Por Jacqueline Muniz
Foi sancionada a lei 10.100, de 12/09/23, que autoriza os policiais penais fazerem policiamento ostensivo no programa Segurança Presente por meio do RAS. O regime adicional de serviço (RAS), conhecido como o “bico oficial”, é um sistema de compra horas dos policiais para o seu sobre-emprego em atividades excepcionais e convencionais de policiamento.
Além de consumir o descanso da folga com oferta de ganhos extras aos policiais, a rotinização do RAS permite adiar a modernização organizacional das polícias, sobretudo o planejamento e a gestão operacional e, por sua vez, o regime de escalas de trabalho em vigor. A combinação das escalas praticadas com as atividades meio e fim desaparecem com os policiais encolhendo as capacidades ostensiva e de investigação antes mesmo destes serviços chegarem às ruas.
Bem, o ingresso dos atuais policiais penais neste sistema de caça-níquel voluntário com suspensão de folga, com sobre-trabalho e acúmulo de estresse quando usado regularmente pelos servidores, é, de fato, um tapa sol com peneira. Serve como aquela gasolina batizada que engasga o motor da segurança pública e do policiamento comprometendo a cobertura ostensiva da PM. Mas por que a lei mostra inadequada se a ideia de “por mais polícia na rua” e “dar mais sensação de segurança” usando os policiais penais parece, à primeira vista, tão bem-intencionada?
Caindo na real, o máximo que a polícia penal, com cerca de 5 mil agentes, pode colocar nas ruas diariamente para se improvisarem no policiamento, e na base do elevado sacrifício, é 20% de sua capacidade disponível, o que corresponde, considerando o trabalho diuturno do policiamento, a tão somente 250 policiais penais espalhados por toda a região metropolitana do Rio ou nos locais onde têm o Segurança Presente.
Isto é o mesmo que colocar uma agulha cega no palheiro que os 45 mil PMs têm que policiar. Trata-se de mais um problema para a PM administrar nas ruas, a saber, o arremedo ostensivo, a bateção de cabeça e as carteiradas entre os agentes armados. Em termos concretos, a conta que não fecha do suposto reforço de policiamento é mais ou menos a seguinte: o governo manda para rua 2 policiais penais improvisados ao mesmo tempo que tira das ruas 10 PM para tomarem conta das cadeias pelo lado de fora.
A sociedade tem que estar ciente de que a polícia penitenciária do Estado tem um efetivo aquém das reais necessidades do sistema prisional, isto é, que seja efetivamente capaz de cobrir todas as cadeias do Estado sem déficit de pessoal. Ressalte-se, aqui, que só a bizarrice ultrapassada da “cidade carcerária de Bangu” possibilita uma circulação diária de mais de 30 mil pessoas entre funcionários, prestadores de serviços, visitantes, presos etc., cujos fluxos consomem recursos elevados de segurança prisional.
Ressalte-se, também, que o sindicato dos policiais penais, diante dos gargalos do sistema penitenciário com superlotação e da defasagem de efetivo, reivindica faz tempo a abertura de concursos para suprir mais de 1000 vagas, para que se possa fazer frente à realidade do trabalho de custódia de presos e segurança. Como este cobertor curto vai poder cobrir a PM nas ruas?
Há também que discutir, de forma ampla e transparente, se a alocação de policiais penais na rua corresponde a um desvio de finalidade que não tem base constitucional, legal e técnica para fazer policiamento ostensivo. No policiamento armado não se acochambra, não sendo recomendado colocar um generalista para fazer cirurgia nas emergências das ruas.
Com este arremedo de complementação de recurso ostensivo, pode-se perder capacidade especializada para fazer segurança e custódia prisionais plenas, recém adquirida com a aquisição do status de policial penal, sem ganhar a devida competência tático-operacional para o policiamento ostensivo, que não se adquire da noite para o dia. Tem-se, com isso, o estímulo ao amadorismo estatal com arma na mão tanto na cadeia quanto nas ruas.
É claro que um dos resultados previsíveis com este tipo de arremedo de policiamento é o abuso do poder de polícia, o mal uso da autoridade e uso excessivo da força contra o cidadão. Tudo isso, por obvio, contribui para arranhar ainda mais a imagem da PM já bastante enxovalhada com as altas taxas de letalidade e vitimização policiais e denúncias frequentes de corrupção.
Pagar hora extra para policial penal fazer policiamento, como se as organizações de força fossem todas a mesma coisa, é aumentar a insegurança nas cadeias e comprometer o policiamento ostensivo. Imagine que o PM, já cansado de guerra e da desconfiança popular, além de policiar os cidadãos e o seu perímetro de atuação terá, ainda, que virar babá de agente da lei despreparado e sem competência legal e técnica para atuar na rua. Policial penal improvisado na rua tende a virar soldadinho de chumbo, vigia de cone e de viatura e chamariz de B.O.
É preciso deixar claro que construção das competências para ser polícia de rua – conhecimentos (saber), habilidades (saber-fazer) e atitudes (saber-ser) – não se resolve com um breve treinamento previsto em lei.
A profissionalização policial – uma profissão decisionista que exige mais cabeça do que músculo, requer formação continuada orientada por uma política de polícia e uma definição legal, normativa e procedimental de seu mandato no que este tem de missão exclusiva e/ou partilhada com outras agências. Desse jeito não se terá melhora da segurança nas ruas e ainda terá piora na segurança nas cadeias. Desse jeito a lei serve para turbinar a carteira de policial penal na segurança privada e (i)legal.
Cabe insistir que não se deve improvisar com meios de força cuja razão de ser é fazer uso comedido e autorizado de meios coercitivos para sustentar as regras democráticas do jogo da ordem pública. Por isso, não se pode ter agentes armados na rua sem competência constitucional delimitada, inseguros juridicamente e que tremem a mão taticamente.
Se é para fortalecer o policiamento ostensivo para a população, ampliando a capacidade e cobertura ostensivas da PM já saturadas, o adequado é comprar a folga dos policiais penais para eles assumirem integralmente o policiamento das cadeias pelo lado de fora dos muros. E, deste modo, liberar uma quantidade elevada de PMs que hoje são consumidos como sentinelas móveis, segurando muro de cadeia, enfim, policiando o entorno das prisões.
Jacqueline Muniz é professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense