Um déspota nunca sobe sozinho. Antes de assumir o poder em 1933, o líder nazista tinha apoio da alta burguesia e de intelectuais descontentes com os caminhos da Alemanha. Alguns lhe permaneceram fiéis mesmo após a 2ª Guerra.
Publicado em 22/07/2023
Por Gaby Reucher
DW — Regentes como Wilhelm Furtwängler e Herbert von Karajan, ou o escultor Arno Breker estão entre os que fizeram carreira na onda dos nacional-socialistas, depois que Adolf Hitler assumiu o poder. Em contrapartida, o ditador se beneficiou da arte dessas e outras personalidades.
Desde muito antes, porém, outros nomes da cena cultural vinham cortejando o futuro “Führer”. O casal de editores de arte Hugo e Elsa Bruckmann esteve entre os primeiros a convidarem o líder nacional-socialista oficialmente a sua casa, em 1924.
Nos anos 20, eram sobretudo conservadores nacionalistas, que esbravejavam contra a República de Weimar, os frequentadores do “salão” que ambos promoviam – e onde, antes da Primeira Guerra Mundial , reuniam -se intelectuais das mais diversas opiniões e religiões para um intercâmbio de ideias.
Elsa Bruckmann oferecia assim um fórum a todos que lamentavam os tempos idos do império e sofriam sob a crise econômica e/ou o vexame da derrota na Primeira Guerra. “O desejo por um Messias era grande, e a alta burguesia depositara suas esperanças em Hitler”, explica Sven Friedrich, diretor do Museu Richard Wagner, em Bayreuth.
O militar, que nasceu na Áustria, entusiasmava os Bruckmann e muitos outros com seus discursos de inspiração e suas visões de uma grande, nova Alemanha. O casal de editores o apoiava com dinheiro, Elsa gostava de vesti-lo de acordo com a importância que lhe era atribuída. Através de ambos, o militar de baixa patente obteve também o contato providencial com os grandes empresários do país.
Os Wagner e Hitler: uma aliança musical e tóxica
Entre os convidados do “salão”, além do futuro astro da arquitetura hitlerista, Albert Speer, estavam Siegfried Wagner (filho do compositor Richard Wagner ) e sua esposa Winifred, que dirigiam o festival de ópera de Bayreuth. Hitler sentiu-se bem nesses meios.
“Ele não tinha uma formação muito esmerada, e se mantivera a duras penas como pintor de quadros e cartões postais em Viena. Não tinha uma educação ou origem especial, teve que adquirir tudo isso”, explica Friedrich.
Também Winifred Wagner, a nora do compositor, estava entre as principais apoiadoras de Hitler, “devido ao senso de missão dele e sua pronunciada adoração pela música de Wagner”, segundo o especialista Sven Friedrich. Desde o início, o demagogo lhe prometera que cuidaria do Festival de Bayreuth , se chegasse a ter algum poder de decisão na Alemanha.
Logo nasceu entre ambos uma amizade intensa, durante um tempo Hitler se hospedou na vila dos Wagner. Além disso, o marido da filha de Richard Wagner, Eva, era Houston Stewart Chamberlain, teórico racial, antissemita e pré-mentor do movimento nacional-socialista. “Para Hitler, Chamberlain era um ídolo”, comenta Friedrich.
Doces e papel em troca de ópera e poder
Em Munique, 1923, milicianos nazistas comandados por Hitler tentaram derrubar o governo da República de Weimar, sem sucesso. O líder da tentativa de golpe foi condenado a cinco anos de cárcere no Presídio de Landsberg, mas libertado precocemente após alguns meses. “Essa detenção em Landsberg era antes uma prisão domiciliar, onde passou bem com os companheiros de ideologia”, conta Sven Friedrich.
Apesar de não constarem da lista de visitantes, os Wagner mantinham contato epistolar intenso com seu protegido. Winifred lhe enviava doces e papel de carta no qual Hitler começou a escrever seu livro Minha luta, cuja segunda edição Elsa Bruckmann se oferecia mais tarde, para revisar.
Ao lado da editora, encontre-se na lista de visitantes do presídio os nomes Helene e Edwin Bechstein. A fábrica de pianos fundada por Carl Bechstein em 1853 era uma empresa alemã de tradição. “Até a [Primeira] Guerra, a maioria dos pianistas de renome tocava um Bechstein de mesa ou de cauda”, explica o musicólogo Gregor Willmes, diretor cultural da firma.
Com a liberdade dos anos 20, porém, a empresa entrou em sérios apuros. Edwin, um dos filhos, tinha vendido cedo sua participação, e possuía uma certa fortuna. O casal apoiava os planos de Hitler e, assim como os Wagner, o hospedou em sua vila. Depois de 1945, a proximidade ao ditador também ajudaria a fabricante de pianos.
O Festival Wagner ficou sob a proteção pessoal de Hitler, já que a família sempre o apoiou. “Ele retribuiu destinando subvenções sem fim a Bayreuth”, relata o diretor de museu Friedrich: os nazistas cuidaram para que as récitas continuassem até 1944 como “festivais de guerra”.
Com a eclosão da Segunda Guerra, as visitas do ditador às damas da alta burguesia alemã se tornaram esparsas. Elsa Bruckmann distanciou-se dele devido às atrocidades da concentração dos judeus e da guerra, mas manteve suas convicções nacional-socialistas até a morte, em 1951.
A vida depois de Hitler
Winifred Wagner continuou fiel a Hitler e ao nazismo mesmo encerrado a guerra. Assim como o filho Wieland, igualmente próximo do Führer, ela teve que se submeter a um “processo de desnazificação”, ficando impedida de seguir dirigindo os festivais. No entanto, não deixou de se encontrar com os velhos amigos da época nazista.
O arquiteto Albert Speer foi condenado a 20 anos de cárcere. Outras personalidades culturais acabaram sendo classificadas pelos Aliados como “colaboradores” e, depois de algum tempo, mantiveram suas atividades com sucesso.
Arno Breker realizou esculturas por encomenda do governo da República Federal da Alemanha. O maestro Wilhelm Furtwängler e seu sucessor Herbert von Karajan foram celebrados em turnês pela Europa à frente da Filarmônica de Berlim.
Wieland Wagner assumiu juntamente com o irmão Wolfgang a direção do Festival de Bayreuth: com efeitos de luz elaborados e cenários minimalistas, ele criou uma nova estética, entrando para a história dos grandes inovadores do teatro moderno.
O fabricante de pianos Bechstein trabalha com diversos pianistas palestinos de Israel hoje e patrocina projetos musicais relacionados ao nazismo. O nome foi mantido, apesar de nenhum membro da família estar mais ligado à empresa.
“Temos esse nome, é claro, por causa de Carl Bechstein, que era uma personalidade significativa e fomentou a arte e a cultura. Mas estamos cientes dessa história inglória em torno de Helene e Edwin”, explicou o diretor cultural Willmes.
Desde 1973, a Casa do Festival de Bayreuth não é mais de posse dos descendentes, mas da Fundação Richard Wagner, de direito civil. A diretora geral, Katharina Wagner, neta de Winifred, reconhece o passado nacional-socialista de sua família, e se previu a guiar o evento em direção a um futuro moderno.