Recorde atrás de recorde. Em uma hora a nova rede social já tinha alcançado seu primeiro milhão de usuários. Ao completar o primeiro dia, ou seja, hoje, agora às 13:00, já são mais de 20 milhões de usuários.
A nova rede social se assemelha muito ao Twitter, mas na verdade ela é muito mais parecida com o Mastodon do que com o próprio Twitter, isso é até bem interessante de comentar, pois o Threads pretende ser alimentado pelo mesmo protocolo de comunicação do Mastodon, o Activity Pub, e assim fazer parte do chamado Fediverso, uma “rede descentralizada de redes sociais” e com autonomia do usuário sobre o conteúdo. Com esse protocolo, o Threads e o Mastodon seriam tão parecidos que os usuários dessas redes poderiam comunicar-se entre si. Sim, qualquer perfil do Mastodon poderá se comunicar e interagir com qualquer perfil do Threads e vice-versa.
Rede descentralizada? Autonomia do usuário? Na Meta? Se você desconfiou de algo aqui, você acertou.
Primeiro, o protocolo Activity Pub ainda não está em funcionamento, é uma promessa que não está presente nos termos e condições. Então, vindo da Meta, é sempre bom esperar antes de comemorar qualquer coisa. Mas é uma promessa forte, não só em palavras, mas no próprio aplicativo do Threads, ao baixá-lo e criar a sua conta, um dos tres pilares que eles apresentam como da rede, é justamente o futuro uso do Activity Pub e entrar para o Fediverso.
Mas então a Meta está se comprometendo com a descentralização da Web e empoderamento do usuário? Sim e não, talvez, quem sabe? Digo isso porque as coisas não são tão simples. Eu vou explicar.
Uma “rede de redes sociais descentralizada” não necessariamente quer significar isso na prática. Depende do ponto de vista. Se você é um usuário de uma pequena instância no Mastodon e agora pode se comunicar com familiares, amigos, colegas, no instagram sem sair do Mastodon, ai você ganhou autonomia e com sua autonomia a Web toda está agora um pouco mais descentralizada.
Se você é um usuário do Threads e agora pode seguir e interagir com usuários fora das redes da Meta, aí você ganha mais autonomia e a Web está mais descentralizada. Mas atenção agora, se você for um usuário do Threads e a Meta, por qualquer motivo, decidir apagar sua publicação, ela pode? Pode. Ok, o protocolo Activity Pub me permite seguir quem eu quiser, mas e a Meta permite? Se a Meta quiser ela pode sim decidir o que você pode ou não postar, assim como pode decidir quem você pode ou não seguir.
Descentralização em termos, né, porque você pode postar e seguir quem você quiser, contanto que o proprietário permita. Uai, até aí nenhuma novidade, todas as redes são assim. Isso é verdade e tem uma explicação muito técnica: http://www.
O HTTP, Hypertext Transfer Protocol, e o WWW, World Wide Web, são as bases da nossa internet, que funcionam através de servidores, que são por natureza centralizados. Qualquer conteúdo ou interação dentro destes servidores podem e são controlados pelos proprietários destes servidores. Isso torna impossível uma governança totalmente aberta, descentralizada e torna também muito difícil de algum usuário atingir algo que se possa chamar de autonomia. A única maneira nesse sistema, de se conseguir autonomia seria tendo o seu próprio servidor, algo inviável para a maioria esmagadora da população hoje em dia. E dentro desse sistema, que chamamos de internet, a única forma de se atingir alguma descentralização seria com o máximo possível de servidores espalhados pelo mundo e esses servidores devem ter o máximo possível de proprietários.
Bom, num mundo com a Meta, detentora de todos os servidores de todas as contas de WhatsApp, Instagram e Facebook no mundo, fica bem claro o quão distante estamos dessa descentralização.
E o Threads nisso tudo? Muda alguma coisa? A essência das coisas não se altera em absolutamente nada. A governança do Threads será tão tirânica como a do Facebook.
Mas repare. O Mastodon, em essência, também é a mesma coisa, tão centralizado quanto, afinal, os servidores http://www continuam existindo. E porque o Mastodon é chamado de rede social descentralizada?
Porque na prática ele acaba de fato sendo. Explico, o Mastodon é o oposto da Meta. Enquanto a Meta é uma única proprietária de servidores, o Mastodon não tem um proprietário da maioria dos servidores, nem chega perto; na prática, nenhum proprietário se sobressai a outro para poder “controlar” o Mastodon e, como são muitos proprietários para uma rede relativamente pequena (4 milhões), na prática você tem várias pequenas comunidades, cada qual com seu proprietário, sua equipe de moderação e política de conteúdo; e em comunidades pequenas é mais fácil o usuário entrar em contato e confiar a sua “autonomia” a um terceiro, é como no caso do Mastodon, o proprietário tem mais “legitimidade” para gerir as redes, pois essa autoridade foi-lhe dada pelos usuários, que são usuários conscientes. Somando isso ao fato de ser uma rede com muitos proprietarios onde nenhum se sobressia aos demais, a prática faz do Mastodon uma rede “descentralizada”, pelo menos para os padrões atuais, da Web 2.0 (HTTP e WWW).
Então, aqui nós temos duas redes de mesma natureza centralizada, mas que operam de maneiras extremamente opostas. E o que o Threads vai fazer, quando implementar o protocolo Activity Pub, vai ser, pela primeira vez, colocar essas duas maneiras de “governar a internet” no mesmo ambiente de comunicação. E o resultado disso ainda é imprevisível, eu poderia arriscar algumas sugestões aqui, mas ainda sou novo no ramo da bandarra e acho melhor deixar no mistério.
O que eu acho interessante ressaltar aqui é, sejamos justos, a percepção e compreensão da internet e redes sociais, que a Meta tem. Mesmo o Activity Pub sendo um protocolo de 2018, a Meta será a primeira a utilizá-lo ao lado de algorítmos.
Desde o crescimento inicial do instagram até a ascensão do Tiktok, o que nós vimos foi uma predominância do algoritmo sobre a interação orgânica; de ‘redes sociais’ passamos para ‘mídias sociais’. Agora é melhor que o algoritmo escolha o conteúdo que você vai ver do que você mesmo. Umas das propagandas do Mastodon é justamente não ter algoritmos, já a Meta, nunca prometeu isso de fato; a lógica algorítmica do TikTok está prevalecendo não só no Instagram e Twitter como também no Threads.
Isso, por si só, já diferencia drasticamente o Threads do Mastodon e volta a colocá-lo ao lado de redes centralizadas como Twitter e TikTok, mesmo utilizando o protocolo Activity Pub.
A verdade é que o Activity Pub, assim como a blockchain e a Web 3.0, são grandes inovações na área da tecnologia da informação – com grande poder de reformular o mundo digital – todos têm um potencial revolucionário. Mas é verdade também que tudo se adapta, principalmente o mercado e, centralizado ou não, o lucro acontecerá. Tudo depende da forma como essas tecnologias serão utilizadas e também da consciência das pessoas de como essas tecnologias funcionam, não é preciso ser expert como alguns fazem parecer. Conhecimento é poder.
O Threads é muito bem vindo num mundo onde, a cada semana uma crise nova surge no Twitter, na “praça global”, que agora tem seu primeiro adversário de peso; Mastodon, Koo e BlueSky, jamais chegaram a ameaçar de fato o domínio do Twitter.
Também, mesmo sendo a Meta, o Activity Pub vai permitir que usuários e pequenas instâncias Mastodon ganhem novas interações sem precisar criar contas em redes de Big Techs e esse crescimento pode incentivar o surgimento de ainda mais instâncias e servidores independentes.
E ainda tem toda essa mídia em cima do Activity Pub, isso também é bom, pois incentiva outras redes menores a se conectarem ao protocolo – Flipboard e Medium já se conectaram, Tumblr e Flickr estão trabalhando para entrar no fediverso também – muitas por questões de sobrevivência, uma vez que aumentaria o poder de conectibilidade de todas as redes. E também é interessante notar que o “poder de destruição” da Meta é menor com o Activity Pub, já que o protocolo permite que servidores menores e independentes ainda respirem, não ficando tão sufocados.
Em resumo, isso tudo, num trabalho ainda de formiga, aos poucos pode deixar nosso mundo virtual um tanto mais seguro, transparente, governado por nós e para nós. Sonhar não custa nada e nos ajuda a dormir melhor.
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