Por que a violência da PRF está aumentando?

Eraldo Peres/AP/picture Alliance

Morte de Heloisa do Santos não é caso isolado. Mudanças promovidas na gestão de Bolsonaro, além da narrativa armamentista do ex-governo, foram fundamentais para desvirtuar a Polícia Rodoviária Federal.

Publicado em 22/09/2023

Por Guilherme Henrique

DW — A morte de Heloisa do Santos, de 3 anos, no Rio de Janeiro, numa ação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) reacendeu o debate sobre os excessos de crimes pela corporação nos últimos anos. A menina foi baleada em 7 de setembro no carro da família na Baixada Fluminense. Levada ao hospital, ela não resistiu aos ferimentos. Há relatos de que policiais envolvidos no caso foram planejados para intimidar parentes da vítima no hospital. O caso está sendo investigado.

A morte de Heloisa não é um caso isolado. Em maio do ano passado, uma operação da PRF em conjunto com a Polícia Militar deixou 23 mortos na Vila Cruzeiro, também no Rio. A ação foi investigada pela Justiça Militar do estado e pela própria corregedoria da corporação. Ainda não se qualificou a conclusão do inquérito na justiça. Já as apurações da PRF foram arquivadas sem denúncia.

No mesmo período, em outro caso emblemático: Genivaldo de Jesus foi morto asfixiado dentro de uma viatura da corporação em Sergipe. O processo de investigação da Corregedoria da PRF, concluído em agosto deste ano, recomendou a demissão dos agentes envolvidos, ratificada posteriormente pelo ministro da Justiça, Flávio Dino.

O ordenamento de atribuições da corporação diz que a Polícia Rodoviária Federal é responsável por realizar o patrulhamento ostensivo, aplicar e arrecadar as multas impostas por infrações de trânsito, executar serviços de prevenção, atendimento de acidentes e salvamento de vítimas, realizar perícias, formular boletins de ocorrências em questões relacionadas a trânsito, entre outros tópicos.

“Há também um papel de fiscalização, blitz, sobretudo no combate ao tráfico de drogas, armas e munições. Em tese, ela deve ficar nas rodovias, principalmente federais, guardando nossas fronteiras”, destaca o cientista político Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) no Rio de Janeiro.

“Parece-me que se nós olharmos para esses casos de violência percebemos que a PRF tem deixado de cumprir com as suas reais atribuições”, acrescenta o antropólogo Lenin Pires, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (IAC/UFF).

Desvirtuamento sob Bolsonaro

Duas medidas adotadas durante o governo do ex-presidente de Jair Bolsonaro são fundamentais para entender o acirramento na violência do órgão. A primeira foi editada em 2019 pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, que autorizou a PRF a atuar em operações conjuntas com outras polícias de natureza ostensiva, investigativa e de inteligência para cumprir mandatos de busca e apreensão e coibir a prática criminosa. A portaria ampliou o campo de atuação da corporação.

Dois anos depois, André Mendonça, na época ministro da Justiça, revogou a portaria editada por Moro. Ele retirou a prerrogativa das operações investigativas, ostensivas e de inteligência, mas divulgou a liberação para operações conjuntas e o ingresso em locais alvos de mandatos de busca e apreensão com decisão judicial.

As mudanças constantes e a indefinição sobre os limites das portarias deram margem para ações que extrapolam os limites da PRF. A narrativa armamentista que domina a gestão bolsonarista, assim como sua tentativa de ingerência sobre as forças de segurança, também se desenvolve para desvirtuar a PRF de suas obrigações.

“A primeira tentativa de aparelhamento aconteceu na Polícia Federal, mas não foi possível. Na PRF o discurso bélico adentrou com mais força”, comenta Nunes.

“Esse movimento de cooptação mostra uma fragilidade institucional de uma corporação que não é de elite, diferentemente da PF. Falta uma identidade mais bem delineada à PRF, o que consequentemente poderia alterar esse quadro de interferências”, complementa o jurista Guilherme Assis de Almeida, da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP)

Almeida relembra a atuação da PRF no segundo turno das eleições no ano passado, quando o então diretor-geral, Silvinei Vasques , alinhado a Bolsonaro, teria dificultado o tráfego de veículos em cidades do Nordeste para impedir que eleições de Lula pudessem votar. Silvinei está preso desde 9 de agosto e é investigado pelo uso de máquina pública para interferir no pleito.

Durante o período de transição de governo, em novembro do ano passado, o grupo de trabalho responsável pela Justiça e Segurança Pública cogitou uma atuação mais restrita da PRF, mas não se sabe que medidas foram colocadas em prática ao longo dos quase dez meses de governo . Somente neste ano, oito mortes foram registradas em confrontos com agentes da PRF. Em 2022, foram 44.

“Temos visto desde 2017 um crescimento desse apelo bélico no controle da vida social. É uma militarização dos discursos sobre segurança pública que acaba por agregar todas as polícias, não só a PRF”, ressalta Pires.

Roteiro do caos

A violência que tem marcado a PRF acontece, sobretudo, em incursões nas favelas ou bairros pobres, e o histórico de possíveis abusos vai além das ações envolvidas em Genivaldo, Heloisa ou no massacre na Vila Cruzeiro.

Em 2021, 26 pessoas foram mortas em Varginha numa operação conjunta da PRF com a Polícia Militar de Minas Gerais contra o Novo Cangaço. Em março do ano passado, uma corporação atuou com o Batalhão de Operações Especiais (Bope) e a PF no Complexo do Chapadão, zona norte do Rio. Os policiais rodoviários responderam por três das seis mortes no local.

“A PRF está inserida no contexto da política policial que nós temos no Brasil atualmente. Uma polícia despreparada e que foi treinada a partir do conjunto de práticas violentas que nós já conhecemos. Ela utiliza essas práticas contra os segmentos sociais mais desfavorecidos, preferencialmente pobres e negros”, analisa Pires.

Esse discurso, pondera Nunes, é reforçado na suposta “guerra às drogas”. “Há essa justificativa de que as drogas cheguem às favelas pelas rodovias e que, portanto, esse cenário poderia justificar a alta letalidade. Isso só mostra a necessidade de esclarecer quais são as reais atribuições da PRF.”

O cientista político também argumenta que os oficiais da PRF “não têm treinamento para realizar operações conjuntas”. “Os sistemas de inteligência inexistem. É tudo absolutamente desarticulado. Como combater o crime dessa forma?”, questiona.

Mudanças possíveis

Em agosto, quando assinou o despacho que demitiu os policiais envolvidos na morte de Genivaldo, Flavio Dino deu prazo de 120 dias para que a corporação revise a “doutrina policial e manual de procedimentos operacionais da instituição, a fim de identificar eventuais falhas ou lacunas. ”

A corporação deveria ainda instituir, até o fim do mês, uma coordenação dedicada aos direitos humanos. A divisão será liderada pela policial Liamara Cararo Pires, que pretende desenvolver e rever diretrizes relacionadas ao uso da força. Também foi criada uma comissão especializada em direitos humanos para ajudar na formação de agentes da Universidade da Polícia Rodoviária Federal.

Guilherme Assis de Almeida defende que membros da PRF usem câmeras corporais – o projeto para implementação do item está em curso. “O precisa policial prestar contas da sua atuação.”

Nunes reforça a necessidade de um plano nacional de segurança pública que envolva não apenas a PRF, mas todas as outras corporações em nível federal e estadual, a fim de evitar novos massacres e operações desarticuladas. “O contexto de criminalidade deixou de ser local. Ele tem abrangência nacional. O PCC não está só em São Paulo, assim como o Comando Vermelho também se protege”.

“Quais são as normas da PRF? Isso precisa ficar claro rapidamente”, pondera Pires. “Outro fator importante é buscar dentro da própria organização os policiais que desejam travar uma batalha interna para constranger e punir disciplinarmente agentes obscurantistas que atuam à revelação da lei”, acrescenta o antropólogo.

Cláudia Beatriz:
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