No último sábado (23), o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga e o ex-secretário de Atenção Primária Raphael Câmara Parente publicaram uma carta no renomado periódico The Lancet, em que rebateram críticas direcionadas à gestão do Ministério da Saúde durante a pandemia de Covid.
É importante destacar que Marcelo Queiroga liderou o ministério de março de 2021 a dezembro de 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro (PSL).
Na mesma edição, o The Lancet também publicou uma resposta dos autores das críticas, que incluem o professor da FGV Adriano Massuda, o consultor nacional da Opas (Organização Pan-americana de Saúde) e professor da UnB Rafael Dall’Alba, além dos ex-ministros da Saúde André Chioro (2014-2015) e José Gomes Temporão (2007-2011), bem como a demógrafa Marcia Castro, colunista da Folha. Vale lembrar que o periódico The Lancet é reconhecido como uma das principais referências na área médica em todo o mundo.
No artigo original, publicado em fevereiro na mesma revista, os autores propuseram medidas para restaurar a coordenação das ações do Ministério da Saúde após o período de um “governo de extrema direita”. Suas recomendações incluíam o aumento do financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), a redução das disparidades regionais no acesso à saúde e o fortalecimento da atenção primária.
Além disso, eles destacaram as consequências negativas da gestão anterior na área da saúde, como a crise sanitária na Terra Indígena Yanomami, o aumento das mortes por Covid, a deterioração dos indicadores de saúde e o aumento da mortalidade materna nos últimos quatro anos.
Marcelo Queiroga e Raphael Câmara Parente, em resposta, começaram seu texto criticando o que consideraram um “uso pejorativo do termo extrema direita”, que, em sua visão, revelava um viés subjetivo. Eles também alegaram que os autores do artigo original estavam politizando a questão.
Os autores rebateram as críticas argumentando que dados positivos da gestão anterior foram omitidos e afirmaram que Jair Bolsonaro enfrentou a maior emergência sanitária da história mundial e tomou medidas significativas em prol da saúde no país.
Por fim, Queiroga e Parente sugeriram que o artigo dos críticos servia para justificar problemas que teriam surgido no início do novo governo, sem que fossem anunciadas políticas públicas de saúde.
Em resposta, os autores do artigo original afirmaram que as declarações de Queiroga e de seu secretário propagavam informações falsas para criar uma narrativa distorcida e destacaram que, na realidade, a gestão passada representou um fracasso histórico, conforme demonstram dados e fatos históricos.
“A resposta catastrófica do governo carrega uma grande responsabilidade em milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas. A campanha [do governo] desencorajou ativamente as medidas protetoras, como o uso de máscaras e o distanciamento social”, afirma o texto.
Eles argumentaram que o ex-presidente minou a confiança nas vacinas e promoveu o uso de medicamentos sem eficácia comprovada. Além disso, alegaram que a falta de planejamento na campanha de vacinação contra a Covid resultou na perda de milhões de doses de vacina, causando um prejuízo estimado em R$ 2 bilhões aos cofres públicos.
No sábado (23), Queiroga declarou que os autores eram “militantes do PT” e que ainda não havia tido a oportunidade de ler a réplica. Quando questionado sobre os pontos mencionados no texto, o ex-ministro argumentou que o governo Bolsonaro havia recebido o Ministério da Saúde em um estado “destruído” pelas gestões anteriores do PT.
Quando perguntado sobre as ações da gestão Bolsonaro na área da saúde, Queiroga mencionou o aumento no número de leitos de UTI, passando de 23 mil para 30 mil. No entanto, é importante observar que esses leitos de UTI Covid foram estabelecidos durante o auge da pandemia e, posteriormente, uma portaria publicada em 31 de dezembro de 2021 resultou na desativação da maioria desses leitos, deixando apenas cinco leitos adultos e cinco pediátricos por hospital para pacientes.
Quanto às mortes durante a pandemia, o ex-ministro indicou que poderia ter havido um excesso, mas argumentou que o Ministério da Saúde não era o único responsável, pois atribuiu parte da responsabilidade aos estados e municípios.
Sobre esse ponto, Marcelo Queiroga alegou que o governo federal foi “proibido de agir por uma prerrogativa do STF [Supremo Tribunal Federal]”, referindo-se à decisão de abril de 2020 do Supremo, que determinou que estados e municípios tinham autonomia para estabelecer medidas de combate à pandemia. No entanto, é relevante destacar que essa decisão não restringiu a atuação do Ministério da Saúde.
O ex-ministro também negou atrasos na campanha de vacinação e argumentou que a alta mortalidade durante a pandemia se deu devido à natureza da própria pandemia. Ele teria afirmado que se considerarmos as taxas per capita, o Brasil se saiu muito bem.
Até a última terça-feira (19), o Brasil registrou 705.645 óbitos por Covid-19. Desses, 412.880 ocorreram entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 2021, período em que as vacinas já estavam disponíveis. De acordo com o Our World in Data, um painel que reúne estatísticas globais, o Brasil é o segundo país com o maior número absoluto de mortes por Covid-19 e concentrou 10% das mortes globais pela doença, apesar de ter apenas 2,9% da população mundial.
“Faz parte da retórica da extrema direita dizer isso. E dizer que temos um viés político, evidentemente, todo mundo tem, mas em primeiro lugar, no nosso artigo original, colocamos os dados, os fatos, diferente do que eles fazem”, disse Adriano Massuda, da FGV.
“Não existe isso de não ser responsabilidade. Está na Constituição que o SUS é tripartite, os entes têm autonomia mas é compartilhado”, afirmou.
De acordo com Márcia Castro, responsável por liderar pesquisas sobre o aumento alarmante da mortalidade e a queda da expectativa de vida no Brasil durante a pandemia de Covid, a carta divulgada pelo ex-ministro é simplesmente um monumento à incompetência da gestão anterior. Segundo ela, “Nós usamos informações e dados, qualquer pessoa com acesso a um computador pode verificar que o que eles dizem é falso”.