderes constituídos, reside no fato, jurídica e processualmente relevante, de que a interpretação dada pelo Supremo revestir-se-á de definitividade nas causas que julgar, pondo termo ao litígio nelas instaurado, seja com efeito “inter partes” (controle incidental ou difuso de constitucionalidade), seja com efeito “erga omnes” e eficácia vinculante (controle normativo abstrato de constitucionalidade).

É por isso que se atribui ao STF, como precedentemente já realçado, o “monopólio da última palavra” em matéria de interpretação constitucional efetuada pela Suprema Corte nos processos submetidos a seu julgamento, valendo destacar, quanto a esse ponto, no que concerne à capacidade institucional e aos efeitos sistêmicos em tema de exegese da Constituição, a lição do eminente ministro LUÍS ROBERTO BARROSO (“O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, p. 392, item n. 2, 7a ed., 2016, Saraiva), no sentido de que “Cabe aos três Poderes interpretar a Constituição e pautar sua atuação com base nela. Mas, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário”, sempre que se cuidar de matéria sujeita à esfera de competência jurisdicional.

Tais observações enfatizam a circunstância — que assume absoluto relevo — de que não se pode minimizar o papel do Supremo Tribunal Federal e de suas decisões em matéria constitucional, pois tais decisões, em última análise, dão expressão concreta ao texto da própria Constituição.

Cumpre ter sempre em perspectiva que o exercício da jurisdição constitucional, por nossa Suprema Corte, tem por objetivo único preservar a supremacia da Constituição, o que põe em evidência a dimensão essencialmente política em que se projeta a atividade institucional do Supremo — compreendida a expressão “dimensão política” em seu sentido helênico (como apropriadamente a ela referiu-se a eminente ministra CÁRMEN LÚCIA em outra oportunidade) —, pois, no processo de indagação constitucional, reside a magna prerrogativa outorgada à Corte Suprema de decidir, em caráter final, sobre a própria substância do poder.

É preciso, pois, reafirmar a soberania da Constituição, proclamando-lhe a superioridade sobre todos os atos do Poder Público e sobre todas as instituições do Estado, civis ou militares, o que permite reconhecer, no contexto do Estado democrático de Direito, a plena validade da atuação do Poder Judiciário na restauração da ordem jurídica lesada e, em particular — insista-se — , a inteira legitimidade da intervenção do STF, que detém, em tema de interpretação constitucional, e por força de expressa delegação que lhe foi atribuída pela própria Assembleia Nacional Constituinte, o monopólio da última palavra, de que já falava RUI BARBOSA em discurso parlamentar que proferiu, como senador da República, em 29 de dezembro de 1914, em resposta ao senador gaúcho Pinheiro Machado, quando, definindo com precisão o poder de nossa Suprema Corte em matéria constitucional (“Obras Completas de Rui Barbosa”, vol. XLI, tomo III, p. 255/261, Fundação Casa de Rui Barbosa), deixou assentadas as seguintes conclusões:

“A Justiça, como a nossa Constituição a criou no art. 59, é quem traça definitivamente aos dois poderes políticos as suas órbitas respectivas. (…).
No art. 59, é categórica a letra constitucional, estatuindo de acordo com a praxe geral (…) que o Supremo Tribunal conhecerá, em última instância, das causas em que se contestar a validade, assim dos atos do Poder Executivo, como do Poder Legislativo perante a Constituição. Por esta disposição constitucional, a nossa justiça suprema é quem define quando os atos do Poder Legislativo estão dentro ou fora da Constituição, isto é, quando os atos de cada um desses dois poderes se acham dentro da órbita que a cada um desses dois poderes a Constituição traçou.
Ele é o poder regulador, não conhecendo do assunto por medida geral, por deliberação ampla, resolvendo apenas dos casos submetidos ao seu julgamento, mediante a ação regular; mas quando aí decide, julgando em última instância, não há, sob qualquer pretexto deste mundo, recurso para para outro qualquer poder constituído.
(…) Bem conheço o pretexto. A evasiva das causas políticas é um princípio verdadeiro, quando entendido como se deve entender. Indubitavelmente a justiça não pode conhecer dos casos que forem exclusivos e absolutamente políticos, mas a autoridade competente para definir quais são os casos políticos e casos não políticos é justamente essa justiça suprema, cujas sentenças agora se contestam.
(…) Em todas as organizações políticas ou judiciais há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar.
Acaso V. Ex.as poderiam convir nessa infalibilidade que agora se arroga de poder qualquer desses ramos da administração pública, o Legislativo ou o Executivo, dizer quando erra e quando acerta o Supremo Tribunal Federal?
O Supremo Tribunal Federal, Senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade.”

Impende registrar, ainda, a precisa e valiosa lição do eminente e saudoso ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (“Ação Rescisória em Matéria Constitucional”, “in” Revista de Direito Renovar, vol. 27/153-174, 159-165, 2003) , reveladora do papel institucional que se atribuiu ao STF em sua condição político-jurídica de guardião maior da supremacia e da intangibilidade da Constituição e de órgão de encerramento (“organo di chiusura”) das causas decididas pela Corte Suprema:

“O STF é o guardião da Constituição. Ele é o órgão autorizado pela própria Constituição a dar a palavra final em temas constitucionais. A Constituição, destarte, é o que o STF diz que ela é. (…). Contrariar o precedente tem o mesmo significado, o mesmo alcance, pragmaticamente considerado, que os de violar a Constituição (…). É nessa perspectiva, pois, que se deve aquilatar o peso institucional dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, mesmo em controle difuso.”

Esse papel do Poder Judiciário, fortalecido pelo monopólio da última palavra de que dispõe o STF em matéria de interpretação constitucional, nada mais representa senão o resultado da expressiva ampliação das funções institucionais conferidas ao próprio Judiciário pela vigente Constituição, que converteu juízes e tribunais em árbitros dos conflitos que se registram no domínio social e na arena política, consideradas as relevantíssimas atribuições que lhes foram deferidas, notadamente as outorgadas à Suprema Corte, em tema de jurisdição constitucional, como o revela, p. ex., o seguinte julgado:

“A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E O MONOPÓLIO DA ÚLTIMA PALAVRA, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM MATÉRIA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL.
– O exercício da jurisdição constitucional, que tem por objetivo preservar a supremacia da Constituição, põe em evidência a dimensão essencialmente política em que se projeta a atividade institucional do Supremo Tribunal Federal, pois, no processo de indagação constitucional, assenta-se a magna prerrogativa de decidir, em última análise, sobre a própria substância do poder.
– No poder de interpretar a Lei Fundamental, reside a prerrogativa extraordinária de (re)formulá-la, eis que a interpretação judicial acha-se compreendida entre os processos informais de mutação constitucional, a significar, portanto, que ‘A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais incumbidos de aplicá-la’. Doutrina. Precedentes.
– A interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal — a quem se atribuiu a função eminente de ‘guarda da Constituição’ (CF, art. 102, ‘caput’) — assume papel de fundamental importância na organização institucional do Estado brasileiro, a justificar o reconhecimento de que o modelo político-jurídico vigente em nosso país conferiu, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental.”
(MS 26.603/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Não custa relembrar, neste ponto, considerada a essencialidade do princípio constitucional da separação de poderes, a advertência histórica de ALEXANDER HAMILTON (“Publius”), em “O Federalista” (“The Federalist Papers”, nº 78), que acentuava a necessidade de proteger-se o Poder Judiciário (“the least dangerous of the branches of government”) contra a inaceitável submissão institucional a outros Poderes do Estado, em situações aptas a comprometer a própria independência orgânica dos corpos judiciários e a liberdade decisória de seus magistrados.

Celso de Mello é ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal.

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Comentários

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Paulo

03/10/2023 - 19h02

Essa PEC é nitidamente inconstitucional, pelo menos sob o aspecto analisado na matéria (desconheço detalhes), e, uma vez aprovada, será assim julgada pelo STF, quando provocado. Mas entendo que o pano de fundo por trás dessas iniciativas do Legislativo é o crescente ativismo judiciário, de que constitui prova inconteste a tentativa de aprovação do aborto na existência de legislação recepcionada pela CF de 1988, a despeito de oriunda da década de 40 do século passado…Esse ativismo cria uma insegurança muito grande em que o STF se transforma no supremo árbitro da vida política e social do país, e, consequentemente, do destino de milhões de brasileiros, causando desconforto profundo no seio da sociedade…Falta bom senso e os ministros do STF deveriam se ausentar um pouco dos espaços midiáticos e se recolherem ao estudo da Sociologia e Filosofia (na suposição de que já conheçam profundamente o Direito, do que tenho dúvidas, especialmente em relação aos últimos indicados)…

zulu

03/10/2023 - 18h44

O STF bananeiro hoje é uma palhaçada ridicula.


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