Cresce o número de denúncias de violência contra a mulher, aponta pesquisa
Estudo da FGV Direito Rio analisou como o sistema penal lida com os casos de violência de gênero, desde a ocorrência até uma possível sentença
FGV — Apesar de a maioria dos casos de violência contra a mulher ainda serem denunciados em delegacias de bairro, o número de atendimento desses casos em delegacias especializadas vem aumentando nos últimos anos. Dados recentes de um estudo conduzido pela Fundação Getulio Vargas, para investigar como o sistema penal lida com os casos de violência de gênero no Rio de Janeiro, indicam que 43,89% desses casos foram notificados em unidades especializadas em lidar com a violência contra a mulher, contra 55,76% de casos registrados em delegacias distritais, no ano de 2021. Em 2013, a procura pelas delegacias especializadas era de 33%, o que indica um aumento por parte da população em procurar atendimento adequado na hora de denunciar este tipo de ocorrência.
Para encontrar esses resultados, pesquisadores da Escola de Direito do Rio de Janeiro (FGV Direito Rio) realizaram um levantamento com base nos dados mais recentes do Instituto de Segurança Pública (ISP), do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), datados de 2012 a 2021. Dentro dessas bases de dados, que possuem as informações mais recentes neste âmbito, foram investigados casos de violência de gênero como ocorrências de feminicídio, lesão corporal motivada pela condição de sexo feminino e qualquer delito enquadrado na Lei Maria da Penha, que em 2023, completa 17 anos.
De acordo com Afonso da Silva, o aumento pela procura de unidades especializadas para lidar com violência de gênero pode ser atribuído tanto ao próprio estímulo da vítima em buscar um atendimento mais adequado para este tipo de situação, quanto a própria polícia, que pode estar encaminhado os casos para as delegacias apropriadas para lidar com essas ocorrências. Contudo, segundo o pesquisador, ainda há um longo caminho a ser trilhado, sobretudo no que diz respeito a integração dessas informações.
“A integração dos dados em bases de diferentes instituições é um ponto a ser aprimorado no combate à violência de gênero. A maioria dos bancos de dados possuem lógicas distintas e não convergem entre si, o que dificulta perceber o fluxo de como ocorre na prática o enfrentamento a violência de gênero dentro do âmbito penal”, alertou Silva.
Arquivamento dos casos de violência contra a mulher
O pesquisador destacou ainda que o número de arquivamentos desses casos é preocupante, chegando a se equiparar, ou mesmo a superar, a própria quantidade de denúncias. “Ao analisar dados do Ministério Público e do TJRJ, vemos que únicos casos em que o número de denúncias é maior que o de arquivamento são aqueles relacionados a feminicídio, com 40% de denúncias contra 4% de arquivamento. Já em relação a lesão dolosa, ou seja, com intenção de agredir, os arquivamentos desses casos chegam a 53% superando o número de denúncias que representam 44% nas bases de dados analisadas”, explicou.
Outro caso de violência que chama atenção diz respeito as ameaças. Enquanto há 17% de registro de denúncias, 35% desses casos chegam a ser arquivados pelo MPRJ, o que pode indicar uma atenção maior por parte do sistema penal aos casos mais graves de violência, como feminicídio, mas um longo caminho a trilhar em relação a enfrentar outras ocorrências como injúrias, ameaças e agressões.
Nesse sentido, a pesquisadora Twig Lopes, que esteve à frente de uma outra vertente deste estudo, dedicada a identificar e analisar normas, leis e decretos para entender como o judiciário lida com os casos de violência de gênero, destaca a importância de garantir a efetividade de políticas públicas.
“Existem diversos desafios a serem contornados no enfrentamento a violência contra à mulher. Um desses desafios é a subnotificação dos casos, que muitas vezes está relacionada a naturalização da agressão contra mulheres, acompanhado do avanço do neoconservadorismo no Brasil. Por isso, é necessário haver informações de fácil acesso, retirar as mulheres vítimas de violência de situações de risco e garantir a punição por parte dos agressores”, declarou a pesquisadora, ao complementar que os centros de referência e espaços de assistência social são fundamentais para proteger mulheres em situação de vulnerabilidade.
Ponto de vista dos profissionais que atuam no combate à violência de gênero
No intuito de entender como ocorre o fluxo desses casos na rotina do sistema penal, uma parte deste estudo também buscou entrevistar policiais, promotores, juízes, entre outros atores-chaves do Judiciário. No total, foram 35 entrevistas realizadas, que deram origem a mais de 500 páginas transcritas.
De acordo com a pesquisadora Tamires Alves, muitos dos entrevistados ressaltaram que as ferramentas tecnológicas, como aplicativos e plataformas online, têm auxiliado bastante na realização de denúncias e na proteção das mulheres de uma forma geral.
“Essas ferramentas não podem ser evidenciadas para não tirar a confidencialidade que é tão importante para continuar garantindo a proteção contra violência de gênero, mas elas possuem um papel fundamental. Outro ponto importante é que mulheres atendidas por outras mulheres costumam se sentir mais acolhidas. Além disso, o público feminino é bastante ativo no combate à violência de gênero dentro do sistema penal e costuma pensar em maneiras mais eficazes de elaborar e executar esses serviços”, disse Alves.
A pesquisadora também ressaltou que apesar de serem ofertadas formações específicas para lidar com a violência de gênero, no Judiciário não há uma obrigatoriedade de formação nesta área. “Além de intensificar este tipo de formação no sistema penal, é urgente promover uma maior cooperação entre as instituições para lidar com esses casos”, acrescentou.
Fernanda Prates, pesquisadora da FGV Direito Rio, que coordenou o estudo junto ao pesquisador Thiago Bottino, ressalta a importância do Agosto Lilás enquanto campanha para combater a violência doméstica e familiar contra a mulher. Além disso, a professora reiterou a relevância da Lei Maria da Penha, em um contexto no qual a violência de gênero vem apresentando dados cada vez mais alarmantes no país inteiro.
“Este estudo faz parte de uma série de pesquisas científicas da FGV Direito Rio, que busca investigar temas relevantes sobre a segurança pública no sistema penal, a exemplo da pesquisa sobre integração da segurança pública, outra sobre o impacto das novas tecnologias no sistema penal e este estudo sobre o enfrentamento à violência de gênero”, introduziu Prates.
A professora explica que em todos esses estudos foram realizados trabalhos empíricos direcionados em três eixos: “o primeiro é mais normativo, ou seja, investiga o arcabouço que rege as políticas de enfrentamento a violência de gênero no Brasil. A segunda vertente é direcionada a entender como se dá este fluxo, desde a chegada da ocorrência até uma possível sentença. Por fim, a parte qualitativa, é um diferencial do nosso estudo que busca entender como as pessoas que estão no dia a dia do sistema penal atuam diante dessas ocorrências”.
A pesquisa também apontou possíveis caminhos para orientar o sistema penal a lidar com esses casos de forma mais eficaz. Os resultados deste estudo deram origem a um livro que pode ser acessado gratuitamente neste link.