O filósofo Roberto Mangabeira Unger, conhecido como conselheiro e influente figura na equipe de Ciro Gomes, ex-candidato à Presidência pelo PDT, surpreendeu ao anunciar sua desfiliação do partido. Em uma entrevista ao Estadão, Unger fez críticas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e manifestou sua insatisfação com a direção do PDT, alegando que o partido estava adotando uma postura “passiva” em relação ao governo e carecia de um projeto para o Brasil.
Histórico no PDT
Mangabeira Unger tinha uma longa associação com o PDT, tendo sido conselheiro de Leonel Brizola, o fundador do partido. Ele também ocupou a posição de ministro de Assuntos Estratégicos da Presidência da República durante o segundo mandato de Lula em 2007 e novamente no segundo mandato de Dilma Rousseff em 2015. Durante as eleições presidenciais, ele desempenhou um papel influente na formulação das ideias apresentadas por Ciro Gomes, particularmente em relação à necessidade de um projeto nacional de desenvolvimento.
Críticas ao governo Lula
Em sua entrevista, Unger criticou a gestão de Lula, alegando que o governo atual carece de um projeto claro para o país. Ele argumentou que o governo estava se alinhando de maneira “passiva” com os interesses financeiros e que suas políticas se baseavam em uma combinação de “pobrismo” (distribuição de assistência social) e “rentismo” (domínio dos interesses financeiros sobre a produção). Ele também expressou descontentamento com as viagens internacionais de Lula, afirmando que o presidente parecia desinteressado pelo Brasil.
Saída do PDT
Mangabeira Unger enfatizou que sua decisão de deixar o PDT não estava relacionada a Ciro Gomes e que ele estava agindo por sua própria convicção. Ele também esclareceu que a decisão não antecipava qualquer posicionamento futuro de Ciro Gomes em relação à política. Ele expressou sua preocupação com a falta de um projeto nacional produtivista e capacitador no Brasil e acredita que a nação precisa encontrar ou criar lideranças capazes de enfrentar os desafios atuais.
Projetos para o Brasil
Unger enfatizou a necessidade de um projeto nacional de desenvolvimento para o Brasil, que envolvesse a inclusão da economia do conhecimento em todos os setores e regiões do país. Ele argumentou que o país precisa se afastar do modelo tradicional de indústria e investir na criatividade e na energia empreendedora que ele vê em muitos brasileiros. Ele afirmou que o projeto ideal seria transformar esse dinamismo em flexibilidade preparada, mas argumentou que o Brasil atualmente está perdendo essas oportunidades devido a uma abordagem excessivamente focada em compensações e na submissão aos interesses financeiros.
A saída de Mangabeira Unger do PDT e suas críticas ao governo Lula destacam as divisões e as complexidades políticas que moldam o cenário político brasileiro, à medida que o país enfrenta desafios significativos em seu caminho rumo ao desenvolvimento econômico e social.
Abaixo, a íntegra da entrevista:
Por que o senhor saiu do PDT?
Eu tenho uma associação antiga com o PDT porque eu considerava o Leonel Brizola o meu grande aliado político. O PDT sempre serviu para representar uma alternativa ao País e agora não representa, mas faz parte de um governo que claramente não tem projeto. Qual é o projeto do governo Lula atual? É compor-se com o mercado financeiro, aceitando a ascendência do rentismo financeiro. Segundo, distribuir esmola aos pobres, o pobrismo. E, terceiro, vender soja, carne e minério de ferro. Esse é o projeto, ou o antiprojeto.
O correto seria o PDT não participar do governo ou, mesmo dentro do governo, fazer um contraponto?
Com realismo, o PDT não poderia participar do governo. O País está numa situação gravíssima, 100 milhões de pessoas não têm acesso a uma rede de esgoto, 35 milhões não têm acesso à agua potável, a maioria está endividada, a maioria da nossa força de trabalho está na informalidade ou na precarização. Não há qualquer indício de um projeto nacional produtivista e capacitador, e o presidente se refugia viajando no estrangeiro em projetos de vaidade pessoal. As forças que representariam uma alternativa, o PDT, o PSB, o PCdoB, todas estão se transformando em linhas auxiliares desse antiprojeto nacional.
A decisão está alinhada com Ciro Gomes ou antecipa algum posicionamento dele?
Não. A decisão é minha. Ciro Gomes não precisa de porta-vozes e ninguém precisa representá-lo. É uma decisão de consciência para lutar por uma alternativa nacional, produtivista e capacitadora. É o que nós não temos no Brasil. O que vemos é uma tendência de desviar a atenção do País desse quadro de marasmo, de mediocridade, para assuntos simbólicos, para a política identitária, que é o inverso das guerras culturais da direita, e declarações estapafúrdias do presidente da República, como esta de que os ministros do Supremo Tribunal Federal poderiam votar em segredo.
As forças que representariam uma alternativa, o PDT, o PSB, o PCdoB, todas estão se transformando em linhas auxiliares desse antiprojeto nacional.”
Por que o senhor tinha se filiado ao PDT?
Foi lá quando começou a abertura do regime militar. Eu vi o PDT como uma força que se preocupava com a maioria desorganizada, e não com as minorias organizadas. No PT, eu via, em vez disso, uma tentativa de privilegiar as minorias organizadas e uma política de humanização das realidades brasileiras. A nossa tarefa não é humanizar o inevitável, a nossa tarefa é reconstruir as instituições. Agora, o PDT, aparentemente, quer fazer parte desse conjunto de linhas auxiliares do projeto petista.
O PDT não é mais o mesmo de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro?
Claramente, não é o mesmo. E esta decisão de participar passivamente de um governo Lula que não tem projeto algum é a pedra de cal, é a abdicação de qualquer projeto que mantenha continuidade e coerência com o que foi o nosso projeto inicial. Mas eu não gostaria de ver esse gesto sobretudo sob o ângulo da ortodoxia partidária. O ponto central é a situação calamitosa em que estamos no Brasil e a necessidade agora de juntarmos todas as forças, sem preconceitos, para criar uma alternativa nacional.
Quem pode representar essa alternativa nacional?
Na última eleição, apoiei com entusiasmo a candidatura do Ciro Gomes, que eu via mais próxima dessa alternativa que eu defendo. O que será para o futuro eu não sei. A nação terá que encontrar ou criar suas lideranças nesse processo de resistência que agora precisa começar.
Como o senhor avalia a declaração de Ciro Gomes de que não pretende mais concorrer à Presidência?
O Ciro tem grande consciência cívica e compromisso com o destino do Brasil e de alguma forma ou de outra continuará participando da vida pública do País. Mas a minha ação agora não tem nada a ver com isso. É uma convicção minha de que eu não posso aceitar essa atitude de abdicação a que o PDT se entregou junto com tantos outros de quem nós esperávamos uma atitude de resistência e construção.
Qual é papel do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na repetição desse modelo que o senhor critica?
É meu amigo, foi meu amigo há muitos anos, mas agora ele está ativamente participando dessa política. Ele é um dos arquitetos dessa política, que afirma o casamento do financismo e do pobrismo em que as contas são pagas pela agricultura, pela pecuária e pela mineração. Se elas não estivessem pagando as contas, nós já estaríamos no chão, numa crise econômica decisiva.
É possível governar o Brasil sem repetir esse modelo?
É claro que um projeto produtivista e capacitador só se efetivará no Brasil tocando o chão das realidades regionais. Em cada região do Brasil, o caminho da qualificação produtiva e da capacitação está bloqueado. Esta tem que ser a agenda prioritária do País. Não é o presidente ficar viajando pelo exterior e lendo discursos que são escritos para ele enumerando platitudes açucaradas como se estivesse se candidatando ao Prêmio Nobel da Paz ou a mais diplomas honoris causa, enquanto isso o Brasil afundando no primitivismo produtivo e educacional.
A entrada do Centrão no governo Lula agrava o problema?
Eu não vejo a desorientação e a mediocridade dos partidos como a causa desse quadro, elas são a consequência. A explicação é não haver um projeto forte encampado por quem deveria ter o projeto, que é o presidente, o governo. Os partidos deveriam se posicionar em relação a isso, mas nós não podemos esperar agora da elite política. Se os políticos não resistirem a essa situação, nós, os cidadãos, temos que falar pelo Brasil.
Nós não podemos esperar uma conversão do presidente Lula porque é sempre muito mais difícil mudar uma pessoa do que mudar um país.”
Quais são as diferenças do Lula no primeiro e no segundo governo e do Lula agora no terceiro mandato?
Havia ambiguidade nos mandatos anteriores de Lula, havia uma luta entre tendências produtivistas e tendências compensatórias. O presidente me convenceu a participar do governo em seu segundo mandato sob esse argumento de ajudá-lo a construir um projeto nacional e produtivista e eu fiz o que pude. Pelo menos, enquanto eram só propostas, o presidente Lula apoiava, até com entusiasmo. Quando eu percebi relutância em traduzir essas propostas em políticas públicas efetivas, eu comecei a me afastar do presidente e fui trabalhar com os governadores.
O senhor costuma falar que fala com sotaque, mas não pensa com sotaque. O presidente Lula está pensando com sotaque, nessa perspectiva?
O presidente Lula parece estar desinteressado do Brasil. Parece que é mais agradável ficar viajando pelo exterior, frequentando essas reuniões em que ele pronuncia discursos entediantes. Os outros chefes de Estado, que são homens sérios de poder, mal conseguem disfarçar o cansaço ao ouvi-lo. Eu não sei por que ele está fazendo isso. Eu posso afirmar ao presidente Lula que o Brasil é um país extremamente interessante e é muito mais interessante do que esses países que ele está visitando. Mas nós não podemos esperar uma conversão do presidente Lula porque é sempre muito mais difícil mudar uma pessoa do que mudar um país. Então, em vez de tentar abrir os olhos do presidente Lula, tratemos de abrir os nossos próprios olhos.
Por onde começar um projeto de desenvolvimento para o Brasil?
Teríamos a tarefa de construir uma forma includente da economia do conhecimento em todos os setores, em cada região do País, de acordo com as realidades de cada região. Não há como pretender voltar à velha indústria. O Brasil fervilha de criatividade, energia empreendedora, há uma multidão de emergentes que encarnam essa energia produtivista. Atrás deles estão milhões de trabalhadores ainda pobres, os batalhadores, mas que já assimilaram a cultura da autoajuda e da iniciativa. O nosso grande projeto é construir as estruturas que permitam transformar esse dinamismo desequipado e inculto em flexibilidade preparada. Esse é o projeto e há um mundo de possibilidades, mas estamos evadindo todas elas pelo discurso açucarado das compensações e pela submissão aos interesses financistas.