O artigo abaixo foi publicado no El Faro, um dos principais jornais da Guatemala. Ele explica o que está acontecendo no país, e as grandes esperanças que se levantam com as próximas eleições presidenciais.
A Praça das Primaveras Democráticas da Guatemala volta a se encher
El Faro — Um fechamento eufórico da campanha presidencial no centro da cidade da Guatemala remete à revolução guatemalteca de 1944 e aos protestos massivos contra a corrupção em 2015. No entanto, o eleitorado desconfiado ainda está conhecendo quem se apresenta como herdeiro, o candidato Bernardo Arévalo, que em meio a uma crise democrática prometeu abrir caminho para uma “nova primavera”.
Quando o candidato presidencial Bernardo Arévalo subiu ao palco para fazer seu discurso de encerramento de campanha, uma onda de aplausos varreu a Praça da Constituição no centro histórico da cidade da Guatemala, lotada com centenas de pessoas. Era a noite de 16 de agosto. A praça de um quilômetro quadrado estava completamente cheia. Há uma estranha sensação de inevitabilidade de sua vitória em meio a uma crise democrática que tem perturbado o país da América Central por mais de quatro anos.
Apoiado na história que esta praça nos traz e na semente que germinará, Arévalo proclama que não repetirão o que seus antecessores fizeram, mas sim formarão uma nova primavera. “A nova primavera acabará com os corruptos!”, exclama o candidato.
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A praça é um fio que atravessa a história da Guatemala. Na madrugada de 18 de junho de 1954, como recordado no livro “Frutos Amargos”, um avião militar dos EUA voou sobre a praça, espalhando panfletos exigindo a renúncia imediata do presidente Jacobo Árbenz, sucessor de Juan José Arévalo, pai do atual candidato. Dias depois, um grupo de militares guatemaltecos apoiados pelos Estados Unidos derrubou Árbenz e estabeleceu um regime militar, pondo fim a uma breve “primavera” democrática que durou apenas uma década. Em 1960, o país mergulhou em um conflito interno que duraria 36 anos.
No evento, a multidão cantava o hino nacional ao som de uma marimba, enquanto um projetor exibia rostos da multidão em uma tela grande. Drones sobrevoavam diante do candidato, que falava de uma “mudança histórica” com a aura romântica da esperança renovada que cercou a campanha de Barack Obama nos EUA em 2008. Surpreendentemente, há apenas dois meses, Arévalo estava em oitavo lugar nas pesquisas entre vinte candidatos. Hoje, ele lidera as intenções de voto.
A ascensão de Arévalo parece ter sido um acidente, um erro do sistema judiciário corrupto da Guatemala. Três candidatos populares foram retirados da disputa. Uma proposta democrática, segundo Arévalo, conseguiu se estabelecer em um campo eleitoral autoritário e manchado por subornos.
Durante a campanha, Arévalo mencionou os riscos e desafios, reiterando uma frase icônica popularizada pelo autocrata Nayib Bukele em El Salvador. Antes dele, sua vice, Karin Herrera, uma bióloga carismática da Universidade de San Carlos e popular entre os movimentos estudantis, também mencionou o mesmo. O público reagiu em coro.
Até agora, o Tribunal Constitucional não permitiu que o Ministério Público – apesar de tentativas criativas por todos os meios possíveis – excluísse o candidato ou seu partido da corrida. Na manhã seguinte, a CID Gallup deu a Arévalo uma vantagem de 22 pontos sobre a ex-primeira-dama, duas vezes candidata à presidência e líder política Sandra Torres, que tem conduzido uma campanha repleta de desinformação, acusando-o de endossar uma “ideologia de gênero”. A pesquisa matinal sugere que essa tática de medo em um país majoritariamente cristão e conservador não teve grande efeito.
Após o primeiro turno das eleições, quando o Tribunal Supremo Eleitoral estava prestes a certificar os resultados, o Ministério Público acusou o partido de adicionar 12 pessoas mortas às suas fileiras, de falsificar assinaturas em sua criação em 2017 e até mesmo de suposta lavagem de dinheiro. Em seus argumentos públicos, os promotores retomaram uma queixa criminal feita pelo próprio Arévalo em maio de 2022 contra um suposto falsificador de assinaturas. Torres repetiu os argumentos dos promotores.
“…Mas a maneira de vencê-los não é com discursos ou comícios. Temos que ir votar. Votar é a única forma de levar nosso país adiante. Votar é a única maneira que temos de realizar nossos sonhos, nossos desejos, esse desejo de ter uma vida digna!”
Mas a quatro dias das eleições – como se fosse um casamento arranjado – o público ainda está conhecendo Arévalo e seu pequeno partido progressista Semilla, nascido dos massivos protestos de 2015 que levaram ao julgamento e condenação por fraude aduaneira do presidente e ex-militar Otto Pérez Molina. O partido nasceu nesta mesma praça, concentrado na classe média da capital. Arévalo lembra ao público hoje que seu pai também subiu ao pódio nesta praça.
“Na jornada que tem sido esta campanha, não estive sozinho. Além de todos vocês, meu pai, Juan José Arévalo, tem sido uma presença cada vez mais constante. Porque ele não só vive em mim, mas em cada um de vocês. Em todas aquelas pessoas que se lembram dele quando percorremos o país. (…) Eu não sou meu pai, mas sigo o mesmo caminho que ele construiu.”
“Um parente dele… acho que era o pai, né? Ele deixou algo muito bonito e meu pai se lembra disso. Ele vem de uma boa família”, diz Odilia Chocón Bran, uma mulher de cerca de cinquenta anos que viajou com duas amigas de Fraijanes, um município a 45 minutos da capital, para apoiar o candidato. Durante uma pausa na conversa, depois de ouvir o discurso de Arévalo, ela inclina a cabeça, tímida, e adiciona em voz baixa: “Preciso de um emprego e ele prometeu ajudar as mulheres.”
Tanto as pesquisas quanto as redes sociais mostram que Semilla não negligencia sua conexão com os jovens com menos de 30 anos. Durante o evento, uma série de atos musicais desfila, incluindo Tijuana Love, uma banda nacional de house fusion, e Danny Marín, um rapper guatemalteco conhecido como Kontra. Em uma homenagem à cultura noturna do centro, a noite termina com cumbia remixando clássicos de Aniceto Molina.
“Estamos aqui para celebrar esta nova primavera, e neste domingo daremos outra surpresa”, diz Andrés, um jovem voluntário do partido de 28 anos que tirou um dia de folga do trabalho para vir de Jalapa. “E se em 2015 nos reunimos nesta praça central para expulsar um corrupto, hoje nos reunimos porque estamos mostrando que vamos levar à presidência um partido político que é do povo”.
Fernando Hernández, um ecologista que se aproxima dos 70 anos, chegou para apoiar o partido. Uma música ensurdecedora vem das caixas de som no centro da praça. Ele diz que também estava na praça em 2015. “Queríamos mudança, mas não tínhamos meio de alcançá-la”, reflete.
Após a renúncia de Pérez Molina, os eleitores escolheram Jimmy Morales, um comediante popular com um discurso anticorrupção. Sob o escrutínio de uma investigação por financiamento eleitoral ilícito, Morales expulsou a Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala em 2019. Em janeiro seguinte, ao terminar seu mandato, ele assumiu como deputado do Parlamento Centro-Americano e recuperou sua imunidade. Em uma reviravolta que foi amplamente interpretada como uma zombaria aos eleitores. Em 2023, Morales candidatou-se —sem sucesso— ao Congresso. Seu irmão Sammy obteve apenas 0,3% dos votos presidenciais. Sem atingir 5% nas eleições presidenciais nem conseguir uma única vaga no Congresso, a lei eleitoral agora determina que seu partido seja dissolvido.
De acordo com Fernando, se Arévalo ganhar, o partido deve cumprir sua promessa de expandir o diálogo. “Semilla não deve se fechar apenas aos pequenos grupos de seus líderes. Eles deveriam trazer mais pessoas e nos ouvir, os mais velhos”, diz ele. “Muitos dos líderes são jovens. Eles não viveram a guerra”.
No início do ano, a eleição parecia ser um referendo sobre essa era de controle militar. Mas os eleitores rejeitaram a possível presidência da ultraconservadora Zury Ríos, discípula política de seu pai, o general Efraín Ríos Montt, ditador de 1981 a 1983, durante o período mais sangrento do conflito. Após o primeiro turno, os esforços de partidos políticos como os de Ríos, Torres e o presidente Alejandro Giammattei para impedir a certificação do voto reforçaram a imagem de Arévalo como candidato contrário ao sistema.
Enquanto nos últimos dois anos o Estado impôs o exílio ou a prisão como custo para lutar contra a corrupção e condenou à prisão o jornalista José Rubén Zamora e a promotora anticorrupção Virginia Laparra, as questões pelas quais setores da população ameaçam mobilizar-se têm sido econômicas, como o pagamento de seguro de veículos obrigatório ou mudanças na coleta de lixo. A assistência à praça durante manifestações tem sido um indicador social de até onde um movimento pode ir, bem como de sua diversidade e longevidade.
A última vez que a praça quase ficou cheia foi no final de julho de 2021, após a demissão de Juan Francisco Sandoval, o agora exilado ex-chefe da Procuradoria Especial Contra a Impunidade. Diversas autoridades indígenas convocaram uma greve nacional apoiada por movimentos estudantis, coletivos de desenvolvimento rural e partidos de oposição.
Parecia ser a fórmula para deter a deriva autoritária, mas o sistema judiciário continuou a se deteriorar e os protestos desapareceram. Agora, toda a equipe de Sandoval está exilada, presa ou transferida e o Congresso nomeou a responsável por sua saída, a procuradora-geral Consuelo Porras, para um segundo mandato até 2026, apesar das sanções dos Estados Unidos por obstruir investigações de corrupção.
Nesta noite, cerca de dez membros da autoridade ancestral maia achí chegaram à praça de Rabinal, Baja Verapaz, em apoio ao candidato, vestidos com trajes brancos ou huipils azul-verde multicoloridos e com varas de comando em mãos. Nesta quinta-feira, um tribunal ouvirá os últimos argumentos no caso Rancho Bejuco, um massacre de 25 indígenas —incluindo 17 crianças e cinco mulheres grávidas— nas mãos do Exército naquele departamento em julho de 1982, durante o governo de facto de Ríos Montt.
“Estamos cansados da impunidade, da corrupção, dos mesmos de sempre”, diz Jorge González, da autoridade achí. “A melhor maneira de fazer isso é apoiar o Sr. Arévalo para que ele chegue ao poder e trabalhe em conjunto pelo desenvolvimento, para combater a violação dos direitos humanos, o sequestro e a expropriação de nossas terras. Já apresentamos o Dr. Arévalo à nossa comunidade e estamos dando nosso apoio a ele.”
Embora Semilla pareça ter posicionado seu discurso contra a corrupção na mente de muitos eleitores, isso não foi totalmente o caso para a pobreza, a precariedade no trabalho, o custo de vida e a segurança, temas de grande peso eleitoral em um país onde um em cada dois crianças com menos de cinco anos sofrem de desnutrição.
Por quatro décadas, Filomina Mazariegos, uma mulher nativa do departamento de San Marcos, que faz fronteira com o México, vendeu todo tipo de parafernália de plástico em manifestações. Ela não hesita ao dizer, sentada em um pequeno banco de pedra na praça, que votará no segundo turno neste domingo, 20, em Torres, cuja campanha nos últimos dias desafiou a lei eleitoral ao distribuir comida e presentes para conquistar eleitores, com um interesse especial em associações de vendedores de mercado.
“Eu vou votar na Sandra e não é por causa dos feijões. Eu faço isso porque muitas pessoas precisam, pessoas que dão pena. Quando alguém diz, ‘Bem, o pão já está duro’, há outros que o comem”, diz ela, encolhendo os ombros. “Quem vai roubar tem que roubar. O único que pode nos moldar é Deus”.
“Este é o partido mais forte. Isso é visto nas pesquisas”, diz seu marido Abel, deixando de lado algumas garrafas de água e se aproximando. Eles estenderam uma manta branca em um canto da praça com dezenas de chapéus, guarda-chuvas, trombetas de plástico coloridas, garrafas de água fria e bandeirinhas nacionais. Abel trabalha para o Ministério da Educação; Filomina, que trabalhou por duas décadas como cozinheira para o Estado, já se aposentou do Ministério. “O que acontece com Semilla é que eles procuram pessoas com mais recursos. Sandra vem de baixo”, acrescenta. “Ela dá comida, apoia. Ele não dá nada”.
Depois do discurso de Arévalo, volto a procurar sua opinião.
“Foi bom”, Filomina responde brevemente.
“Ela gostou porque vendeu bastante”, diz Abel, rindo. “Olha, eu trabalho para o Estado há 26 anos. Vi muitos governos mais ruins do que bons. Espero que este seja bom”.
“Então, o discurso de Arévalo mudou sua opinião? Em quem vocês pensam em votar?”
“Na Sandra”, respondem em uníssono.
“O que acontece é que Sandra prometeu cinco mil (quetzales) para os aposentados”, acrescenta Abel.
Se ganhar, Arévalo prevê esforços para impedir sua posse. “Não tenho dúvidas de que entre 20 de agosto e 14 de janeiro, se ganharmos a eleição, haverá várias tentativas”, disse Arévalo em uma entrevista com El Faro nesta segunda-feira.
Em 13 de agosto, vazou um vídeo em que uma líder do partido de Torres, a UNE, disse aos fiscais do partido que “eu preciso que cada um de vocês esteja preparado para a impugnação. Porque vou compartilhar com vocês que uma diretriz da coordenadora nacional de fiscais (da UNE) é que cada mesa (de eleitores) seja impugnada”. O partido diz que o vídeo foi tirado de contexto e que “‘impugnar a mesa’ é um termo, se quiserem, coloquial”.
“Como é lindo sentir a esperança das pessoas. Como é lindo que o povo volte a sentir que pode tomar o futuro em suas mãos. Como é lindo sentir a dignidade que se respira nesses momentos”, conclui Arévalo ao descer do palco, diante de um punhado de microfones.
Esta noite, pelo menos, a praça foi contagiada pela certeza de que Arévalo vencerá. Mas durante todo esse período eleitoral, os sinais de possíveis interferências que impeçam Arévalo de assumir a presidência têm sido muitos. A praça hoje celebrou, alheia a esse cenário.
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