Por conta de compromissos profissionais e acadêmicos, acabei não conseguindo publicar a coluna dessa semana na quarta-feira, como é habitual. No fim, isso acabou sendo ótimo, uma vez que, se a coluna saísse na quarta-feira, ela seria atropelada pelos acontecimentos do histórico dia 17 de agosto de 2023.
Para ser honesto, o dia começou na noite anterior: a Polícia Federal fez uma pouco habitual operação noturna e encontrou Frederick Wassef em um restaurante de Brasília. O advogado de Bolsonaro, que foi responsável pela recompra (!!!) do Rolex dado de presente oficial que havia sido vendido em uma loja de penhores nos EUA , teve apreendidos quatro telefones celulares, incluindo um que ele dizia só usar para conversar com Bolsonaro.
Os detalhes foram surgindo ao longo da quinta-feira e obviamente ficaram em segundo plano, mas é bom frisar que Wassef estava em um carro sem placa e parou irregularmente na vaga para pessoas com deficiência. É a própria imagem do vilão de filme da Sessão da Tarde.
Outra coisa que ficou completamente ofuscada foi o “Bom Dia, PF” que alguns participantes das manifestações golpistas de 08 de janeiro receberam. Teve influenciador, pastor evangélico e cantora gospel sendo presos.
Em comum, o fato de que eles usaram suas redes sociais para chamar as pessoas a irem para a “Festa da Selma”, codinome que eles encontraram para definir os atos golpistas. Como bolsonarista adora piada sem graça, “Selma” vem da maneira como Steve Bannon (sim, ele mesmo) se referia ao termo “Selva”, gíria militar frequentemente repetida pelos bolsonaristas que gostam de ser wannabe de milico.
Mas, enfim, vamos ao que realmente importa. Quando Walter Delgatti foi convocado a depor na CPMI dos atos golpistas, ninguém sabia muito o que esperar. A medida em que a data do depoimento foi chegando, os sinais pareciam dúbios: ao mesmo tempo em que Delgatti tentava firmar uma delação premiada junto à PGR (para surpresa de absolutamente ninguém, a dupla Aras e Lindôra não quiseram), também entrava com pedido para permanecer em silêncio durante o depoimento. No fim, as duas coisas contribuíram para o depoimento mais bombástico da CPMI, que coloca Bolsonaro no centro da articulação para fraudar as eleições de 2022.
Dentre os pontos mais importantes do depoimento, alguns se destacam: o primeiro é o de que Bolsonaro ofereceu indulto para Delgatti caso ele fraudasse as urnas. Outro ponto é o de que, na impossibilidade de fraudar as urnas, Bolsonaro queria combinar com Delgatti a criação de uma urna fake com um código fonte fake para apresentar durante as manifestações bolsonaristas de 07 de setembro de 2022 (sim, as que rolaram um mês antes da eleição).
A intenção era questionar o processo para que Bolsonaro tivesse motivos para adiar a eleição indefinidamente, ou ao menos até conseguir implantar o “seu sistema de votação”: as urnas em papel que poderiam ser facilmente fraudadas por bolsonaristas, especialmente em áreas controladas por milícias.
Além disso, Delgatti, em ser depoimento na CPMI, revelou que foi o arquiteto do famigerado relatório das Forças Armadas em que os militares lançam dúvidas sem pé nem cabeça sobre a integridade das urnas eletrônicas. O fato é que as dúvidas não tem nem pé nem cabeça justamente porque as urnas não tem vulnerabilidades realmente importantes e são seguras.
O próprio Delgatti reafirmou isso: disse que o sistema é seguro e inviolável. Como ele fez esse relatório? Indo cinco vezes ao Ministério da Defesa falar com o ministro e com seu entourage, logo após se reunir com o próprio Jair Bolsonaro sob indicação de Carla Zambelli.
Carla Zambelli, aliás, é parte importante do processo, porque Delgatti disse que ela prometeu um emprego para ele. Mais do que isso: ela pagou pelos serviços prestados via Pix. Então há uma comprovação de transferências bancárias entre a assessoria da Carla Zambelli e Delgatti. Mas pagou por quais serviços?
Delgatti invadiu o sistema do CNJ com senha de administrador e, entre outras coisas, emitiu uma ordem de prisão contra Alexandre de Moraes, obviamente ignorada. A parte patética da coisa é que as senhas para acessar como administrador o sistema do CNJ eram coisas ridículas como “123mudar” e “12345”. Daí a vida do hacker fica realmente fácil.
E, para encadear tudo, Delgatti revelou que sim, o mandante de tudo foi Bolsonaro. A intenção de Bolsonaro era utilizar a máquina estatal para fraudar as eleições. Bolsonaro tentou ativamente, com auxílio das Forças Armadas, fraudar o sistema das urnas eletrônicas, com o objetivo de impedir a votação eletrônica em todo o país.
Depois que perdeu a eleição, ele e Eduardo Bolsonaro foram atrás de Fernando Cerimedo, que hoje coordena a campanha presidencial de Javier Milei na Argentina, para criar todo aquele relatório fantasioso cheio de apontamentos falsos contra a urna eletrônica. E, ainda assim, não conseguiu. É provavelmente a maior prova da segurança do sistema desde a sua criação, nos anos 90. E também é a prova de que Bolsonaro agiu criminosamente contra o Brasil, utilizando-se até mesmo de algum aparato internacional para isso.
No final da manhã, estavam todos estupefatos com essas informações. E, no meio do processo, o Delgatti ainda achou tempo para desmoralizar Sérgio Moro, o que sempre é saudável e divertido. No período da tarde, praticamente só teríamos falas de deputados e senadores bolsonaristas. Pois bem: depois de uma ameaça pouco disfarçada feita pela ex-Ministra e senadora Damares Alves, Delgatti resolveu ficar quieto o resto do tempo. E nisso, viu a burrice do bolsonarismo florescer em sua plenitude.
Flávio Bolsonaro, por exemplo, confirmou em sua fala, sem perceber, que de fato Bolsonaro levou Delgatti para reuniões no Ministério da Defesa. Os demais bolsonaristas, em desespero para chamar atenção, tiveram falas ridículas, uma pior que a outra, e nem merecem menção.
Mas o dia tenebroso de Bolsonaro não acabou aí. Mauro Cid, preso há mais de três meses, resolveu confessar seus crimes, dizendo que fez tudo a mando de Bolsonaro. A mudança de advogado na última terça-feira foi essencial nesse processo. Primeiro a notícia saiu na Veja, que não inspira muita confiança, mas a Globo também confirmou a informação com o novo advogado de Cid.
Além de se ver abandonado por Bolsonaro, Cid está preocupado com sua família: na última operação envolvendo a fraude das jóias, seu pai, o General Mauro Lorena Cid, foi alvo, por ser o muambeiro vendedor de itens que Bolsonaro ganhou de presente nos EUA. Se antigamente a Veja fazia capas dizendo que “Lula sabia de tudo”, a coisa com Bolsonaro é infinitamente mais grave: Bolsonaro deu as ordens sabendo que eram crimes. Bolsonaro se apropriou do patrimônio público como se fosse seu.
E a coisa ainda piorou mais para Bolsonaro, por conta de duas decisões de Alexandre de Moraes. A primeira autorizou colaboração com o FBI para o caso dos presentes que Bolsonaro vendeu nos EUA, o que implica na iminente quebra dos sigilos das contas bancárias de Bolsonaro, Mauro Cid, Mauro Cid pai e Fernando Wassef nos EUA. A segunda autoriza a quebra dos sigilos fiscais de Bolsonaro e de Michelle, atendendo a pedido feito pela Polícia Federal semana passada. No fim da noite, a impressão era de que a prisão de Bolsonaro parecia mais realista do que nunca.
A verdade é que Bolsonaro se colocou em um beco sem saída com seus crimes e com sua argumentação de sempre questionar os fatos. Isso por um motivo simples que conecta o caso dos presentes ao caso das urnas: no caso das urnas, Bolsonaro diz que Delgatti está fantasiando e que “isso era coisa da Carla Zambelli”. A Zambelli teria acesso direto ao Ministro da Defesa? Não parece ser o caso.
As coisas passavam pelo mesmo Mauro Cid, que foi preso, a princípio, por fraudar comprovantes de vacina. E chegam até os presentes: se eles eram personalíssimos e podiam ser vendidos, então Bolsonaro de fato era o chefe da cadeia hierárquica e mandou Cid cometer irregularidades quanto aos comprovantes de vacina e quanto às urnas eletrônicas. Se não eram personalíssimos, então Bolsonaro desviou dolosamente patrimônio público para seu próprio benefício.
É bom aguardar as cenas dos próximos capítulos, mas não parece haver escapatória para o capitão.