Nota em defesa da descriminalização do aborto no Brasil

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Notas das autoras que assinam a ADPF 442 à imprensa

Brasília, 20 de setembro de 2023.

Acompanhamos com atenção o julgamento da ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal do Brasil. Como advogadas da ação, representamos milhões de mulheres que, em algum momento da vida, já fizeram um aborto. A cada ano, meio milhão de mulheres abortam no Brasil.

1. Este é um momento histórico único para se descriminalizar o aborto no Brasil. O tempo das mulheres é sempre o do instante, pois a cada minuto uma mulher aborta no Brasil. A mulher que aborta é comum, está em todas as classes sociais, religiões e níveis educacionais. Há, no entanto, uma concentração entre as mulheres mais pobres, negras, e das regiões Norte e Nordeste do país. A criminalização do aborto é a face mais perversa das desigualdades brasileiras, pois o impacto na saúde pública é mais cruel entre as mulheres mais vulneráveis.

2. O tempo da vida das mulheres e meninas é o agora. Se o aborto é um problema de saúde pública para todas as mulheres e pessoas que podem engravidar, sabemos que impacta desproporcionalmente meninas e mulheres negras e periféricas. Uma mulher negra tem 46% mais chances de fazer um aborto que uma mulher branca. O aborto é também um problema das juventudes: uma a cada duas mulheres fez um aborto antes dos 19 anos. Dessas, 6% antes dos 14 anos. São meninas que tiveram a infância atravessada por uma violência sexual, cometida na maioria das vezes em um espaço que deveria ser de cuidados e proteções: os violentadores são tios, avós, pais e padrastos. A criminalização do aborto impõe uma atmosfera de medo e estigma inclusive entre as pessoas com dever de cuidado dessas meninas em hospitais ou delegacias. Eventos trágicos recentes com meninas ganharam visibilidade nacional demonstrando a perversidade da criminalização e as barreiras de acesso aos serviços de aborto legal.

3. O Brasil é um dos países com leis mais cruéis para saúde sexual e reprodutiva no mundo. Aborto legal e seguro é uma necessidade de saúde e por isso deve ser cuidado com políticas de saúde e não controlado por políticas criminais. Descriminalizar uma necessidade em saúde é afirmar que a Constituição Federal deve garantir o direito à vida, à dignidade, à igualdade para todos e todas que necessitarem de cuidados. Provocamos o Supremo Tribunal Federal ainda em 2017 e seguimos na espera. A experiência da tragédia que vivemos durante a pandemia da Covid-19 nos mostrou que a corte está preparada para compreender questões constitucionais de saúde pública baseadas nas melhores evidências científicas. Nossos argumentos são sobre a violação de princípios constitucionais, e nossa tese está amparada em evidências de saúde pública nacionais e internacionais, validadas pela comunidade científica.

4. O aborto não pode ser tema para punir ou castigar, mas sim para cuidar, proteger e reduzir danos. Em 19 de setembro, o SUS comemorou 33 anos de existência. Com o maior sistema de saúde pública e universal do mundo, temos muito o que comemorar.

Mas ainda há muitos desafios, e um deles é o de garantir um retorno da centralidade da defesa dos direitos das mulheres, meninas e outras pessoas com capacidade de gestar. Esta certamente é uma matéria que muitas nações voltaram a atenção no Brasil, em particular após o retrocesso da corte dos Estados Unidos. Neste momento, representantes do Estado Brasileiro estão na Assembléia Geral da ONU. Proteger igualdade de gênero, saúde e bem-estar são alguns dos compromissos firmados para a agenda 2030. A OMS já reconhece e recomenda que mulheres e meninas devem ter direito ao aborto seguro e planejamento reprodutivo como parte dos cuidados em saúde.

5. Em 20 de setembro, organizações da sociedade civil brasileira fizeram um apelo ao Conselho de Direitos Humanos da ONU para a descriminalização do aborto no Brasil. O argumento das entidades foi que “O aborto inseguro é um problema de saúde pública que agrava desigualdades e prejudica jovens mulheres negras de forma desproporcional”. Recente estudo mostrou que a probabilidade de uma mulher negra fazer um aborto é 46% maior que uma mulher branca no Brasil. Dadas as condições de insegurança pela ilegalidade no Brasil, há riscos aumentados para as mulheres negras de adoecimento e morte.

6. Acreditamos que esta será uma oportunidade de o Supremo Tribunal Federal mostrar que está em harmonia a entendimentos internacionais de que as cortes são legitimadas para o enfrentamento do aborto como uma questão de saúde pública e direitos fundamentais. A corte da Alemanha decidiu sobre este tema. Recentemente, as cortes latino-americanas têm muito a ensinar ao mundo e ao Norte Global. Colômbia e México são exemplos recentes que mostraram o quanto, em repúblicas democráticas, cabe também às cortes a decisão sobre o direito ao aborto como direito à saúde, à vida, igualdade de gênero e igualdade racial, e a estar livre de tortura.

7. Nós, autoras da ADPF 442 e representantes da vontade de milhões de mulheres no Brasil, esperamos que as lições aprendidas pela tragédia da Covid-19, que o exemplo das cortes latino-americanas para a descriminalização do aborto e a realidade de grande parte dos países com democracias sólidas em que o aborto é tratado como uma necessidade de saúde seja incorporado na decisão da Suprema Corte brasileira. Estamos seguras que a decisão dos ministros será fundamentada nas melhores evidências científicas e melhores argumentos constitucionais, como direito à dignidade, à cidadania, à não discriminação, à vida, à igualdade, à liberdade, a não sofrer tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar, todos previstos na nossa Constituição Federal de 1988.

8. O Brasil é uma democracia laica. É com o espírito de respeito à laicidade e à vida das mulheres e meninas que o Supremo Tribunal Federal deve iniciar seus trabalhos para uma decisão histórica de reparação das desigualdades de gênero, classe e raça causadas pela injusta criminalização do aborto.

Assinam este documento as advogadas do PSOL-Partido Socialismo e Liberdade e ANIS: Instituto de Bioética, autoras da ação:
Gabriela Rondon e Sinara Gumieri Luciana Boiteux e Luciana Genro

Redação:
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