Lançamento da primeira Constituição Federal em uma língua indígena reuniu as ministras Rosa Weber, Cármem Lúcia e Sonia Guajajara em São Gabriel da Cachoeira (AM), município mais indígena do Brasil
Publicado em 20/07/2023 – 19h40
Por Juliana Radler – Jornalista do Instituto Socioambiental
ISA — Com o hino nacional cantado em Nheengatu, uma das quatro línguas indígenas co-oficiais de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, foi aberto o lançamento da primeira Constituição Federal traduzida em uma língua indígena. A Maloca (Casa do Saber), da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), foi o local escolhido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Superior Tribunal Federal (STF) para a cerimônia.
Acesse a Constituição Federal Brasileira em Nheengatu
“Esse é um momento histórico de restauração e de diálogo intercultural que se dá nesse município esplendoroso e mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira. Levamos 523 anos para chegar até aqui. É um passo importante de reconhecimento dos direitos indígenas neste país que possui 274 línguas indígenas vivas”, ressaltou a presidente do Superior Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, na Maloca da Foirn.
Da esquerda à direita, Nélia Caminha Jorge, presidente do TJ-AM, Rosa Weber, presidente do STF e Cármen Lúcia, ministra do STF – Fellipe Sampaio/SCO/STF
A ocasião também marcou o lançamento do Protocolo de Consulta dos povos e comunidades indígenas do Rio Negro, “uma ferramenta que explica para as pessoas de fora como é a regra para um processo de consulta prévia, livre, informada, de boa fé e que seja culturalmente adequada”, conforme explica o documento.
Qualquer projeto que venha a impactar a vida e os territórios dos indígenas do Rio Negro deverá passar por um processo de consulta das comunidades, seguindo as instruções deste Protocolo.
Povo Tuyuka recepciona delegação do Judiciário na Maloca da Foirn, em São Gabriel – Moisés Baniwa/ISA
“Precisamos que o Judiciário conheça nosso Protocolo de Consulta e nos ajude a fazer cumprir os nossos direitos. Sempre repetimos isso aqui no Rio Negro: desenvolvimento sim, mas de qualquer jeito não”, enfatizou Marivelton Barroso, do povo Baré, presidente da Foirn.
A Foirn aproveitou a ocasião para entregar em mãos à ministra Rosa Weber, presidente do CNJ, uma carta de demandas ao Fórum Nacional do Poder Judiciário para monitoramento e efetividade das demandas relacionadas aos povos indígenas (Fonepi), do CNJ, como, por exemplo, garantir direitos eleitorais aos povos indígenas.
Muitas vezes as barreiras geográficas e linguísticas impedem os indígenas de ter acesso ao voto na Amazônia.
“Gesto de respeito”
Citando o povo Xukuru, de Pernambuco, que diz “acima do medo, a coragem”, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, se comprometeu a dar andamento a novas traduções da Constituição Federal para outras línguas indígenas.
“Queremos reflorestar as mentes dos tomadores de decisões e aldear os corações para esse novo projeto de sociedade com mais respeito às diferenças e com promoção da igualdade. É um gesto de respeito do Judiciário e uma forma de combater a desigualdade social”, afirmou Guajajara em seu discurso.
Uma das tradutoras da Constituição Federal para o Nheengatu, Dadá Baniwa, liderança indígena e coordenadora da Funai em São Gabriel, disse que ter a Carta Magna em uma língua indígena depois de 35 anos de sua promulgação é um sinal de “avanço, resistência e existência” dos mais de 300 povos indígenas no Brasil.
Marivelton Baré, presidente da Foirn, ao lado da ministra Cármen Lucia – Moisés Baniwa/ISA
“Uma iniciativa pioneira que mostra a valorização e revitalização das nossas línguas”, concluiu a tradutora, que tem mestrado em Linguística pelo Museu Nacional (UFRJ).
O evento contou ainda com a presença da presidente da Funai, Joênia Wapichana, do vice-governador do Amazonas, Tadeu de Souza, do presidente da Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi e da desembargadora presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, Nélia Caminha Jorge, entre outras autoridades dos Poderes Executivo e Judiciário.
Após a cerimônia, a delegação seguiu para a sede do Instituto Socioambiental (ISA), no Centro de São Gabriel da Cachoeira, onde reuniu-se com lideranças indígenas, comunicadores, advogados, representantes de instituições locais e equipe do Programa Rio Negro, do ISA, para conhecer e conversar sobre os desafios da região e sobre os trabalhos desenvolvidos pela sociedade civil junto com o movimento indígena.
A delegação da ministra Rosa Weber seguiu nesta quinta-feira (20/07) para uma visita à comunidade de Maturacá, no trecho da Terra Indígena Yanomami no Amazonas, onde situa-se o ponto mais alto do Brasil, o Pico da Neblina ou Yaripo, como chamam os Yanomami.
Escute leitura de trecho da Constituição em Nheengatu, pela Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas:
Por uma Justiça que abrace a pluralidade étnica
O lançamento da Constituição Federal na língua Nheengatu em São Gabriel da Cachoeira, município com 90% da população de 45 mil habitantes composta por indígenas, faz parte de uma articulação entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), com o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), Foirn e o ISA para promover traduções nas línguas indígenas, democratizando e garantindo o acesso à Justiça.
“A Justiça brasileira precisa estar mais informada sobre a realidade indígena, assim como precisa ser mais democrática em relação à pluralidade étnica”, comentou a advogada do ISA no Amazonas, Renata Vieira, em reunião com as ministras do Supremo, Carmém Lúcia e Rosa Weber, em São Gabriel.
Em abril de 2021, o CNJ lançou na Maloca da Foirn, oito cartazes informativos sobre audiências de custódia nas línguas indígenas Baniwa, Nheengatu e Tukano, dentro do Programa Fazendo Justiça. Dados recentes do Departamento Penitenciário Nacional, no Brasil existem cerca de 670 mil pessoas privadas de liberdade, sendo 3,1 mil indígenas. Segundo o CNJ, a barreira linguística foi identificada como uma das maiores dificuldades para a promoção dos direitos das pessoas custodiadas.
Nheengatu, uma língua Tupi na Amazônia
No nosso dia-a-dia nem nos damos conta do quanto a língua Portuguesa foi influenciada pelo tronco Tupi, dando origem a uma série de palavras e nomes de lugares, como abacaxi, Acre, Amapá, amendoim, açaí, Aracaju, caatinga, Copacabana, beiju, caboclo, canoa, guri, Ipanema, Ipiranga e por aí vai.
O nheengatu, também conhecido como Língua Geral ou Tupi moderno, não é uma língua indígena amazônica. Ela foi levada primeiro para o Pará no século XVII pelos colonizadores jesuítas que tiveram contato com os Tupinambá. A língua passou, então, a ser usada como idioma de contato entre indígenas de diversas etnias, brancos e caboclos, espalhando-se por várias regiões amazônicas, incluindo o Alto Rio Negro, onde hoje o Nheengatu é uma língua co-oficial, falada por diversas etnias, como os Baniwa, Baré e Warekena.
O nome do idioma vem da junção entre as palavras tupis nhe’enga (“língua”, “idioma”, “linguagem”) e katú (“bom”, “boa”), significando, portanto, “língua boa”, devido à sua importância como língua franca no Norte do Brasil no período colonial. A língua ganhou esse nome a partir da obra do escritor e etnólogo Couto de Magalhães no século 19. Antes disso era conhecida como Tupinambá, língua geral ou língua brasílica.
Apesar de ser considerada uma língua ameaçada pela Unesco, o Nheengatu vem ganhando força e recentemente ganhou a sua Academia da Língua Nheengatu, cujo presidente Edson Kurikanwe Baré, foi um dos tradutores da Constituição Federal para a língua e é oriundo de São Gabriel da Cachoeira. Para saber mais, vale ler a reportagem da Amazônia Real sobre a criação da Academia.
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