É muito difícil abordar o tema da violência no Brasil, especialmente quando as vítimas são crianças. Eu, como pai de duas filhas, tenho uma dificuldade imensa em acompanhar qualquer pauta sobre violência em que as crianças são vítimas. De abusos sexuais a balas perdidas, passando por ataques em escolas, são temas que me tocam muito, abalam meu psicológico e são muito difíceis de lidar.
É por isso que o caso de Thiago Menezes Flausino, jovem de 13 anos de idade morto durante uma operação da PM na Cidade de Deus, choca tanto. Em operações do tipo, vidas são descartáveis, e a verdade é que as crianças dependem de muita sorte para conseguirem chegar vivas na idade adulta em comunidades como a Cidade de Deus.
E “vidas descartáveis” não é uma força de expressão, infelizmente: na mesma semana em que a operação policial matou Thiago, que era um menino exemplar, admirado em sua igreja e no time de futebol em que jogava, a PM da Bahia matou 30 pessoas. A PM de São Paulo matou 16 pessoas no Guarujá após a morte de um agente da ROTA. Matar a esmo é a regra, e não a exceção.
Nos comunicados oficiais, sempre o mesmo tom: “a polícia vai apurar eventuais excessos”. Na prática, o roteiro é conhecido: os policiais são afastados da rua por um período, passam a efetuar atividades administrativas e, depois que a poeira abaixa, voltam a exercer suas atividades normalmente. As exceções são raras: no Rio de Janeiro mesmo, foram 592 policiais militares expulsos da corporação entre 2018 e 2022.
Desses, 312 foram expulsos em 2018, quando o governador era Francisco Dornelles. Com Wilson Witzel, notório apoiador da violência policial, os números despencaram: 49 policiais expulsos em 2019, 32 em 2020, 47 em 2021 (quando Cláudio Castro já tinha assumido interinamente). Em uma corporação com mais de 40 mil policiais, que só no ano passado foi responsável pela morte de 1.327 pessoas, parece um número irrisório de punições. E tem outro detalhe aí: a maior parte das punições não tem a ver com homicídios, mas com casos de corrupção e com participação em milícias. Ou seja: o recado que as instituições dão para a polícia é o de que não vai pegar nada se o policial sair matando a esmo.
Mas a sociedade deveria se revoltar, não? Bem, o problema é que a “sociedade que deveria se revoltar” em geral não é vista como “sociedade” pelo restante da sociedade. As metrópoles brasileiras estão cada vez mais segregadas, e o lobby armamentista é uma boa forma de legitimar essa segregação. Isso esvazia a noção de accountability no serviço dos policiais.
Sabem o que havia em comum entre os casos de Thiago Menezes no Rio, das mortes no Guarujá e das mortes atribuídas à PM da Bahia? Em nenhum dos casos, a câmera do uniforme dos policiais estava ligada. As câmeras nos uniformes são uma medida de accountability, não só para evitar abusos de policiais, mas para proteger o policial e identificar criminosos em possíveis confrontos. Mas, em um cenário de segregação, é necessário que a câmera fique desligada no momento do “esculacho”, quando a comunidade inteira paga pelo crime de uma pessoa só.
Vidas são descartáveis. E isso é alimentado por toda uma engrenagem social complexa. De um lado, os programas policialescos que monopolizam as tardes nas TVs abertas (aquelas que atingem a população mais pobre) são praticamente uma assessoria de imprensa dos policiais violentos, glorificando a truculência e vendendo diariamente o discurso de que “bandido bom é bandido morto”.
O Bolsonaro ter sido eleito Presidente da República com esse discurso não é causa, é consequência. Foram muitos anos de doutrinação ideológica nas concessões de TV vendendo a ideia de que “bandido bom é bandido morto”. Agora, isso é praticamente um mantra para grande parte da sociedade. Os programas de TV (e o restante da imprensa, assim como os influenciadores de redes sociais) tem um papel muito grande em espalhar uma sensação de insegurança generalizada, que faz com que as pessoas tolerem todo e qualquer abuso da polícia, até torcendo por esses abusos em muitos casos.
De outro lado, está a “guerra às drogas”. Ela deu as caras nessa semana novamente, durante o julgamento do STF que pode descriminalizar o uso da maconha em pequenas quantidades. Obviamente, a retórica da guerra às drogas é pautada pelo exagero: “vão acabar com as nossas famílias”, “querem obrigar nossos filhos a virarem drogados”.
Daí você vai ver e na prática o julgamento no STF é só sobre a dosimetria para definir o que é um usuário e o que é um traficante, uma vez que a lei de drogas de 2006 separou os tipos penais usuário (não deve ser punido) e traficante (deve ser punido), mas a dosimetria basicamente ficou em aberto, o que permite todo tipo de arbitrariedade por parte da polícia, bem naquela lógica “se o branco rico for pego com 50 gramas de maconha é considerado usuário, mas se o negro pobre for pego com dois cigarros enrolados é considerado traficante”.
Mas existe todo um aspecto social na guerra às drogas. Além de alimentar todo um lobby de políticos conservadores que se elegem defendendo a pauta “bandido bom é bandido morto”, geralmente com um título antes pra mostrar que o sujeito é “autoridade”, como “delegado”, “capitão”, “coronel”, “major” e até “pastor”, a guerra às drogas produz toda essa dinâmica de violência nas comunidades que torna as vidas descartáveis e é responsável pela morte de crianças como o Thiago Menezes na Cidade de Deus.
É uma lógica em que muita gente ganha: o policial que vira “sócio” do traficante por meio do achaque e que vai “fazer operações” na comunidade que parecem combate à violência, mas no fim são só rediscussões dos termos da sociedade é um desses atores. No fim, a morte de uma criança de 13 anos é só uma forma desse policial conseguir um pouquinho mais de extorsão, ou de outros policiais entrarem no rateio.
“Não, mas os traficantes aliciam menores”. Sim, eles aliciam porque os jovens da comunidade, frequentemente fustigados pela polícia, não tem nenhuma outra perspectiva de futuro. Só no primeiro semestre de 2023, 460 tiroteios ocorreram perto de escolas no Rio de Janeiro, fechando as unidades temporariamente. Ninguém se importa com o fato de que essas crianças, que vivem nas comunidades e não tem o direito nem de estudar, nunca terão as mesmas oportunidades que alguém que estuda em um colégio de elite.
E, no final, a máxima de que “traficantes aliciam menores” serve de justificativa para a polícia atacar todo mundo. Não existe diferença entre culpa e inocente nas comunidades, no fundo a mensagem que a polícia passa é a de que as pessoas são culpadas apenas por residirem lá. É mais um dos inúmeros aspectos da política de segregação entre ricos e pobres que o Brasil vive.
Política que é incentivada pelos bolsonaristas, que aplaudem cada operação policial, inclusive quando crianças são mortas. Que inventam notícias falsas associando crianças ao tráfico, como se uma criança “merecesse morrer” só porque começou a trabalhar de aviãozinho. No final, o desejo do bolsonarista é que todo mundo nas comunidades fosse morto, sem distinção. Porque a existência das comunidades é por si só uma denúncia cotidiana de como o Brasil é um país perverso e injusto com a sua população.
No campo das políticas públicas, é inegável que a atuação integrada e a distribuição mais racional de recursos trazida pelo Sistema Nacional de Segurança Pública, implantado à partir de 2018, trouxe efeitos importantes na redução da violência. Mas uma melhor distribuição de recursos financeiros não vai adiantar nada se a cultura policial continuar sendo a de desligar a câmera na hora do esculacho. Uma polícia melhor equipada e com mais treinamento é uma polícia ainda mais perigosa se os policiais mantém uma mentalidade assassina.
A verdade é que ninguém deveria morrer. Mas, enquanto fomentarmos uma polícia truculenta, morrerão muitos inocentes como Thiago. E isso em estados administrados por bolsonaristas, como São Paulo e o Rio de Janeiro, mas também em estados administrados pelo PT, como a Bahia. Esses dias, algumas vozes se levantaram preocupadas após a divulgação dos dados do Censo Demográfico, dizendo que o Brasil “tinha perdido o seu bônus demográfico”. Em outras palavras, que o Brasil estava envelhecendo e que não se desenvolveu enquanto sua população ainda era jovem. Isso é verdade, perdemos mesmo o bônus demográfico. Mas também estamos jogando nosso futuro fora todos os dias, toda vez que um jovem é morto pela polícia em uma comunidade ou fica sem aulas por causa de um tiroteio. E precisamos parar esse processo com urgência.
Ligeiro
09/08/2023 - 20h14
Quando vemos não só esta questão das polícias matando crianças, mas também por exemplo o caso recente do estado tentar mudar padrões no material escolar apenas para atender uma demanda de empresários de tecnologia, vemos que para o empresariado (e talvez até para uma parte dos “intelectuais” brasileiros), pessoas são números.
Me lembro vagamente da juventude classe média paulistana de na infância (dos anos 80 e 90) ter aquela educação que valorizava os policiais e demais como “autoridade”. Depois quando jovem meio que “cair por terra” sobre isso, tomar enquadro e tudo mais. Não peguei época da “Proerd” salvo engano, no que imagino que isso inclusive hoje é uma piada e uma prova da hipocrisia das polícias em lidar com as drogas.
A segurança pública é um tema espinhoso, pois infelizmente tratamos isso como uma “guerra” ao invés de tratar como “ausência”. Tirando os reais seres que possuem um mau caráter, muitos do que consideramos “crimes” hoje na verdade é uma regra que limita quem pode ou não ter algo.
Enfim, espero que possamos corrigir nosso futuro, mas creio que a primeira coisa para corrigir é mudar as políticas de segurança pública. Ou seja, expurgar as polícias atuais e troca-las por algo que seja totalmente transparente nas atitudes de preservação da segurança e das ações jurídicas.