Editorial do jornal O Globo deste domingo (09/07) criticou política de reindustrialização do país defendida pelo governo Lula. Mas, ao contrário do que sugere O Globo, reindustrialização tem papel estratégico para o desenvolvimento sustentável .
Por Theófilo Rodrigues
Aos poucos o Brasil vem retomando a normalidade política e econômica e o debate público que caracterizou o período da Nova República no país. Após seis anos de anormalidade democrática, a esfera pública brasileira volta a discutir as grandes questões que cercam o futuro do país.
Os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro levaram a política econômica neoliberal ao momento mais alto de sua trajetória no país, com o Teto de Gastos e a privatização de setores importantes da indústria brasileira. Mas aquele conturbado momento democrático brasileiro – golpe contra Dilma Rousseff em 2016, prisão do líder da oposição no ano da eleição em 2018, condução desastrosa das políticas públicas de saúde no contexto da pandemia em 2020 – fizeram com que o debate sobre a política econômica acabasse sendo marginalizado na esfera pública.
A eleição de Luís Inácio Lula da Silva em outubro de 2022, com o apoio de uma frente ampla que reuniu em uma única coalizão diferentes e contraditórios projetos, possibilitou que agora esse debate sobre os rumos da economia nacional volte a ser discutido com prioridade.
É sob esse registro que o editorial publicado pelo jornal O Globo neste domingo (09/07) reintroduz de forma saudável a velha disputa entre desenvolvimento e neoliberalismo que marcou o país na década de 1990. Intitulado “Reindustrialização proposta por Lula é erro à luz dos fatos”, O Globo defende que “recursos do governo sob pressão fiscal devem ser usados em educação, saúde e ajuda a pobres, não em subsídios”.
Neoliberalismo progressista
O projeto político do grupo Globo, do qual o jornal O Globo faz parte, pode ser caracterizado por aquilo que a literatura especializada conceituou como o “neoliberalismo progressista”. De acordo com a filósofa norte americana Nancy Fraser, o neoliberalismo progressista é um projeto político que reúne a agenda neoliberal de redução do papel do Estado nas políticas públicas, com uma agenda de reconhecimento progressista de diversas identidades usualmente discriminadas.
Não há dúvidas de que o grupo Globo possua hoje uma agenda de valorização de identidades minoritárias, com uma participação cada vez maior de questões como a igualdade racial, sexual e de gênero em seus veículos. Os ataques reacionários de Jair Bolsonaro e seus fanáticos apoiadores contra a empresa comprova esse perfil da Globo. Assim como não há dúvidas de que a Globo possui uma agenda econômica neoliberal mais identificada com a fração financeira da burguesia brasileira. Daí sua defesa da autonomia do Banco Central e da manutenção dos juros altos. O editorial publicado hoje reafirma esse posicionamento político.
Reindustrialização e sustentabilidade na agenda do governo
Diferentemente da perspectiva apresentada pelo jornal O Globo, o governo federal liderado pelo presidente Lula aposta em outra direção. As críticas diárias ao presidente do BC, Roberto Campos Neto, indicam que o governo federal não compactua com a política de concentração de renda imposta pelo mercado financeiro. Mais do que isso, todos os sinais de políticas públicas apresentadas pelo governo nesses seis primeiros meses foram na direção do retorno da industrialização do país como instrumento para a geração de empregos e a redistribuição de renda.
No Ministério da Saúde, a ministra Nísia Trindade tem repetido à exaustão que sua prioridade é a construção de um complexo industrial de saúde. “A retomada da política industrial e do complexo econômico-industrial da saúde é uma oportunidade estratégica para o Brasil, tanto para garantir a saúde como um vetor de desenvolvimento, como também pensando no papel internacional do nosso país. Isso tem sido tema constante”, disse a ministra em recente reunião do Conselho Nacional do Desenvolvimento Industrial no Palácio do Planalto.
No Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação a agenda é semelhante. De acordo com o secretário-executivo do MCTI, Luis Fernandes, o ministério vai investir R$ 41 bilhões nos próximos quatro anos na nova política industrial do país. Esses recursos são do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e serão operados pela FINEP na forma de crédito e subvenção econômica em instrumentos de estímulo à inovação nas empresas. “O esforço que estamos empreendendo agora para promover uma nova industrialização no Brasil deve incorporar um forte componente de estímulo e apoio à inovação empresarial como um dos pilares, talvez o pilar central, desse esforço”, explica Luis Fernandes. Aliás, a própria ministra Luciana Santos tem reiterado que a bioeconomia terá papel fundamental nesse processo de reindustrialização.
Esse tema apareceu nesta semana na Reunião de Ministras, Ministros e Altas Autoridades de Meio-Ambiente, Ciência, Tecnologia e Inovação, no âmbito da 14ª Convenção de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Grupo 77 + China, que foi realizado em Havana. Representando a ministra Luciana Santos, o secretário de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social, Inácio Arruda, afirmou que o Brasil fará investimentos em dez programas nacionais em áreas estratégicas, como saúde, transformação digital, transição energética, setor espacial, nuclear e defesa. “Também priorizamos a estruturação de um programa integrado de desenvolvimento da Amazônia, com foco na biotecnologia e na exploração sustentável da biodiversidade da região”, disse o secretário.
Quem também concorda com essa visão é a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. “Podemos fazer um processo de reindustrialização centrado nas metas do Acordo de Paris, fazer uma transição para uma agricultura de baixo carbono, ter uma matriz elétrica limpa e segura, inclusive, para produzir hidrogênio, e podemos ser um enorme lastro para novos parques industriais de produção de carros elétricos”, defendeu Marina alguns meses atrás.
Em abril, o tema da viagem do presidente Lula para a China foi a industrialização, com forte ênfase na questão ambiental. Na ocasião, foi anunciado um empréstimo de mais de R$ 6 bilhões da China para o BNDES. Segundo o presidente do BNDES, Aloísio Mercadante, os recursos serão repassados em duas operações e devem financiar projetos, no Brasil, de infraestrutura, transição ecológica, energia limpa e industrialização.
Não há contradição entre reindustrialização e investimento em políticas sociais
Ao afirmar que os “recursos do governo sob pressão fiscal devem ser usados em educação, saúde e ajuda a pobres, não em subsídios”, o editorial de O Globo sugere uma contradição insuperável entre investimentos em políticas sociais e em políticas de desenvolvimento. A realidade, no entanto, indica que essa é uma falsa contradição; ao contrário, as duas políticas são complementares, pois a industrialização sustentável permite que o país gere empregos e renda e tenha como consequência um alto impacto socioambiental positivo.
O que podemos ver é que o jornal O Globo e o governo federal liderado por Lula possuem concepções distintas sobre as políticas econômicas para o futuro do Brasil. E é saudável que esse debate transcorra na esfera pública sem que seja interditado por fake News como ocorreu no passado recente. Mais saudável ainda seria se essas duas concepções – e diversas outras – pudessem desfrutar do mesmo espaço nos veículos de comunicação consolidados.
Theófilo Rodrigues é cientista político.