Estudo analisou 10 mil produtos vendidos em supermercados e constatou excesso de sódio, gordura e açúcar ou outros aditivos em quase todos eles.
Publicado em 30/08/2023
Por Edison Veiga
DW — Considerados vilões da saúde, sódio, gorduras e açúcares livres em excesso, além de aditivos que realçam cor, sabor ou textura em 98,8% dos alimentos ultraprocessados disponíveis nos supermercados brasileiros. Esta é a principal conclusão de um estudo desenvolvido pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em parceria com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens-USP), com colaboração de outras instituições, publicado nesta quarta-feira (30/08) no periódico Scientific Reports .
Foram analisados 10 mil produtos considerados ultraprocessados — ou seja, aqueles que, segundo o Nupens na chamada Classificação Nova, “não são propriamente alimentos, mas, sim, formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos”. Entre eles estão refrigerantes, salgadinhos de pacote, pães e outros panificados embalados, margarina, bolachas, doces, chocolates, cereais matinais e misturas para a preparação de bebidas com sabor frutas.
Os pesquisadores verificaram os alimentos embalados disponíveis nas grandes redes de supermercados, seguindo a lógica, como explica a nutricionista Daniela Canella, pesquisadora da Uerj e autora principal do artigo, “de que a maior parte dos alimentos são adquiridos em supermercados”.
De acordo com o estudo, 97,1% dos alimentos classificados como ultraprocessados têm pelo menos um ingrediente crítico em excesso — sódio, gorduras e açúcares livres. “O consumo excessivo desses componentes está associado ao desenvolvimento de obesidade e diversas outras doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares”, alerta Canella.
Já os chamados aditivos cosméticos — ingredientes utilizados para realçar a cor, o sabor ou a textura — estão presentes em 82,1% dos produtos. “É mais difícil estudar o efeito isolado de cada aditivo ou o combinado de diferentes aditivos do que estudar o efeito de nutrientes críticos na saúde. Mas existem evidências da relação entre corantes e desenvolvimento de alergias e de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, emulsificantes com alteração da microbiota intestinal, nitritos e desenvolvimento de câncer”, enumera a pesquisadora.
“A questão é que, apesar dos aditivos utilizados serem aprovados, as indústrias não têm que informar nos rótulos a quantidade utilizada em cada produto. Com o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, é possível que o consumo esteja excedendo a ingestão diária aceitável. ”
Com a sobreposição desses dois pontos — o percentual de alimentos com críticos em excesso e aqueles com aditivos cosméticos — os pesquisadores encontraram um índice alarmante de 98,8% de alimentos com potencial para causar problemas, uma vez que há alimentos que apresentam as duas e outros que têm apenas uma delas características.
Preocupação da indústria
Para a engenheira de alimentos Cristina Leonhardt, fundadora da plataforma Sra Inovadeira, esse cenário é consequência do modus operandi da indústria alimentícia no Brasil. “A perspectiva do desenvolvimento de produtos aqui não é necessariamente da nutrição, mas sim da engenharia de alimentos”, explica ela, que trabalhou por mais de 15 anos na indústria do setor. “Esta é muito atrelada a entregar para o consumidor aquele alimento ‘perfeito’ para ele, nas condições de cor, sabor e textura, e que chegue até o melhor final de sua vida na prateleira sem alterações dessas características.”
Leonhardt acrescenta que a indústria de alimentos “evoluiu no Brasil com dois objetivos: garantir a segurança do processo, que os alimentos processados não tragam doenças transmitidas por alimentos; e entregar alimentos acessíveis com o prazer sensorial adequado categoria, considerando que estamos em um país em desenvolvimento”.
E o desafio é maior num país onde boa parte da população é pobre, o clima é tropical e as dificuldades de distribuição, pelas dimensões continentais e pela infraestrutura, são grandes.
“Eles querem fazer alimentos mais simples e mais baratos, que sejam produzidos de maneira muito massiva, e para isso precisam usar muitos aditivos e ingredientes cosméticos”, resume o jornalista Rafael Tonon, autor do livro As Revoluções da Comida e coordenador do mestrado em jornalismo gastronômico no Basque Culinary Center, na Espanha. “Existe uma escolha da indústria alimentar de buscar o que é mais barato em detrimento ao mais saudável ou melhor para o consumidor.”
Para Tonon, a situação acaba sendo pior em países subdesenvolvidos por causa de problemas sociais. “Muitas vezes, um pacote de bolacha custa menos do que uma fruta. Isso é preocupante”, comenta.
É uma visão semelhante à do especialista em marketing alimentar Mikael Linder, pesquisador do Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento (Cirad), da França. “Muitas vezes um refrigerante é mais barato do que um suco natural”, diz ele.
Legislação mais restritiva
Nesse sentido, Linder defende uma imposição de uma legislação mais restritiva quanto aos insumos que possam ser acrescentados pela indústria. E que o consumidor seja sempre informado de forma clara. “Para a indústria, é muito mais fácil adotar certos insumos para produzir com menor custo, maior velocidade e mais facilidade, performando melhor o ponto de vista financeiro”, destaca.
Essa diferença de legislação pode ser compreendida comparando-se rótulos dos mesmos produtos, das mesmas marcas, em mercados diferentes. Estudo realizado em 2012 pela organização americana Center for Science in the Public Interest analisou componentes de refrigerantes com o mesmo nome e da mesma empresa fabricante em diferentes países. Eles constataram que, no Brasil, há casos em que uma bebida chega a ter 66 vezes mais do que nos Estados Unidos de uma substância potencialmente cancerígena que compõe o corante.
“Um mesmo fabricante produz alimentos com composição diferente conforme o país. Há casos em que se utilizam quatro ou cinco ingredientes no país A e 15, 16 no país B, porque a legislação ali permite e o ambiente favorecedor”, comenta Linder.
Os especialistas acreditam que esse quadro poderá ser revertido, embora o caminho não seja simples. “Tem de passar por conscientização dos consumidores, aumento de poder aquisitivo do país, legislações que orientam para a escolha de produtos mais saudáveis e também por uma questão de ética na produção de alimentos”, diz Leonhardt.
Ela defende o argumento de que a produção de alimentos só tem equivalente a medicamentos no sentido de que seu produto é consumido pela população — e isso aumenta a responsabilidade do setor. “São produtos que se transformam dentro da gente, do lado de dentro do corpo”, salienta.
Para Tonon, a melhoria só virá quando a questão for seriamente colocada como política pública. “Não podemos pensar que as pessoas têm capacidade de escolha em um país em que elas têm de se preocupar com o que vão chegar hoje, o que vão dar para o filho hoje. O quadro só mudará quando houver políticas públicas capazes de olhar mais para o benefício do que consumidor do que da indústria, tratando as pessoas mais como cidadãos do que como consumidores”, vislumbra.
E a conta pode fechar se o foco mudar para a saúde pública. “A partir do momento que as pessoas comem melhor, elas vivem melhor. E isso tem um impacto enorme no sistema de saúde”, acrescenta ele.